terça-feira, 31 de dezembro de 2019

E a tua contribuição?

Talvez a maior causa dos conflitos humanos seja a falta de contribuição de algumas pessoas para com os esforços dos demais. Ou a contribuição aquém do esperado, segundo a percepção de algum dos indivíduos do grupo. Essa assimetria entre o esperado e a contribuição efetiva intensifica no cérebro o descontentamento. Daí para a emergência do conflito é um pulo.

Quando os indivíduos apenas formam grupo, a assimetria das contribuições muitas vezes é relegada a segundo plano. A razão disso é que todo grupo é apenas reunião de pessoas, estar juntos, física ou virtualmente, como nos tempos contemporâneos pela internet. O grande atrator dos grupos é o sentimento de pertença, estar perto, relacionamento. O grupo se torna uma espécie de meio para fins individuais.

Nos grupos, portanto, quando o comportamento de um passa a incomodar outro, geralmente há a reclamação; se o incômodo continua, quase sempre há a retirada do indivíduo que gera o conflito ou os incomodados se retiram. Há casos, naturalmente, que se transformam em conflitos, e até os que geram homicídios, mas são exceções.

Os conflitos são mais frequentes quando os grupos são organizações. Uma organização é todo agrupamento humano (portanto é um tipo de grupo) que tem pelo menos um objetivo em comum negociado entre seus membros. Uma família é um tipo de organização porque há mais de uma pessoa (é um grupo) com objetivo determinado (existem para realizar alguma coisa) em que cada membro tem que desempenhar alguma função (cada indivíduo precisa ter alguma responsabilidade).

A partir dessa definição é possível constatar que há famílias que não são organizações. Isso significa que seus membros não sabem qual é a razão de sua existência, que objetivos pretendem alcançar conjuntamente. E alcançar objetivos de forma conjunta significa que cada um dos membros precisa ter clara a sua contribuição para que o objetivo seja alcançado. Se algum indivíduo familiar não sabe o que tem que fazer, ele não faz parte da organização; não é, efetivamente, membro da família. Ele apenas faz parte do grupo.

É por isso que há conflitos, por exemplo, entre os pais. Há pai que não sabe qual é a sua contribuição familiar. Pensa que sua responsabilidade termina com a entrega de dinheiro para a esposa pagar as contas e suprir as necessidades de todos ali, fazendo-a informalmente empregada doméstica. Acha que não tem responsabilidade do carinho para com os filhos (e com a esposa, naturalmente), cuidado com as tarefas escolares e disciplina dos filhos, dentre outros afazeres essenciais. Essa é uma grande causa de conflitos nos lares.

Mas há esposas que acham que sua responsabilidade é apenas dar à luz. Depois que trouxe filhos ao mundo, sua responsabilidade parece cessar e se transforma em amiga dos filhos. Quando trabalham, muitas vezes adquirem a mentalidade de homem, pensando que apenas pagar as contas resumem suas obrigações. Não percebem que, sendo ou não empregada oficialmente, precisam dividir as tarefas com os demais membros da família, o que inclui marido, filhos e outros agregados.

Filhos bem educados têm responsabilidades desde crianças. Com poucos anos de idade já podem guardar seus brinquedos, contribuindo com o objetivo familiar de "deixar o lar organizado". Também já podem colocar a roupa suja no lugar adequado para depois ser lavada, contribuindo com o objetivo familiar de "Estar sempre limpo e asseado". À medida que crescem podem ajudar a limpar a casa, lavar a louça e a roupa, e assim por diante. Sempre, sempre é fundamental que cada um dê a sua contribuição. Ao contribuir, as possibilidades de conflitos são mínimas.

Nas organizações, quando cada indivíduo é contratado é-lhe dito exatamente com o que ele deve contribuir. Professores são instruídos a "lecionar 20 horas semanais", "realizar pesquisas durante 10 horas semanais" e "planejar suas atividades por 10 horas semanais". Instituições mais profissionalizadas vão mais longe e dizem exatamente o tamanho e qualidade da contribuição, como é o caso do indivíduo que foi contratado para "publicar 5 artigos científicos por semestre em revistas qualificadas com pelo menos B1 no Qualis/Capes na área de Ensino".

Procure ver quem é o membro da sua família com quem você mais se afina. Se você contribui muito, provavelmente você vai se ver em quem contribui tanto quanto você; se você acha que alguém é folgado, que não trabalha, provavelmente você tem conflito com ele. Se você contribui com muito pouco ou você é o folgado da família, provavelmente você não se dê muito bem com quem sustenta a família ou tem bastante inveja dessa pessoa (ou as duas coisas ao mesmo tempo).

Analise os membros do seu trabalho. Se você faz apenas o que o emprego pede, provavelmente você não vê com bons olhos aquele colega muito produtivo e entusiasmado para o trabalho. Talvez você até monte nele, quando tem oportunidade. Provavelmente vocês não se bicam.

Por que isso? É porque a gente se agrupa por afinidade. Não são os contrários que se unem, como a fantasia social prega. Trabalhador se afina com trabalhador. Quanto mais alguém contribui com seu esforço, mais pessoas que gostam de contribuir procurarão se unir a ela. Por outro lado, quanto mais alguém contribui, realiza feitos interessantes, maior a possibilidade de ser alvo de ódio, indiferença e chacota dos que não gostam tanto assim de contribuir.

Olhe à sua volta. Aquele com quem mais você entra em conflito muito provavelmente é o seu oposto. Aquele com mais você se afina é o retrato mais acabado de você. Quem mais bate palma para você é o mais parecido contigo e vice-versa. Por isso, muito cuidado com quem você elogia sempre e com quem você tenta denegrir constantemente. Suas atitudes dirão o quanto contribuis para a organização a que pertences.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Nãos

Tem sido cada vez mais difícil dizer não às pessoas. Tão difícil que, muitas e muitas vezes, já encontrei pessoas deprimidas por não saber como dizer não a alguém. Quase sempre são as consequências da negação que leva as pessoas a esse cruel estado de espírito. E o pior é que tem sido cada vez mais raro encontrar quem encare com naturalidade o Não como resposta. Mas por que isso está acontecendo?

Você já viu o que acontece com uma criança mimada quando ela pede alguma coisa aos pais (e a quem quer que seja, quando é muito tola) e os pais dizem não? É muito comum que criem uma cena exagerada. Jogam-se ao chão, gritam, esperneiam, enfim, fazem um estardalhaço. Esse comportamento é típico em crianças cujos desejos quase sempre foram atendidos. Quase sempre, porque nas vezes em que não são, aprontam essas cenas tristes.

Os pais devem entender que as crianças passam por fases ou etapas de desenvolvimento. E que essas etapas são naturais, assim como os procedimentos paternos para lidar com os comportamentos delas consequentes. Se as crianças não passarem com os ensinamentos adequados por cada uma das etapas, provavelmente permanecerão em etapas atrasadas para o restante da vida. E serão adultos-crianças ou adultos com comportamentos infantis.

Desde feto até mais ou menos os três anos de idade, a criança vive em um mundo de anomia. Essa etapa se caracteriza pela ausência de leis, normas, regras. Tudo, para a criança, se parece com brinquedo. O mundo é seu brinquedo. O mundo é seu, ainda que desapareça, suma, quando o brinquedo sai de suas vistas. Como o mundo é seu, tudo a criança pode. O peito da mãe é dela, de maneira que ao mesmo tempo em que sacia sua fome, brinca e sente prazer com ele. O dedo da mãe (e de quem quer que seja) também é um brinquedo.

Mas a criança cresce e amplia seu espaço de atuação. Aprende a gatinhar, andar... E aprende a se aventurar. E a correr riscos cada vez maiores. E fica encantada, por exemplo, com os buracos da tomada. Toda vez que ela se aproxima para colocar os dedos lá os pais gritam "Não!!!". Ela toma um susto e os pais a tiram dali. Ela não entendeu nada do grito, mas não pôs o dedinho ali, que poderia ceifar sua vida.

Ela aprende a subir nas cadeiras, nas mesas. E a, novamente, colocar sua vida em riscos. Pais e familiares atentos novamente emitirão a palavra mágica "Não!!!". E outra vez a segurança se estabelece. À medida que o tempo passa, até mais ou menos a idade de 10 a 12 anos, quando o Não fizer parte natural da mentalidade da criança, a fase da heteronomia haverá de dar lugar à etapa de socionomia sem grandes perturbações para os pais e para o pré-adolescente.

Queremos mostrar que é muito raro alguma criança conseguir sair da fase de heteronomia, que é a fase do aprendizado das leis dos outros (hetero = outro e nomia = lei, regra, norma), antes dos 10 anos de idade. A razão disso é que não é fácil sair de um mundo de anomia (a = não, sem, e nomia = lei, regra, norma), sem lei, para outro completamente diferente (heteronomia). A criança vai saindo aos poucos. Tanto é assim que quase tudo a criança pode fazer quando nasce. Os nãos só aparecem muito tempo depois do nascimento, lá pelo primeiro ano de vida. E vão ocorrendo de forma muito lenta no início.

Mas é preciso compreender que os Não são muito poucos em relação aos Sim na vida da criança e de qualquer pessoa. O problema é que o cérebro quase não dá valor para os Sim. Diante de mil Sim, ele vai se concentrar apenas no único Não que receber. Mas são os Não que vão torná-lo mais equilibrado. Reequilibrado, melhor dizendo. É que os Não abrem novas relações neuronais, ampliando a cadeia sináptica. Noutras palavras, os Não exigem que o cérebro amplie sua capacidade compreensiva.

Crianças que saltam da fase de hereronomia não conseguem conviver pacificamente nas etapas de socionomia, que é  o reconhecimento e obediência às infinitas leis dos indivíduos organizados em grupos. E sofrem mais ainda quando os pais os fazem saltar para a distante autonomia, que só pode ser alcançada por aqueles que obedecem às leis dos outros (heteronomia) e dos grupos (socionomia). Na fase de autonomia o indivíduo vê que mesmo seguindo todas as leis é necessário criar outras, para complementá-las, sem transgredi-las. Cria suas próprias leis e as segue. É por isso que autonomia quer dizer "criar leis para si mesmo". Mas sem transgredir nenhuma outra.

Quem não aceita um Não é criança. Ainda que tenha décadas de existência, é criança, age como tal. Quem assim procede acha que tudo lhe pertence, tudo é seu brinquedo, como se tivesse dois ou três anos de idade. Seus pais, talvez desconhecendo esta explicação, não lhe souberam dar limites, não aprenderam a dizer Não. Na verdade, não foram pais, tentaram ser colegas. Nem amigos foram, porque amigo diz Não sem problema algum.

O marido matou a mulher porque ela se recusou a ser simples empregada dele; já a mulher matou o marido porque não admitia que se encontrasse com os amigos para jogar futebol no final de semana. O chefe demitiu o subordinado porque não aceitou a recusa em fazer-lhe favor pessoal no sábado pela manhã, que nada tinha ver com o trabalho, mesmo sabendo que o subordinado era Adventista do Sétimo Dia. O amigo se tornou inimigo porque o outro se recusou a lhe servir de motorista para suas bebedeiras. Os eleitos e candidatos que não aceitam a vitória do adversário e ficam inventando picuinhas para sabotá-lo. Os torcedores do time que não aceita a vitória do adversário. São quase infinitos os exemplos de despreparação para o Não.

Vale dizer, finalmente, que as pessoas têm o livre arbítrio de fazer ou deixar de fazer. E isso precisa ser reconhecido, para o nosso próprio bem. Se não admito o direito do outro de se recusar, de dizer Não, estou dando a ele o direito de não aceitar o meu Não. Essa lição precisa ser ensinada a todos, desde a mais tenra idade, para que tenhamos um mundo de pessoas mais sóbrias, mais compreensivas, mais receptivas, mais humanas.

domingo, 22 de dezembro de 2019

Deveres

Pode até parecer um contrassenso, mas não são os direitos que fazem a humanidade avançar em civilidade, mas sim os deveres. Os direitos, no máximo, servem para garantir que os deveres até então praticados ou exemplificados se consolidem. Os direitos representam, portanto, a codificação do avanço nos deveres efetivamente praticados e os resultados maravilhosos que são capazes de proporcionar. Quanto mais alguém é capaz de cumprir com os seus deveres, mais brilhante e luminoso efetivamente será.

Um dever é um tipo de responsabilidade moral que o indivíduo tem para consigo mesmo. Quando falamos em moralidade estamos nos referindo aos atos considerados belos e justos em forma de prática de um ideal de ação perfeita. Dessa forma, a perfeição moral é chamada de ética, enquanto a prática real que se aproxima ou se afasta desse ideal é chamada de moral. Uma ação moralmente bela e justa que parta da vontade do indivíduo em praticá-la é o que chamamos dever.

Isso significa que há ações morais que não partem da vontade espontânea do indivíduo, como é o caso daqueles impostos pelas leis. Há deveres, portanto, que vêm da lei. Esses tipos específicos de deveres representam uma garantia para os outros de que as pessoas terão que agir de determinada forma. É "proibido matar" representa o dever de não matar, consequentemente, um direito a todos de não serem mortos voluntariamente por outrem.

Mas o direito que vem com a imposição legal de não matar é a consequência da prática efetiva desse proceder por alguns indivíduos e comunidades. Os legisladores perceberam que os indivíduos que se abstêm do poder de matar os outros, assim como os grupos a que pertencem, são mais felizes porque têm mais segurança de que a vontade dos outros não vai redundar em suas mortes. É que quem mata os outros é sempre uma quantidade menor de pessoas que convive na sociedade. É preciso conter os poucos para garantir a vida dos muitos. Mas o dever do direito pode ser negligenciado, e os direitos correspondentes, não praticados.

Então, a prática do dever de não matar de alguns indivíduos e de suas comunidades levou outras comunidades a criar leis p ara que esse dever fizesse parte de suas realidades. E isso vale para todos os outros tipos de ações voluntárias para o bem. É que todos os deveres justos e belos são sempre do bem. E quanto mais as pessoas "inventarem" deveres justos e belos, mais e mais elas serão felizes e suas comunidades também.

Qual é a diferença, então, de uma cidade em que a insegurança predomina, onde a saúde e a educação não funcionam, e outra em que há paz, harmonia e todo o setor público funciona? Você vai perceber que o dever é a diferença. Em cidades, bairros, ruas e quadras que há beleza, paz, civilidade e tudo o mais que representa um bem as pessoas que ali vivem praticam de fato o bem. Nas cidades onde o bem não é praticado, tudo é muito feito, triste, sujo, descuidado.

Veja em casa, na sua casa. No quarto onde seus irmãos dormem, se eles forem organizados, limpos, higiênicos, bondosos, tudo ali será organizado, limpo, higiênico, suave, pleno de leveza; nos quartos onde não o forem haverá roupas pelo chão, toalhas molhadas na cama, cuecas e calcinhas penduradas no banheiro, gavetas desorganizadas, roupas nos armários amarrotadas e tudo o mais. Onde o dever está presente, há amor, porque amar é agir; onde o dever está ausente (ou onde apenas o direito é cobrado) não há amor, porque amor é ação, é prática.

Veja as cidades ricas. São ricas não é porque exploram os outros, como muitos querem desesperadamente que a gente acredite. São ricas porque produzem coisas, fazem coisas, que estejam o mais próximo possível daquilo que as pessoas desejam. E quanto fazem essas coisas têm sempre em mente como gostariam que fizessem para elas. Então, elas pensam nelas mesmas quanto estão fazendo as coisas para os outros. E por isso as pessoas gostam das coisas que essas pessoas fazem, porque se parecem com elas.

Veja as cidades e bairros miseráveis. As pessoas jogam lixo nas ruas, porque acham que é obrigação do prefeito limpar; as pessoas não limpam suas casas todos os dias, porque há sempre alguém pensando que isso é obrigação dos outros; as pessoas não limpam os lugares onde dormem, porque suas mentes acham que isso não é importante. A maioria das pessoas que habita essas cidades e bairros e casas ainda não aprendeu a força do dever.

Se há lixo na rua, eu tenho que limpar; como consequência, não posso jogar lixo na rua. Se não tem emprego no meu bairro, eu tenho que inventar algo que possa dar emprego aos outros agora ou no futuro; como consequência, tenho que incentivar a criação de empregos e a produção dos que fazem isso. Se alguém cuida faz o bem todo dia, eu tenho a obrigação de pelo menos admirar esse gesto bom; mas se eu for inteligente o suficiente, terei que imitar o gesto pelas coisas boas que isso traz.

Veja todas as guerras que já aconteceram na humanidade e que estão acontecendo hoje. São todas disputas por direitos. Todos querem ter direitos e não admitem os direitos dos outros. Todos querem, querem e querem; ninguém se coloca no dever de servir. Quem não serve não progride. O progresso é consequência do servir da maioria da população de uma comunidade.

Veja os períodos de bonança e felicidade humanas. Todos foram construídos quando os povos ampliaram seus deveres, levando o bem para o maior número possível de pessoas. Além de acabar com as guerras, os deveres ampliam os espaços e formas de convívio e fraternidade.

Como se pode ver, não brigue por direitos. Aja. Faça o bem. Como mostrou o Cristo há milhares de ano, é aquilo que você faz que vai garantir a solidez das tuas explicações, ainda que sejam por parábolas, porque as pessoas que amam os direitos (e abominam os deveres) têm limitações de raciocínio e compreensão. E essa é a consequência natural: quem age em conformidade com deveres amplia sua capacidade neuronal e mental, em detrimento dos que se apegam a direitos.

Assim, se queres ser livre e iluminado, faça o bem em todas as circunstâncias. Fazendo o bem sempre você estará garantindo uma coisa que é vital aos que não fazem o bem: a realização dos direitos que eles desejam. E estarás fazendo a grande recomendação do rabi galileu: vigiar.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Direitos

Vivemos um tempo que pode ser caracterizado pela busca por direitos. A maioria, contudo, não apenas os buscam: batalham por eles. E batalha no sentido pleno do termo, incluindo o uso de recursos que os próprios direitos não recomendam, como agressões e assassinatos.

A impressão que se tem é que uma insanidade coletiva tomou conta de quase todos os ambientes, desde os familiares aos de contornos planetários. Quando a busca por algo vai além do racional, do socialmente aceito e do não prejuízo ao outro tem alta probabilidade de adentrar os territórios da loucura. Ao que tudo indica, essa loucura é gerada pela exacerbação do orgulho profundamente enraizado na mente dessa gente.

Isso não quer dizer, por outro lado, que não se busquem direitos. Mas essa busca tem que ser feita de forma simpática, ainda que o resultado buscado seja negado até com atos violentos. A minha busca por direitos não pode ferir os direitos dos outros, nem mesmo daqueles que negam os direitos pelos quais eu luto. Não posso advogar para mim o direito de ser bem tratado maltratando os outros. Não posso defender o direito à tolerância sendo intolerante.

A exacerbação do egoísmo começa e para na ideia de que tudo posso ter, tudo posso almejar, tenho o direito de querer tudo aquilo que eu imagino. Essa exacerbação se torna demência quando esquece o outro lado: se tenho direitos, alguém tem o dever. Se eu tenho o direito de ser bem tratado, alguém tem o dever de me tratar bem. Se tenho o direito de ser tolerado, alguém tem o dever de ser tolerante. Simples assim. O direito a que eu viso é um dever para alguém.

E a demência se aprofunda quando não é compreendida a consequência do esquema lógico direito-dever. Se eu almejo ser bem tratado, alguém tem que me tratar bem, mas EU TAMBÉM tenho que tratar bem a alguém. Se eu tenho direito à tolerância, alguém tem que me tolerar, mas EU TAMBÉM tenho que tolerar todo mundo, assim como todo mundo tem que me tolerar.

É que direito tem que trazer dever. Se não, não é direito. É, no mínimo, tirania. Só o tirano tem apenas direitos e um dever, que é o dever de ser tirano. E isso vale para todos os direitos, inclusive as cotas raciais. Se admito a existência de raças e algumas delas não têm certos direitos, esses direitos precisam ser a ela garantidos para que elas possam garantir esses mesmos direitos aos outros. É outra forma de dizer a mesma coisa: se pretos têm direito a cotas em hospitais, os pardos também têm que ter, se não tiverem. E todos os demais.

A mentalidade de direito é derivada da mente que reconhece que os direitos que eu busco precisam ser universalizados. O direito precisa tender à universalização, que é corolário de integração, inclusão, associação e tudo o mais que leve à simpatia, empatia, amizade, parceria, amor. O fim a que todo direito teria que almejar é o amor, que é cuidar. E nenhum direito é conquista se não for por esse caminho, ainda que as ilusões de guerras e batalhas sinalizem ao contrário.

Os direitos ampliam, portanto, os espaços de ações humanas. E ações humanas no sentido de compreensão, afeto, a externalização de contentamento com o outro, de proximidade e integração com o outro. Não é simplesmente o fato de ter vaga reservada em supermercado, sinalizada, que vai efetivamente me garantir o direito. Não. Alguém pode ter tudo isso e muito mais, mas ser ignorado, tratado com civilidade e indiferença.

Há o caso da cidade em que todos os cadeirantes tinham acessibilidade plena. Iam e vinham de onde bem entendessem. E pareciam ser, se não felizes, pelo menos contentes com o que a cidade lhes oferecia. Noutra cidade, havia pouca acessibilidade. Mas o povo era tão amoroso que os cadeirantes algumas vezes preferiam usar o apoio carinho das pessoas que os meios de acessibilidade. Não faziam isso porque os meios fossem impróprios, mas porque se sentiam muito felizes com a ajuda que recebiam.

Naturalmente que todos têm o direito de lutar ou buscar os direitos que bem entenderem. E esse direito não lhes pode ser tirado. Mas é fundamental, inclusive para a garantia dos próprios direitos, que vejam e estejam dispostos a praticar as contrapartidas desses direitos em forma de deveres. E agir sempre na plenitude do dever que é, em última análise, o exercício do próprio direito almejado.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Onde Está o teu Tesouro?

Você já parou para pensar no fato de que a maior parte do tempo a gente pensa em apenas poucas coisas? Faça o teste, se você é capaz. À noite, antes de dormir, tente se lembrar do que você pensou durante o dia. Veja em que estavam concentradas as suas preocupações, as suas alegrias, enfim, com o que a sua mente estava ocupada. A mente só se ocupa com as coisas que tem no coração.

Você constatará que passou o tempo todo pensando nas mesmas coisas. Passaram-se os segundos, minutos e  horas, mas a sua cabeça esteve o tempo todo apenas naquelas coisas que, claro, não saíam dela. Ainda que você supostamente tenha pensado em milhões de coisas, como costumamos dizer, essas milhões de coisas, na verdade, são milhões de formas de ver e pensar a mesma coisa. Vamos a uns exemplos, para que isso seja bem entendido.

Um comerciante de farinha de Cruzeiro do Sul, no Acre, certa vez passou uma manhã inteira comigo. Falava tanto de farinha que resolvi fazer uma lista do que ele dizia. Coletei expressões do tipo "farinha do Amazonas", "Farinha crocante", "farinha pintada", "farinha dágua", "farinha de tapioca", "farinha de Uarini", "Farinha de cor", "Farinha embarcada", "Saco de farinha", "Amostra de farinha", "Quantidade de farinha" e mais 37 coisas parecidas. Além disso, coletei frases do tipo "gostou da minha farinha", "recebeu a minha farinha", "não mandou a minha farinha", "estragou toda a farinha", "a farinha chegou atrasada", "a farinha está cara", "a farinha é boa" e mais 41 semelhantes. No total, o amigo falou 96 vezes sobre farinha, o que dá 24 vezes por hora, que representam 2,5 vezes por minuto!!!

Um ex-aluno, apaixonado pelo Flamengo, me reencontrou recentemente em um parque infantil em Florianópolis. Estava com uma bela camisa de seu clube do coração. Quando me viu, acenou e veio em minha direção, feliz da vida. Chegou, me deu um abraço e logo em seguida me mostrou, com orgulho, o escudo do clube belamente estampado na camisa. E me interrogou: "Não é lindo, professor?". Assenti com a cabeça e confirmei "É verdade". Esse amigo maravilhoso chegou, ficou comigo quase meia hora e se foi, mas não falou uma palavra sequer comigo!!! Ele só falou do Flamengo!!! Tentei de diversas formas saber dele, da vida dele, mas ele só falava do Flamengo. Perguntei, por exemplo, se ele tinha família. A resposta dele? Foi essa "três flamenguistas, professor, graças a Deus". Na pergunta seguinte, sobre quem era sua esposa, ele disse "é uma flamenguista roxa, professor". Tive que ficar apenas ouvindo...

O que esses dois casos têm em comum? O mesmo encantamento, a mesma paixão. É exatamente como são todos os casais apaixonados. A mente deles está sempre voltada para aquilo que eles amam de verdade. E é assim com todo mundo. Cientistas amam falar de suas descobertas, seus métodos, desafios, dificuldades que encontram no dia a dia de suas investigações. Políticos amam falar de suas estratégias, seus projetos, articulações, desafetos, parcerias. Médicos amam falar das doenças, curas, terapias, instrumentação, equipamentos inovadores para a saúde. Professores adoram falar (bem e mal, talvez mais mal) de seus alunos, aulas, estratégias de ensino, conteúdos ensinados e assim por diante.

Não tem jeito. Amamos falar do que amamos. E falamos o tempo todo. É no que amamos que está e estará sempre a nossa cabeça, a nossa mente. Porque o que amamos é, de fato, o bem mais precioso que se tem. Mães amam falar de seus filhos (pais também) e falam deles o tempo todo, se deixarmos. Criminosos amam falar de suas espertezas, da mesma forma que o avaro, o mão de vaca, não deixa de pensar um só instante naquilo que tem, em como não deixar ninguém tocar neles e em como conseguir mais coisas para acumular.

Se você quiser saber o que você ama de verdade, presta atenção no que você fala e para onde está voltada a tua mente, os teus pensamentos. É ali que está o teu tesouro. Se esse tesouro te faz sofrer ou faz sofrer alguém, você está doente, aprisionado, apaixonado pelo mal; se o teu tesouro te faz feliz, faz feliz a alguém mais e não trará mal algum futuro, você caminha pelas sendas do bem a caminho da felicidade.

Cuida de ver o que teus amigos falam. Escute-os durante várias vezes. Tente identificar sobre o que eles falam. Se falarem de coisas boas para ele, para você e todas as pessoas com as quais ele convive, ajude-os, incentive-os, porque vale a pena a irradiação dessas ondas de bem; mas se ele fala sobre coisas ruins, que o prejudicam, que pode lhe prejudicar ou gerar o mal a quem quer que seja, aconselhe-os a reverem essa paixão. Como são seus amigos, você não os pode abandonar. Eles precisam da luz necessária para ver o que você percebeu. Você poderá dar essa luz a ele. A luz do entendimento.

Note, portanto, que todos temos um tesouro. E que é fácil saber qual é ele. Basta que prestemos atenção no que falamos, porque só falamos o tempo todo daquilo que está o tempo todo nas nossas cabeças. Que seu tesouro traga o bem para te tornar feliz e levar a felicidade a outros corações.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Tu Amas?

Amor é uma palavra que pode ser encontrada em qualquer lugar, o tempo todo. Apenas no Google, em língua portuguesa, há quase dois bilhões de algum tipo de texto ou postagem sobre ela. Parece que todo mundo precisa falar de amor. A impressão que se tem é que todo mundo tem alguma coisa a falar sobre ele. Essa efusão e profusão de falas, infelizmente, tem uma coisa bastante peculiar, que caracteriza quase todas elas: um gigantesco e terrível equívoco. Estão confundindo amor com diversas coisas, principalmente afeto. Amar é cuidar. Expliquemos isso.

Tomemos o caso bíblico, em que o Cristo pede que nos amemos uns aos outros. Ele não pediu que nos fizéssemos carinho uns aos outros, muito menos que fiquemos nos dizendo "eu te amo" uns para os outros. Ainda que o Mestre Galileu tenha falado inúmeras vezes algo do tipo "assim como eu vos amo", ele não estava fazendo uma declaração de amor do jeito que imaginamos hoje. Ele estava se referindo ao cuidar.

O que fez o Cristo durante toda a sua vida? Exatamente: cuidava das pessoas. Cuidava de todo mundo. Desde o acordar ao dormir, passava o tempo todo cuidando das pessoas. E cuidava de inúmeras formas. Algumas vezes, dava de comer aos famintos; noutras vezes, dava de beber aos que tinham sede; inúmeras vezes consolava, com palavras que penetravam a alma; e muitas e muitas vezes, ensinava. Cristo agia o tempo todo. Não parava. Até chegou a dizer que o Criador amava mais do que ele porque Deus nunca parava de agir, criar, cuidar.

Por erro de tradução, os textos bíblicos tornaram a verdadeira fonte de transformação em algo banal. Agir é o que leva qualquer um para a frente. Mas não basta qualquer tipo de ação. A única que faz transformação é aquela ação que torna o outro feliz. Então agir para beneficiar o outro é a chave de tudo. É pela felicidade do outro que encontramos, nós, a nossa própria felicidade.

E temos que fazer aos outros aquilo que gostaríamos que fizessem por nós. Nossa ação tem que ser direcionada para essa lógica. Tornar o outro feliz como gostaríamos que nos fizéssemos felizes. Temos que agir sempre. E agir no bem. Daí ficaremos triplamente felizes. Primeiro, com o bem que fizemos ao outro; segundo, com o próprio ato de fazer o bem, no exato instante em que estamos fazendo o bem ficamos felizes; e terceiro, com o bem que to ato de ter feito o outro feliz nos faz felizes.

E não importa se o outro perceba o que fizemos por ele. Importa muito menos se o outro vai fazer alguma coisa por nós. A gente consegue ser feliz, amando, independentemente do outro. Somos nós que construímos a nossa felicidade porque somos nós que agimos. Não dependemos do outro para sermos felizes. Se dependermos, nunca seremos felizes.

É por essa razão que a pessoa que aprendeu a amar é aquela que aprendeu a cuidar dos outros e da natureza. Natureza e as outras pessoas são a matéria-prima com as quais treinamos nossa capacidade de fazer o bem, da mesma forma que faz o Criador. Um dia seremos deuses, disse Jesus. Então temos que treinar, exercitar agora, todos os dias, a cada oportunidade. Quanto mais treinamos, mais hábeis ficaremos na produção da felicidade. Da mesma forma que o primeiro a ser iluminado é aquele que acende a luz, o primeiro a ser feliz é aquele que produz a felicidade.

Não é difícil entender que há pessoas que são muito mais feliz, sim, do que a maioria da população do planeta. Essas pessoas felizes são aquelas que amam o maior número possível de vezes. Vale dizer, são aquelas que cuidam das pessoas o maior número de vezes. A cada vez que cuidam, a cada vez se sentem e se fazem felizes. Quanto menos cuidamos, menos felizes somos. E se não cuidamos, não tem outro jeito: a infelicidade será nossa companheira permanente.

Para servir, é preciso aprender. Quanto mais coisas sabemos, maior o número de formas diferentes de cuidar dos outros. E de nós mesmos. A felicidade, então, está associada, depende, do que sabemos. Mas não basta o saber. É preciso que tenhamos a vontade e a determinação de usar o que sabemos. É preciso praticar. É preciso aprender e colocar em prática os saberes. Só assim a felicidade vem.

Tu amas? Quantas vezes você faz o bem aos outros todos os dias? Veja se o primeiro foco de teu cuidar é cada membro da tua família; depois, dos teus amigos e colegas de trabalho. Faz um balanço diário de quantas vezes você fez o bem a cada um deles. E balanço significa quantas vezes você fez o bem e quantas vezes você recebeu o bem. Se recebes mais bem do que dás, és mais amado(a) do que amas. Mas é preciso aprender a ver bem tanto o que fazes quanto o que recebes, para não seres injusto(a).

O egoísta é aquele que ainda não aprendeu a amar, como mostraremos na próxima postagem. Veremos por que o egoísmo nos afasta do amor e de Deus. Entenderemos por que o egoísta é um parasita que mata todos os dias a si mesmo.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Críticas

Há algum tempo tem havido um movimento mundial para a promoção da crítica. Esse movimento pretende que a crítica faça parte do cotidiano das pessoas no mundo todo. Há, por exemplo, um braço filosófico, chamada filosofia crítica, e principalmente na educação, com diversas denominações. Embora louváveis algumas dessas iniciativas, é preciso muita cautela pelos impactos negativos que a maioria delas gera. Toda crítica é um veneno.

Pegue qualquer texto ou preste atenção ao discurso das pessoas que se dizem críticas. Pelo menos uma de três coisas serão percebidas. A primeira é o esforço de encontrar erros nos trabalhos e feitos dos outros. Neste particular, todo crítico é incapaz de perceber e compreender que o ser humano é imperfeito. Por mais genial que possa parecer, como nas obras de arte, tais como Michelangelo e Mozart, há sempre a possibilidade de se encontrar falhas, erros nelas.

Os críticos são incapazes de perceber a imperfeição na prática e no raciocínio. Tanto é que obras formidáveis são erigidas desconsiderando essa singela constatação. Exigem dos outros a perfeição que ninguém é capaz de alcançar. E não percebem o outro lado da crítica. Quem critica dá a impressão de que sabe mais do que o que fez o ato falho. E age como tal. Ora, se o crítico é tão genial assim, por que não faz perfeito o que considera falho? Vejamos alguns exemplos.

Há quem diga que Neymar é isso ou aquilo. Tudo bem, aceitemos por enquanto a crítica. Mas o crítico que o faz tem que ser capaz de jogar futebol tão bem ou melhor do que Neymar, em primeiro lugar, e, depois, agir com a retidão que exige do jogador. Isso o crítico não percebe: precisa ser capaz de colocar na prática aquilo que exige do outro. Se não fizer isso, é hipocrisia o que faz.

A segunda coisa é a inveja que está por trás de toda crítica. A inveja é aquela vontade inconsciente de ser ou fazer o que denuncia. Quando alguém diz que fulano é feio, no fundo quer ser fulano. Se outro diz que beltrano faz coisas reprováveis, muito provavelmente também gostaria de fazer. Quase tudo inconscientemente. É que o discurso diz coisas que não falamos. Ou falamos nas entrelinhas.

A inveja é um veneno que corrói o corpo, a mente e a sociedade. Quando ela está presente, provoca a produção de hormônios nocivos ao corpo, envenenando-o, matando-o aos poucos. E se o alvo da inveja se incomodar com ela, o mesmo efeito lhe é produzido, envenenando-o também. A razão disso é que a mente, que faz parte do corpo espiritual do invejoso, está doente. E a doença penetra no corpo, contaminando-o. Quanto mais pessoas se contaminarem com os efeitos do ato invejoso, a doença passa a fazer parte do corpo da sociedade, matando-a aos poucos.

Fica fácil compreender que todo crítico deseja ser o que critica. Portanto, a terceira coisa que o crítico não percebe é seu desejo de fazer o que denuncia. Isso significa que todo crítico é um incapaz. É alguém que torna pública a sua incapacidade de fazer. Como não sabe fazer, denuncia, critica.

Como superar a crítica? Há duas possibilidades, pelo menos. Para o que gosta de criticar, aprender. Todo crítico é carente de saber, entendido o saber como a) compreender a lógica das coisas, b) saber manusear a lógica das coisas e c) agir sempre em conformidade com a lógica da coisa. Vejamos alguns exemplos.

Se digo que Neymar deveria agir de determinada forma, primeiro devo aprender a jogar futebol tão bem quanto ele para galgar a fama que ele auferiu para experimentar a ação criticada no jogador. Aqui temos as três coisas a) entender a lógica de como jogar futebol tão bem quanto Neymar, b) saber jogar futebol tão bem quanto Neymar e agir da forma como eu critiquei e c) agir sempre da forma como eu critiquei, sabendo jogar futebol tão bem quanto Neymar.

Alguém poderá argumentar que o que foi criticado foi o fato de Neymar ser desrespeitoso com a imprensa. Sim, é verdade. Mas o desrespeito é consequência da fama extrema do jogador, que por sua vez é decorrente da sua brilhante habilidade de jogar futebol e que essa habilidade se mantém constante. Enquanto o brilhantismo se mantiver, provavelmente a fama se manterá e, não tão provavelmente assim, o desrespeito poderá se perpetuar.

A segunda coisa é em relação ao criticado. Jamais revidar. Jamais agir como crítico. Crítica é veneno. Como o crítico tem visão e interpretação limitadas, não se lhe deve dar ouvidos. Se a ação criticada foi com intenção do bem, continue a agir assim; se não o foi, corrija-a. Neste último caso, o crítico se lhe foi de alguma utilidade. Mas não se deixe influenciar por ele. Ele quer, inconscientemente, lhe envenenar porque ele lhe inveja.

A mente e a atitude dos críticos estão voltados para a destruição. Agindo assim, muitos até de boa vontade, acreditam que estejam contribuindo para melhorar as coisas. Suas habilidades estão voltadas para o ruim, que é o que lhes predomina interiormente, jamais para o bem. Se virem mil coisas boas e uma ruim, seus olhos captarão apenas o que é ruim, deixando de lado as mil outras. Por isso os críticos jamais serão sábios.

Para transformar qualquer crítico em pessoa normal, é necessário que sigam o caminho do saber. Primeiro precisam aprender a lógica das coisas que criticam, porque não a conhecem. Só criticam porque não sabem como ela funciona. Segundo, precisam aprender a prática dessa lógica. Geralmente o crítico tem ódio do fazer, do praticar, sem perceber que sem saber fazer não há saber. E terceiro, é preciso agir em conformidade com a lógica da coisa que se aprendeu a colocar em prática.

Todas as pessoas que fazem esse percurso deixam de ser críticas. E se transformam em pessoas normais. Se aprender mais um pouco sobre a lógica das coisas e do mundo, a pessoa vai se enchendo de amor por tudo o que aprende, deixando a crítica no passado distante. Passa a se amar e amar aos outros. O aprofundamento no saber pode lhe levar à sapiência. O sábio é aquele que percebe as inconsistências das coisas e, amorosamente, que aprendeu no estágio anterior, ensina a caminhar pelo exemplo. O sábio é aquele que faz o que fala. O crítico é aquele que fala do que não sabe fazer e se engana, pensando que sabe do que fala.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Treino é Treino

Podemos não perceber, mas o tempo todo estamos realizando alguma forma de treinamento. Treinar, aqui, significa todo tipo de coisas que fazemos com certa regularidade. Por outro lado, o termo também quer dizer que, como tudo o que fazemos, em breve ou no futuro distante algum resultado obteremos como consequência desse treinamento. Dormir constantemente é uma forma de treinar, assim como resolver problemas de matemática todos os dias. Falar mal dos outros é outro tipo de treinamento, da mesma forma que ajudar. O desafio, portanto, é saber em que estamos treinando e que resultados esse treino pode nos trazer.

Um amigo de infância, todas as vezes que terminávamos de jogar futebol nos gramados da minha cidade natal, subia no alto de uma caçada e nos fazia gargalhar. Hábil com a bola, tinha muito mais habilidade com as palavras e gestuais. Tantas eram as habilidades que quase todos nos surpreendíamos a cada apresentação. Só muito recentemente é que soube que aquela desenvoltura era resultado de treinamentos constantes, diários. Treinamentos e pensamentos. Pensava sobre como colocar em prática alguma ideia para atrair a atenção, de forma divertida, de todos. Fez-se excelente comunicador.

Também é interessante o caso do jovem apaixonado por resolver problemas. Comprava, sempre que podia, apostilas e livros com questões de concursos. Não distinguia entre provas de vestibular e de concursos públicos. Quanto mais desafiadoras eram as questões, maior o seu interesse. De tanto treinar, chegou a ponto de realizar feitos impressionantes. Conseguia resolver uma prova inteira de concurso em poucos minutos. Resolveu todas as questões de Analista do Banco Central em menos de 50 minutos. E todas as suas respostas estavam corretas.

Curiosa é a experiência da garota especialista em dormir. Sim, dormir. Sua habilidade nisso era tão grande que conseguia realmente dormir em poucos segundos. Dizia-se que bastava que fechasse os olhos para que os roncos fossem ouvidos. E permanecia assim por horas e horas. Isso não significava, contudo, que passasse muito tempo da vida dormindo. Era apenas uma habilidade adquirida com muito treinamento.

O menino mau é um caso interessante. Desde muito novinho sua atenção era para a maldade. Tentou matar o pai, prendeu o gato da família e jogou água fervente nele, dentre outras façanhas maléficas. Desapareceu da cidade. Imaginou-se que alguém o tinha tirado a vida. Trinta e poucos anos depois voltou à cidade incrivelmente transformado. Era um homem bom, amado por todos e pela família, que se dedicava a fazer o bem a todos. Como conseguiu isso? Treinando. Treinava todos os dias. Treina até hoje.

Dizem que Oscar, o Mão Santa, não jogava basquete até a adolescência. Viu um jogo, jogou uma fez e gostou. Convidado, começou a treinar. Treinou muito. Todos os dias. Treinava várias horas após todos terem ido embora. Todos os dias. Treinou tanto que passou a não errar arremessos que quase ninguém acertava com tanta frequência. Fez-se o gênio do basquete mundial, reverenciado em todo o planeta.

Lisbela sempre foi uma bela mulher. Bela e resmungona. Tinha a incrível habilidade de ver o lado ruim de tudo. Das flores nos jardins, via o espinho. Na beleza do azul do céu, incomodava-se com o calor. Se a noite estava estrelada, os mosquitos lhe inquietavam. Se alguém lhe fosse amável, a possibilidade de falsidade era aventada. A todo instante em família, o tempo todo com quem quer que seja, era assim a pobre garota. Não sabe por que ninguém lhe tem afeto, que não seja Arnaldo, o padeiro, que, segundo ela, só quer sexo.

Não importa quem sejamos. Importa saber que constantemente fazemos alguma coisa, pelo menos uma. Importa saber que coisa é e o que ela pode trazer como consequência. Se treinamos coisa boa, a possibilidade de consequências ruins advirem é pequena; se treinamos coisa ruim, a probabilidade de coisas boas advirem é baixa. Quem planta melancia não pode colher amendoim.

O que estamos treinando? O que esse treino poderá nos trazer amanhã ou no futuro distante? Saber a resposta hoje evita futuros desastrosos.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Referenciais Invertidos

Temos uma prática que parece natural, mas que nos traz muitos sofrimentos. É o hábito de nos comparar com os outros. O problema não é a comparação em si, que muito nos pode beneficiar, se feita de forma inteligente, mas a forma como procedemos. Esse procedimento provoca uma inversão na realidade, de maneira que vemos a aparência das coisas e as imaginamos como reais.

Maria vivia reclamando de José, seu marido. Acostumou-se a reclamar de uma forma tal, que se tornou um hábito. Reclamava quando ele trabalhava muito com tanta intensidade de quando ele não saía para trabalhar. Reagia com ódio ante qualquer tentativa do marido em fazê-la sorrir e tomava essas iniciativas como grosseria. Quando trocava algumas palavras com o parceiro, era para acusá-lo como responsável por toda a negatividade de sua vida.

Certo dia, um surto de sobriedade ventilou a mente da esposa. Algumas de suas amigas pareciam muito felizes e isso contribuía para aumentar sua infelicidade. Por que só ela sofria? - se perguntava. Decidida a deixar para traz a infelicidade, foi procurar o caminho para isso a partir de suas amigas. Aprenderia com elas a ser feliz também.

Liduína foi a primeira a ser consultada. Diante da pergunta da amiga, a esposa de cabelos ruivos deu uma imensa gargalhada. Nós, felizes? - surpreendeu-se a amiga visitada. Imagina, completou, que aquele cachorro do Zezu vive me traindo toda semana com umas colegas do trabalho. Ele pensa que eu não sei, mas eu vejo as mensagens que elas mandam para ele no celular. Enquanto a amiga falava, a esposa que se dizia infeliz pensava no seu caso e na confiança que seu marido tinha de lhe entregar o celular sem ressalvas. E estava convicto da sua fidelidade.

Tempos depois encontrou com Marcelina voltando da escola dos filhos. E diante da pergunta, a outra amiga respondeu com lágrimas nos olhos. Após enxugar as lágrimas, a amiga afrodescendente começou a relatar as várias agressões físicas que sofre quando o esposo chega bêbado em casa. E isso estava sendo bastante frequente nos últimos meses. Surpresa, Maria lembrava do marido, que não bebia e, mesmo ante as frases ácidas que recebia costumeiramente, jamais deu sinais de agressão.

Será que até Zenaide, pensou, teria uma vida infeliz, como as outras amigas? Novamente surpreendida, a amiga relatava as insuportáveis acusações de traidora que o marido lhe fazia, movido pela desconfiança do ciúme. Não podia olhar para ninguém na rua. Não tinha celular. Não podia nem falar com a família, que supostamente encobria as traições. E novamente a liberdade que Maria gozava lhe veio à mente, principalmente os incentivos que o marido lhe dava para que se relacionasse mais com a família e com os amigos.

À medida que a amiga prosseguia na sua investigação, aumentava a sua percepção de um fato curioso. Ela só via o que lhe chamava a atenção. E isso prendia tanto a sua atenção, que ela nem desconfiava que aquilo que gostava de ver nos outros era exatamente a encenação que escondia os traumas que as famílias sofriam. Liduína só recebia carinho, coisa que Maria gostava, quando seu marido queria reconciliação; Marcelina só recebia flores quando o  marido se recuperava do pobre e tomava ciência do que aprontou; e Zenaide só recebia presentes quando o marido percebia que tinha ido longe demais com as acusações.

As fotografias que via das famílias felizes postadas na internet representavam aquilo que gostariam que fosse constante, começou a desconfiar. E começou a investigar isso mais a fundo, sem que os amigos e amigas desconfiassem. E descobriu que todas elas têm algum ponto crucial de sofrimento, que nenhuma família é perfeita. E não são perfeitas porque as pessoas que as compõem são imperfeitas também.

Essas reflexões levaram a esposa rabugenta a reconhecer suas atitudes cruéis. Cometera injustiças com o marido esses anos todos. E o pior, reconhecia, é que as acusações tinham uma característica de certeza, convicção, que agora lhe surpreendia. Como pôde se deixar iludir? - refletia. Será que as acusações que fazia ao marido não eram características dela mesma? Não seria ela, a esposa, a imagem daquilo que colocava sob a responsabilidade do marido?

Se o marido pudesse lhe acusar de alguma coisa, que coisa seria essa? Durante vários dias procurou dele a resposta à questão. De tanto insistir, o marido lhe disse enfaticamente, como sempre fazia, e que a esposa confundia com grosseria: -- Maria, se seus defeitos fossem maiores do que as virtudes que vejo em você, tenha certeza de uma coisa: eu lhe diria. E completou: -- Enquanto eu os puder aturar, estamos juntos.

Surpreendida, a esposa passou a se dedicar, a cada dia, todos os dias, a ser uma esposa melhor. E começou impedindo que as ilusões de felicidades das outras famílias ocupasse a sua mente e o seu coração.

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Incrementalmente

Nesta semana inventei um tempinho, achei um dentista disponível e extraí um molar. Ainda com os efeitos da anestesia, senti um conforto muito grande com o encaixe da mandíbula com o maxilar, os ossos de cima e de baixo da boca. Depois que a anestesia passou, a sensação de bem estar aumentou e se consolidou depois que as dores da picada da agulha cessaram. Uma sensação de leveza tão grande tomou conta de mim, como se eu tivesse me renovado completamente. As dores e desconfortos daquele dente deram lugar àquela felicidade que eu sentia novamente e que nem mais me lembrava que sentira antes.

O que me levou à extração foram os profundos desconfortos a que eu estava me submetendo ao seguir as recomendações de vários dentistas, para que eu me esforçasse ao máximo para manter o dente. A cada inflamação mais grave da gengiva eu recorria aos dentistas, pedia que o retirassem, mas me convencia do esforço para mantê-lo. Muitas vezes, quando a bochecha toda inflamava, eu saía de casa resoluto para extraí-lo, mas me deixava convencer novamente. E nisso se foram oito longos anos desde a primeira vez que o quis retirá-lo definitivamente.

Mas o que levou esse dente a gerar tamanho desconforto? Eu suspeito que foi a extração do ciso, décadas atrás. Pela minha explicação ignorante, quando tirei o ciso o molar teve sua proteção retirada também, de maneira que, mesmo com as adequadas escovações diárias, a perda óssea foi, muito lentamente, progredindo. Creio que tirei o ciso no início da década de 2000, provavelmente no ano 2002. Há 17 anos.

Meus registros dizem que a primeira vez que tive desconforto mais intenso com o molar foi em 2011, oito anos atrás. Então, durante nove anos tive, progressivamente, muito lentamente, a evolução do meu problema. A imagem que faço desse processo é de um progresso infinitesimal, microscópico, praticamente imperceptível. Todos os dias, então, toda semana, todos os meses durante todos esses anos, progressivamente, muito lentamente, o desconforto foi se implantando. E tudo terminou nesta semana.

Essa experiência me fez pensar nos sucessos e fracassos da vida. Cada grande sucesso é construído muito lentamente ao longo de muito tempo. Lembro dos casos de Pelé e Oscar Mão Santa, atletas de renome mundial. Ambos, todos os dias, ficavam muitas horas a mais treinando, sozinhos, detalhes dos procedimentos que realizavam depois, nos treinos e nos jogos. Pelé repetia centenas de vezes o mesmo chute, o mesmo drible, todos os dias; Oscar arremessava, todos os dias, milhares de vezes a bola à cesta.

Repetiam cada jogada porque erravam muito. Suas repetições visavam justamente a reduzir ao máximo possível os erros. Miravam ao acerto, mas estudavam seus erros. E repetiam, repetiam, incessantemente, incansavelmente. Como o meu dente. A cada tempo que eu provavelmente demorava ou fazia inadequadamente minha higiene, a perda óssea progredia. Ela não tinha pressa. Estava apenas atenta aos meus erros, à minha despreocupação comigo mesmo.

Não apenas Pelé e Oscar são exemplos da quase perfeição que os esforços contínuos, lentos, incrementais trazem. Zico é outro exemplo. Mas sua preocupação era apenas com a cobrança de faltas e dribles desconcertantes. Pelé e Oscar tinham múltiplos desafios em mente. Pelé, por exemplo, era tão bom goleiro quanto atacante.

Um grande amoroso amigo sonhava em estudar doutorado em economia na Unicamp. Durante 17 longos anos foi reprovado no processo seletivo, apesar de estudar todos os dias, a cada tempo que tinha disponível. Lentamente, muito incrementalmente, sua capacidade competitiva aumentava e seu conhecimento econômico se consolidava. E o resultado foi sua aprovação. O mesmo aconteceu com a senhora que tentou por 26 anos entrar para o curso de medicina. O esforço incremental um dia leva ao sucesso.

Alguns dos meus alunos querem escrever bem com algumas poucas tentativas. E chegam a se irritar quando eu os conserto, quando mostro onde erraram. Certo dia perguntei a dois deles quanto tempo por semana eles dedicam à musculação, à academia. Responderam duas horas diárias, muitas vezes até no domingo, nos últimos dez anos. E lhes mostrei que o corpo esculpido deles era a consequência dessa dedicação. A cada esforço os músculos respondiam, lentamente, moldando-se, esculpindo-se incrementalmente.

Os fracassos são incompletude dos esforços. Fracassamos quando paramos. Somos fracassados quando desistimos de alcançar aquilo que queremos. Pelé não seria o atleta do século, se não se dedicasse horas e horas além do horário de treino a praticar o que praticou, Oscar não seria o maior cestinha de toda a história, Zico não seria o melhor cobrador de faltas de todos os tempos e tampouco meu amigo teria realizado o seu sonho de ser doutor em economia pela Unicamp.

Sonhos não acontecem do dia para a noite. Isso é fantasia. Sonhos são construídos lentamente, devagar, ao longo de muito tempo. Muitas vezes as dores e o próprio sangue são requisitos sem os quais o sucesso não vem. Vejam os casos dos grandes guitarristas. É muito dolorido, no início, o corte que as cordas provocam nos dedos e o sangue chega a marcar e a manchar os instrumentos. Mas é preciso persistir com a dor e com o sangue, se não a crosta, espécie de calo que os cortes vão gerar, não se instala nos dedos. E essa dor se prolonga por meses e até anos, dependendo do grau de precisão e inovação sonora que se pretende obter.

Sei que, ao retirar o molar, outro dente ficou desprotegido. Isso quer dizer que novo processo lento, incremental, se iniciou, da perda óssea desse dente desprotegido. E muito provavelmente em mais ou menos tempo eu terei que lidar com as consequências dessa lei universal irrevogável. Mas essa é uma batalha que, agora, eu estou disposto a enfrentar, cujo objetivo é retardar ao máximo o desconforto e prolongar essa maravilhosa sensação de bem estar que voltei a sentir.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Remendos

Muitas vezes batemos os olhos em alguém e uma força maior do que nossa capacidade de controle toma conta da gente e nos faz fazer coisas terríveis. Não que tenhamos a sordidez de planejar o mal que inconscientemente produzimos. Mas o fato é que fazemos e apenas o longo passar do tempo, quando por diversas vezes tivermos passado de sujeito a objeto da maldade, poderá nos fazer reconhecer o mal que causamos.

Uma boa parte da minha infância foi de muitas necessidades. Tínhamos dificuldades, meu pai e eu, até de conseguir comida para sobreviver. Almas caridosas surgiram e aliviaram o fardo do meu pai para com a minha sobrevivência. Ganhei comida. Ganhei roupas e calçados usados.

Fiquei tão maravilhado com aquelas roupas novas, aqueles sapatos bonitos, que na minha cabeça eram todos novinhos em folha. Na verdade, nem passava pela minha cabeça sequer pensar no tempo que aquelas dádivas tinham.

Eu não tinha o que vestir. Lembro com muita nitidez de ter apenas dois calções, ambos com furos na parte traseira de tanto sentar no chão porque onde eu habitava não tinha cadeiras ou o que quer que seja para sentar. Eu usava as roupas com a parte de trás para a frente. É claro que eu sentia vergonha quando de vez em quando meu órgão genital ficava saliente, mas eu podia fazer o quê? Quando o rasgo aumentava, cometia o erro de colocar um calção por cima do outro. Como consequência, tinha dias que eu ficava pelado em casa, para que os dois calções pudessem secar.

Blusa? Só tinha uma. Não lembro uma única vez de ter usado blusas nessa época. Nem eu e nenhum dos moleques da minha vizinhança. Era comum, então, brincarmos nus nos quintais, nas ruas. Não por que quiséssemos, mas porque não tínhamos o que vestir. As roupas rasgadas, acreditem, eram uma espécie de roupa para sair, passear.

Quando eu vesti as roupas usadas que ganhei, meus vizinhos ficaram encantados. Todos me admiravam. Como eu estava bonito, diziam alguns. Como eu fiquei diferente, diziam outros. Fiquei até um homenzinho, diziam os mais velhos. E, claro, eu me vi feliz porque o ambiente daquelas pessoas miseráveis era de felicidade por mim.

Vesti a roupa e fui para a casa da família que as me deu. Eu passaria o dia lá, ajudando em pequenos afazeres, faria as refeições, teria aulas particulares e à tarde voltaria para casa, com uma penela de comida para o meu pai jantar. Muitas vezes era a única alimentação que ele faria.

As pessoas que não me conheciam pareciam conhecer tudo da minha roupa. Viam defeitos na bermuda, manchas na blusa e até um pequeno buraco na parte das axilas. E não se contentavam apenas em ver os defeitos da minha roupa. Queriam mostrar que aquilo era muito importante, infinitamente reprovável, inadmissivelmente aceitável, profundamente humilhante.

Acho que, se não fosse a felicidade tão grande que eu estava sentindo por estar naquelas roupas, talvez eu tivesse dado ouvidos para o que as pessoas que não me conheciam falavam. E mais ainda: as pessoas caridosas, que as me deram, estavam mais felizes do que eu.

Mas aquilo me chamou a atenção de alguma forma. Eu comecei a aprender com tão pouca idade que há pessoas que se incomodam demais com os remendos na roupa dos outros. Se preocupam tanto com os outros que se esquecem de cuidar de si mesmas.

Muitas e muitas vezes vi pessoas humilharem as outras porque eram pretas ou porque eram brancas demais. Mas as pessoas que humilhavam não percebiam que elas também tinham suas particularidades. Um menino magro demais, apelidado de palito (apelido que ele detestava), humilhava uma menina porque ela alta demais. O garoto muito rico humilhava os que não tinham dinheiro, mas não percebia que sua boca fedia demais quanto ele falava.

Mas o mais inacreditável é que todas essas pessoas tinham coisas maravilhosas. Seus defeitos, seus remendos eram tão pequenos em relação à enormidade de coisas boas que apresentavam que fica difícil de acreditar que ficávamos cegos para o bem e com super-visão para ver o mal.

O tempo passou, andei por muitos e muitos lugares e a mesma constatação: somos muito bons para ver os remendos dos outros, mas não conseguimos ver os nossos remendos e tampouco as coisas boas que os outros apresentam. E isso é tão sério que tem até corrente de sábios dedicados exclusivamente à detectação dos remendos dos outros. É tão sério que se consideram os caras mais avançados do planeta. Tão avançados que ridicularizam todos os que não se consideram especialistas em ver os remendos dos outros. Igual ao que acontecia na minha infância.

A vida que tenho agora me ensinou que as pessoas que vencem na vida, que são felizes de verdade, não estão nem aí para o remendo dos outros. Os olhos deles estão voltados para aquela enormidade de coisas boas que acho que todo mundo tem. Quem vive dos remendos dos outros não tem tempo para ser feliz. Felicidade é uma coisa que se conquista, que é construída dia a dia, hora a hora, segundo a segundo.

Hoje, olho para trás à procura de imagens do meu passado e me flagro sorrindo muitas vezes... São momentos de felicidades com as lembranças da pureza infantil que os remendos das minhas roupas nunca conseguiram tapar.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Sorrisos

Pouca gente dá importância para o sorriso, mas dificilmente alguém consegue se livrar dos laços energéticos do bem que ele irradia. Muita gente diz, com acerto, que o sorriso é a porta (ou janela) da alma. Se já tivéssemos olhos de ver, como dizem as escrituras, perceberíamos, no mínimo, uma tênue luz levemente azulada a envolver todo o corpo físico dos indivíduos que vivem com sorriso no rosto.

Isso não quer dizer que vivam sorrindo. Ainda que estejam chorando, vêem-se com nitidez traço de sorrisos em suas fisionomias. A razão disso é que o corpo físico apenas expressa o que o corpo espiritual contém. Se o corpo espiritual sofre, a expressão física é de sofrimento; se sorri, o sorriso fica estampado no rosto em quaisquer circunstâncias.

É fundamental, contudo, não confundir sorriso com riso ou achar graça. Esses dois são expressões de contentamentos temporários, efêmeros, passageiros. Acontecem quando ouvimos uma piada ou nos deparamos com alguma situação engraçada. Achar graça ou rir é consequência da emotividade do corpo. Sorrir, não.

O sorriso é o encantamento da alma. E jamais é passageiro. É que a alma, quando alcançou determinado nível de elevação, consegue ver com nitidez a beleza divina em tudo com o que se depara. A alma não vê apenas com os olhos. Todo o corpo espiritual é capaz de, simultaneamente, captar todos os diversos sentidos físicos e os inúmeros sentidos extrafísicos, que nós, revestidos de corpos de carne, não conseguimos experimentar.

O êxtase é o encantamento da alma. É o mesmo que epifania. A diferença é que esta é passageira, enquanto aquele é permanente. O que significa que praticamente todos os indivíduos que ainda estão prisioneiros do corpo físico, em algum momento da vida, já tiveram o gostinho do estado permanente de felicidade que os espíritos evoluídos já alcançaram.

Evolução é, portanto, a palavra-chave. E no sentido pleno significa se despojar de tudo o que aprisiona. E o meio através do qual isso acontece não é outro que não seja o conhecimento. Conhecimento dos segredos da vida, do mundo, da alma. Por isso que jamais devemos confundir conhecimento com escolaridade. Tanto é assim que há incontáveis doutores que pouco sabem, de maneira que dezenas de anos de estudos não foram suficientes para lhes acrescentar uma pequena fagulha de sorriso nos seus tristes rostos.

O conhecimento que leva à evolução se materializa no verbo servir. É a servilitude (não confundir com servidão) que faz com que o indivíduo aprenda cada vez mais formas de servir. E aprender quer dizer estudar, testar, comprovar a eficiência e a eficácia do que foi aprendido, primeiro nele mesmo, para depois ajudar aos outros. Como consequência, o indivíduo que sorri é humilde.

E humildade é justamente o reconhecimento de que se sabe muito, mas esse muito não é suficiente para que sirva a todos que precisam de ajuda. Isso gera uma série de consequências, como a impossibilidade do indivíduo que sorri em julgar quem quer que seja, imputar aos outros quaisquer responsabilidades, ainda que a razão leve a isso, como nos casos dos crimes bárbaros. É humilde porque reconhece que já foi assim um dia e que não é fácil se libertar da animalidade que mata.

Quem coloca a culpa nos outros é triste e precisa de ajuda. E é em momentos como esse que o indivíduo que sorri chora. Foi o que aconteceu com Cristo, por exemplo, que chorou o que seus algozes estavam fazendo com eles mesmos ao imolarem-no na cruz. A dor física e a injustiça são irrelevantes diante de tantas dívidas que os outros terão que pagar a si mesmos um dia. Os indivíduos que sorriem choram a chegada da conta futura.

E isso lhes faz excelentes conselheiros. Excelentes conselheiros jamais são críticos. Crítica, aliás, é algo que não faz mais parte nem do pensamento e nem das atitudes das almas elevadas. Eles são amorosos. Quem é crítico não consegue amar porque são prisioneiros de um egoísmo tão profundo que não lhes permite ver e nem reconhecer suas ignorâncias. Não têm saber, têm crenças. Crença tão monoideísta que a única coisa que dizem saber é que a crítica tem que ser praticada. E quem critica não consegue obter a intimidade necessária aos aconselhamentos.

Como já percorreram uma distância muito superior aos seus irmãos de convívio, os indivíduos que sorriem sabem que a estrada tem muitos perigos. E sabem, acima de tudo, que os perigos são arquitetados por nós mesmos. Para que não sucumbissem no passado, obtiveram ajuda de inúmeros irmãos de caminhada e de benfeitores que fizeram o caminho de volta para ajudar. E a cada vez que presenciam esses atos de amor, sorriem.

Sorriem para o nascer do dia e a infinidade de cores que a luz do sol traz, mas também sorriem para as entidades da noite e a necessidade do repouso. Sorriem a graça da vida, assim como sorriem o fim da vida carnal, porque sabem que o espírito é imortal. A morte é apenas a volta para casa depois de uma curta temporada por aqui. Sorriem porque vêem em tudo a mão amorosa de Deus.

E quando você encontrar por aí com alguém com um sorriso permanente no rosto, aprecie-no. Você estará na frente de alguém com quem vale a pena a proximidade física por alguns instantes. Não fique muito tempo, não conviva com ele. É provável que você não o suporte. Eles são como espelho: refletem o que somos.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Autonomia

A palavra autonomia parece ser desconhecida da maioria daqueles que a pronunciam. E por não saberem o seu significado, não sabem, na prática, o que essa palavra pretende que entendamos. Isso quer dizer que quase todos querem ser autônomos, quase todos querem autonomia, mas não estão dispostos a pagar o preço para isso. A razão disso é simples de ser entendida: assim como tudo na vida, a autonomia tem um preço, que varia com a "quantidade e intensidade" pretendida. Quanto maior a pretensão, maior o preço a ser pago. Vejamos isso mais de perto.

Etimologicamente, o termo autonomia é a junção de "auto" + "nomia". "Auto", do grego, significa "a si mesmo" e "nomia" quer dizer regra, normal, lei. Ao pé da letra, quer dizer "lei feita por si mesmo". Isso pode dar a impressão de que autonomia é o poder que alguém (ou uma organização) tem para fazer o que bem entender, já que é capaz de criar suas próprias leis. Mas não é isso. Ou melhor, não é "bem" assim.

A palavra tem que ser vista e compreendida como o processo final do desenvolvimento integral humano. Esse processo se inicia na fase intrauterina, que se caracteriza por ser "anômica", ou seja, sem lei, sem norma ("a" = não, sem + "nomia" = lei, norma). Essa fase deveria terminar quando o indivíduo começasse a aprender a obedecer, que é a característica da fase seguinte, a heteronomia (que vem de "hetero" = outro + "nomia", lei, norma). Essa mudança se dá aos poucos, quando a família ensina às crianças o que é certo e errado, o que a leva à obediência.

Todo indivíduo precisa aprender a obedecer as normas familiares e da sociedade, principalmente para que possa ajudar a aperfeiçoá-las, uma das características do indivíduo autônomo. É que obedecer significa conhecer a lei, saber como colocá-la em prática e praticá-la sob quaisquer circunstâncias.

Existem leis das pessoas (heteronomia) e leis das comunidades (socionomia). A socionomia é a terceira etapa do desenvolvimento das pessoas, onde se aprende que todo grupo tem normas e que essas normas precisam ser obedecidas. Quando o indivíduo não obedece as normas do grupo, tende a ser alvo de algum tipo de punição, como o isolamento e a indiferença. Quando transgride (não obedece) regras formais da comunidade (leis), pode até sofre sanções penais.

Não obedecer às leis não denota apenas ignorância, mas sobretudo incivilidade, atitude antissocial, típica das crianças, e que é uma marca da fase de anomia. As normas podem ser mudadas. Para isso, há que se conhecer os procedimentos, que é outra característica do indivíduo autônomo. Sob nenhuma circunstância as leis podem ser infringidas.

Quando o indivíduo está na fase de heteronomia, as leis são criadas pelos outros (pais, familiares etc.) para que ele não se machuque. Por isso dizem que "não pode" colocar o dedo na tomada de energia, "não pode" subir na mesa e assim por diante. Quando se está na fase de socionomia, as leis precisam ser obedecidas para que o indivíduo não machuque os outros e seja protegido das ações dos outros. Por isso "não pode" andar sem cinto de segurança nos automóveis e "não pode" roubar.

A etapa de autonomia é uma consequência natural das anteriores. E agora é fácil entender. Depois que o indivíduo aprendeu a obedecer as regras individuais e sociais, percebe que suas ações podem lhe ferir ou ferir alguém. E o que ele faz? Bingo!!! Ele cria suas próprias leis para complementar as leis existentes. Nenhuma de suas leis pode ferir as leis atuais. Suas leis estão em consonância com elas.

Isso tem implicações sérias para a vida humana associada. Vejamos um exemplo importantíssimo. Não há nenhuma lei que diz que o indivíduo tem que prover sua subsistência, que tem que conseguir dinheiro honestamente para que possa viver. Quando alguém decide procurar emprego ou obter uma qualificação profissional, está se colocando uma lei, uma norma. Se o indivíduo não conseguir dinheiro para subsistir e alguém o fizer, está abrindo mão de sua autonomia.

O mesmo acontece quando arranja emprego. No exato instante em que assina o contrato de trabalho está dizendo que abre mão de sua autonomia durante determinado período de tempo e passa a obedecer a alguém (heteronomia) ou grupo de pessoas (socionomia). E isso acontece também durante várias etapas da vida. Se alguém adoece e no hospital lhe dizem que deve tomar certa medicação em determinados horários, obedecer ao médico é heteronomia e ao hospital, socionomia.

A mesma regra vale para organizações, como empresas privadas e públicas. A autonomia organizacional é a capacidade que a organização tem de ditar suas próprias normas, seguir suas próprias leis, sem descumprir as leis existentes. E não há autonomia com dependência financeira. Toda forma de dependência é uma comprovação explícita da falta de autonomia organizacional e individual. Se uma organização pública não gera seu próprio dinheiro, não é autônoma e, portanto, deve obedecer a quem lhe supre. Se o indivíduo não provém suas necessidades de dinheiro, deve obedecer a quem o faz. Simples assim.

No caso de organizações, é simples ser autônoma: basta que consiga gerar seu próprio dinheiro e seus recursos. Dinheiro é um tipo de recurso e recurso é tudo aquilo que um indivíduo ou organização precisa. Se o indivíduo precisa de um celular para se comunicar com seus amigos, o celular é um recurso; se precisa de dinheiro para ir ao cinema, dinheiro é outro tipo de recurso. O mesmo vale para as organizações. Se a organização não consegue pagar seus fornecedores e precisa do dinheiro do dono, deve obediência e ele; se a empresa pública não consegue, deve obediência ao governo.

Quase todas as formas de incapacidade autônoma é decorrente da incapacidade de gerar seu próprio dinheiro. Pelo menos não em quantidade suficiente para suprir todas as suas necessidades. Organizações que são capazes de fazê-lo tem o máximo de autonomia possível. O mesmo vale para pessoas, regra que vale até para crianças, que fazem suas infantilidades dominar os próprios pais.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Colheitas Obrigatórias

Certo dia ouvi pela enésima vez um julgamento apressado muito comum sobre as origens do sucesso das pessoas. Ainda que com o peso da supersimplificação, a desonestidade tem sido apontada como a causa oculta do sucesso dos outros. De forma mais específica, o tráfico de drogas e o roubo puro e simples explicariam a comodidade que muitos indivíduos usufruem. Os chamados cientistas têm uma explicação ainda mais pavoneada para apontar a causa da riqueza de países e nações: a exploração dos outros países, nações e povos. Mas é isso mesmo?

Um caboco que conheço muito bem sempre foi muito dedicado aos estudos. Além de dedicado, foi abençoado com uma capacidade muito grande de aprender qualquer coisa. E aprendia muito rápido. Lembro que muitas vezes, quando a professora terminava de escrever as questões no quadro, para serem resolvidas logo em seguida, meu amigo terminava não apenas de transcrever as questões para o seu caderno, mas escrevia junto as respostas! Hoje é um cientista reconhecido internacionalmente.

Outro amigo de infância tinha uma inteligência fora do normal. Tão fora do normal que os esquemas de avaliação de aprendizagem a que éramos submetidos não apontavam sua genialidade. Durante todo o ensino fundamental e médio foi dado como estudante abaixo da média, tanto que ele próprio tinha se convencido disso. Sorte dele que a convicção de que suas habilidades extraacadêmicas nunca se perdera. Diariamente treinava e praticava essas habilidades, criando outras ainda mais pujantes. Hoje é o único milionário de toda a minha turma.

Uma vez apareceu em Alenquer, minha cidade natal, um nordestino com o corpo quase escondido pelas redes que revendia. Periodicamente ele comparecia à agenda da Fazenda Estadual da cidade para honrar seus compromissos tributários. Eu sempre o via trabalhando desde cedo às mais altas horas da noite. Começou como vendedor ambulante, depois como comerciante de local fixo. Hoje é provavelmente o maior comerciante da cidade.

O sonho de um grande amigo era fazer doutorado em economia na Unicamp, um dos melhores do país. Tentou o ingresso durante 14 anos. No décimo quinto, passou. Hoje é um estudioso renomado dos problemas nacionais e muito procurado pelas soluções criativas que constrói. Outra amiga sonhava ser médica, mas estava ciente de suas limitações cognitivas, segundo ela. Levou 22 anos para entrar na faculdade e  hoje desenvolve suas atividades com tanto amor, que é muito querida nas comunidades a que assiste.

Eu poderia relatar centenas e milhares de casos semelhantes para demonstrar uma coisa simples: todo sucesso tem um preço. Ninguém é bem sucedido por acaso. Pode acontecer, e isso é natural, que alguém herde fortunas ou o nome famoso. Mas alguém teve que pagar um preço alto pela fortuna e para construir a fama do nome, e que depois foram transferidas para os herdeiros.

E isso parece ser tão verdadeiro, que todas as vezes que vejo alguém de sucesso procuro entender o caminho que trilhou (o que equivale a dizer "o preço que pagou") para chegar até ali. Em todos os casos, sem exceção, vejo dor, aflição, ansiedade, medo e outras negatividades essencialmente humanas em conjunto com vontade de vencer, resistência a dores e aos sofrimentos, capacidade de se levantar a cada queda e outras inúmeras virtudes que apenas os bem sucedidos têm.

E uma convicção maior enraizou em mim: somos o resultado daquilo que plantamos. Nem mais, nem menos. Veja você. O que você é é exatamente aquilo que você foi capaz de plantar. Então está colhendo e vai colher o que plantou e o que está plantando agora. O sucesso (que muitos chamam de vencer na vida) não pode ser feito por alguém para o outro. É como as necessidades fisiológicas: ninguém pode se alimentar por mim, ninguém pode tomar água por outra pessoa, da mesma forma que ninguém pode tomar para si o câncer que mina a vida de alguém que lhe é muito querido.

É claro que há os sucessos desonestos, como os casos de corrupção e de roubos mesmo. Mas esses não se mantêm por muito tempo, além de serem, em termos quantitativos e qualitativos, exemplos escassos em escala mundial e nacional. Há muito mais gente de sucesso  honesta, que seguiu a lei, do que gente desonesta, que burlou a lei. A razão é simples: mais cedo ou mais tarde os desonestos se encontram com a justiça. E o que era sucesso se transforma em humilhação.

Há, também, inúmeros casos diferentes de sucesso. Há os que conseguiram deixar o vício das drogas, por exemplo. Esses são casos de sucesso que precisariam entrar para os anais da história. É muito, muito difícil fazer o que fizeram. Da mesma forma que são casos de sucessos formidáveis a dedicação da vida a cuidar dos outros, porque é preciso vencer a vaidade e o egoísmo próprios. Também pesam na mesma medida os indivíduos que, mesmo podendo auferir lucros enormes com as oportunidades desonestas, preferem agir em conformidade com a lei dos homens e de suas consciências e se mantêm no caminho do bem. Todos esses (e muitos, muitos outros mais) são casos de sucesso maravilhosos, que estão além do sucesso material.

Lembro do caso muito divulgado do pai que teve o filhinho trucidado por um grupo de criminosos. A grandeza daquele homem foi tamanha que, condenados os indivíduos, ele cuidou de cada um dos que tiraram a vida de seu filho todos os dias em que estiveram presos. Cuidou de todos como cuidara de seu filho e transformou cada um deles em filho seu. Casos como esses são de um sucesso tão iluminado que poucos, raríssimos indivíduos no planeta, conseguem alcançar.

Olhe ao seu redor. Haverá sempre alguém bem sucedido. Vá investigar a origem do sucesso obtido. Você verá que o que estou mostrando neste texto é apenas uma rápida descrição do enorme sacrifício que é cultivar, todos os dias, com dedicação e amor, aquilo que queremos alcançar. Você perceberá que o futuro será a consequência do que você fizer hoje, agora, e todos os dias, a cada hora, a cada segundo.

E tenha certeza de uma coisa: aquilo que você plantar, você vai colher. O mesmo vale para comunidades, cidades, povos, estados, países, nações, planetas e sistemas planetários. Naturalmente que haverá vozes contrárias. Mas muito provavelmente são aquelas que aprenderam, equivocadamente, que o inferno são os outros. Conseguem ver um cisco no olho dos outros, mas nem desconfiam da trave que impede sua visão.

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Valores

Dia desses voltei a presenciar um fato ainda bastante corriqueiro: a suposta alteração moral de quem ocupa cargos de chefia. Isso pode causar problemas muito graves para a própria pessoa, assim como para os que com ela têm intimidade. Os problemas para a pessoa são diversos, como o isolamento e até a sabotagem, enquanto que, para os amigos, são quase sempre a frustração, aquela estranha sensação de terem convivido por muitos anos com uma pessoa que não conheciam - e que muitas vezes são tomadas equivocadamente como falsas. Vamos ver isso mais de perto.

Quatro amigos entraram ao mesmo tempo para uma empresa. Viviam e conviviam tanto no trabalho quanto fora dele. Suas famílias pareciam compor uma única família, tal era a intimidade que conseguiram auferir. O problema de um, quase sempre, era tido como problema de todos. Todos se ajudavam, assim como todos se zombavam. Eram felizes e tristes juntos.

Um deles, bastante dedicado, foi promovido a chefe deles e outros companheiros de unidade. As coisas, pouco a pouco, começaram a ficar estranhas entre os três amigos e o seu novo superior hierárquico. E a situação se complicou definitivamente quando um deles, com a intenção de ajudar o amigo chefe, resolveu resolver um problema que teria consequências negativas para sua unidade organizacional e que, provavelmente, afetaria o amigo gerente.

Sabendo da ação do subordinado, o chefe o interpelou. Dentre outras coisas, disse para jamais tomar qualquer decisão sem, antes, consultá-lo. E asseverou seu grande descontentamento com o que o ex-amigo fez, tanto que, se essa atitude se repetir, faria a comunicação à chefia do departamento. Triste, magoado, surpreso, sentido-se traído, o amigo relatou o ocorrido aos outros dois amigos. No final do expediente, foram os três se chorar se embebedando a perda definitiva do amigo.

Mas o que aconteceu? Vamos por partes. Toda posição, qualquer que seja ela, exige determinados tipos de comportamentos de quem a ocupa. Do auxiliar administrativo pode ser requerida a atenção para detalhes de documentos e a rapidez na sua confecção. De um gerente, pode ser cobrado o resultado benéfico de cada ação ou o controle severo de algum processo. Essa é a primeira coisa que precisa ser entendida: mudou a posição, mudou o comportamento, devido à mudança da responsabilidade.

Se o ex-amigo tivesse como superior alguém que cobra controle rigoroso das pessoas (e isso é imoral), processos ou resultados (quase sempre isso caracteriza pessoas inseguras), ele estava apenas cumprindo essa diretriz. Quem a tudo quer controlar não permite a criatividade, porque a criatividade não se controla. Não adianta o empregado ser o mais genial do mundo, se estiver em uma organização mecânica, ela não lhe será de muita serventia. Pelo contrário.

Segunda observação. Uma coisa é a mudança de comportamento em relação à posição e outra coisa é a mudança de comportamento moral. A mudança de comportamento em relação à posição são poucas e existem para garantir efetividade de processos e resultados; as mudanças de comportamento moral são a apresentação, o aparecimento de elementos da personalidade que estavam ausentes e que a investidura na nova posição fez aparecer.

Isso quer dizer que não foi a personalidade da pessoa que mudou para pior. As pessoas não involuem, não retrocedem, não desaprendem (só esquecemos o que não aprendemos). O que aconteceu é que aquele comportamento ruim estava oculto. Pessoas autoritárias podem se passar por anjos durante boa parte da sua vida não porque são desonestas ou dissimuladas, mas porque nenhuma circunstância apareceu para fazer eclodir aquele comportamento repudiado.

As pessoas só mudam para melhor. Quem não tem determinado traço de personalidade, que já aprendeu a superá-lo e a eliminá-lo, jamais o apresentará novamente. Eu imaginava que jamais falaria qualquer tipo de palavrão. E ninguém (e eu também) lembrava qualquer ocorrência minha neste sentido. Até que um dia, fazendo trabalhos domésticos sozinho, soltei um palavrão que me surpreendeu. Isso quer dizer que esse traço ainda permanece em mim.

Terceira e última coisa: quem ocupa cargo de chefia não está lá para resolver o problema de seus subordinados. Um chefe não é chefe para que receba os problemas de seu pessoal. Da mesma forma que o maestro não toca todos os instrumentos dos componentes de uma orquestra, o chefe está ali para coordenar a produção e o processo de produção da unidade. Não está ali para mandar simplesmente.

Como consequência, todo indivíduo precisa aprender a fazer suas tarefas (e a resolver os problemas inerentes a elas) a partir das diretrizes da chefia e da organização. Se a diretriz do chefe controlador for "não faça nada sem me avisar", isso tem que ser seguido. Os chefes modernos, ao incentivarem seu pessoal a inventar formas mais efetivas (de maior eficiência e eficácia), podem despertar neles a criatividade. E ser criativo é incontrolável.

Assim, ao invés do chefe repreender o ex-amigo, se agisse em uma unidade ou organização que privilegiasse a inovação o teria parabenizado, do ponto de vista gerencial. Do ponto de vista moral, que diz respeito à lealdade, amizade e tudo o que a fraternidade representa, teria sido grato para o resto da vida.

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Ordinários

Quase ninguém se dá conta de um fato corriqueiro nas nossas vidas: somos extremamente mal agradecidos com os que nos amam. Não que o façamos por crueldade, de forma planejada, deliberada. Não é isso. É nossa mentalidade que se acostuma com o bem que nos é feito de uma forma tal que, com o tempo, o bem nos parece tão corriqueiro e banal que cai no estágio que chamo de ordinário. Ordinário é isso: a normalidade, o corriqueiro, o comum. Mas essa atitude pode esconder profunda ingratidão.

Carmem foi uma garota muito formosa, muito cobiçada pelos moçoilos de seu bairro. Leitora das revistas de adolescentes, vivia a fantasiar o príncipe encantado que a desposaria e a faria feliz para sempre. Diferente dos adolescentes que conhecia, queria alguém que lhe fizesse vencedora, poderosa, uma verdadeira dama. Não importava sua aparência, se fosse preto ou azul, alto ou magro, deste ou de outro planeta. Queria apenas alguém que se importasse com ela.

Passou o tempo. E apareceu por aquelas redondezas um sujeito simpático, bastante culto, e que se encantou com a senhorita sonhadora. À primeira vista, não era o que desejava, mas o tempo foi mostrando que Aurélio se aproximava bastante da dedicação que a jovem sempre desejou. Apreciava a preocupação do jovem com seus estudos, com o cavalheirismo, com a dedicação que lhe tinha. E em pouco tempo se tornaram marido e esposa.

Passou o tempo. A esposa não percebeu que não respondia mais aos bom dia e boa noite do esposo, não notava o esforço do jovem em lhe preparar um almoço diferente e tampouco se a casa estava arrumada, coisa que a ex-adolescente já não fazia mais. Até o choro do filhinho era culpa do esposo, achava ela. Aurélio passou de cavalheiro a indivíduo sórdido, apesar de seus esforços em fazer o bem à sonhadora esposa.

Outro exemplo interessante foi o da instituição que contratou um professor diferente, como todos diziam. Gostava de ensinar. Gostava tanto que, ao invés de falar mal dos alunos nas rodas de conversa com os professores, relatava as experiências bem sucedidas que fazia. Gostava de pesquisar. Gostava tanto que todo ano publicava vários artigos e livros de sua área e de áreas correlatas. Gostava de ajudar. Gostava tanto que suas pesquisas quase sempre se transformavam em soluções para problemas de sua instituição e de organizações parceiras.

Logo no início, quase ninguém acreditava que alguém pudesse publicar alguma coisa por ali. As primeiras publicações encheram os colegas de incredulidade e satisfação. À medida que se avolumaram e se tornaram constantes, as publicações se transformaram em fontes de inveja e ciúmes. A cada nova publicação, praticamente nenhum entusiasmo. Pelo contrário, ironias e piadas de mau gosto denunciavam a mudança abissal do ambiente. Sábio, o professor contratado pediu para sair.

E não eram apenas as publicações o problema. Os alunos ficaram encantados com as formas diferentes de eles mesmos aprenderem que o novo professor lhes ensinou. E o interessante, diziam-se, é que todos estudavam sozinhos todo o conteúdo da disciplina e mais o que não estava previsto ali. O professor funcionava como um grande maestro, tirando de cada um mais do que podia dar, motivando e liderando aquela massa de jovens em direção ao pleno aprendizado. Ninguém queria fazer a disciplina com outro professor que não fosse aquele forasteiro. E mais conflitos e intrigas aconteceram. Era hora de sair. Intermediou a volta à normalidade. E saiu.

O que se vê nesses exemplos é a perda do encanto inicial. A jovem sempre sonhou com alguém que fosse cavalheiro, mas não conseguiu conviver com alguém assim. A instituição há muito desejou um exemplo de professor, mas não estava preparada para conviver com um deles. Temos sempre a horrível atitude de imaginar que esses anjos são nossos escravos quando eles resolvem fazer parte das nossas vidas. Perdemos a grande oportunidade de aprender com eles. Aprender a ser como eles.

Nossos olhos ainda não estão preparados para ver pessoas elevadas. Quem já se elevou moralmente não fica como acólito bajulando os outros. Não vieram para as nossas vidas para outra coisa que não seja nos ensinar a amar. E amar não é falar "eu te amo" todos os dias. Amar é cuidar. E é isso o que essas pessoas extraordinárias fazem. Cuidam da gente ao nos ensinar como deveríamos ser ou fazer as coisas.

A jovem não conseguia ver a poesia que estava por trás de um almoço feito com delicadeza e tampouco os versos que faziam parte de tudo o que o jovem lhe fazia. Da mesma forma, a instituição não conseguiu perceber a sinfonia que o professor forasteiro estava apresentando, a não ser os seus alunos e instituições que publicavam seus textos. De tão cegos, não conseguimos ainda ver o óbvio: o quão rasteiros somos para elevar nossos olhos para o alto e nos encantar com o luzir das estrelas que por alguns momentos iluminam nossos caminhos, tornando-os, de extraordinários, em ordinários.

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Duas Lições Primorosas

Tem sido muito comum, infelizmente, ler notícias de pessoas que, no passado distante ou recente, foram muito famosas e até mesmo poderosas nas mais profundas necessidades. É o jogador de futebol que, antes milionário, agora mora de favor nos fundos da casa de alguém; o artista de televisão que fora deixado de lado e esquecido pelos seus melhores amigos de outrora; o apresentador que dominava as tardes de domingo que agora quase ninguém mais conhece ou ouviu falar.

Evidentemente que qualquer um faz da sua vida o que bem entender. E é necessário que seja assim. É preciso que cada um cuide de si mesmo para que aprenda as suas limitações, da mesma forma que precisa conhecer os seus pontos fortes, suas fortalezas. Todos nós somos assim. Temos muitos pontos fracos, mas também temos algumas coisas boas, fortes. Nosso desafio é melhorar ainda mais os pontos fortes e tentar transformar em fortes aquilos que ainda nos são fracos.

É este o sentido da vida que, ao que tudo indica, não foi aprendido por esses irmãos que agora se veem fracassados. Ou não tiveram quem lhes ensinassem ou foram ensinados e as deixaram de lado. Por que alguém se torna famoso e poderoso? A resposta é simples: porque tem alguma coisa que as pessoas valorizam. Essa coisa só é valorizada porque as pessoas consideram um bem para elas. A habilidade fantástica do jogador de futebol é muito valorizada porque traz prazer para as pessoas que apreciam o jogo. E é muito mais valorizada quando o jogador habilidoso faz parte do time para o qual as pessoas torcem. Isso significa que famosos e poderosos têm, sim, alguma coisa considerada boa.

O problema, ao que tudo indica, é que enquanto estão no auge da fama esquecem ou não aprenderam outra grande lição: tudo passa. Da mesma forma que a infância miserável de muitos deles passou, também o auge da fama um dia vai passar. Apesar de muitos não acreditarem na possibilidade de um dia deixar de serem ricos e de verem vários casos de colegas que de rico ficaram pobres, acham que esse futuro jamais será a sua cruel realidade.

O que essas pessoas não percebem é que a triste realidade dos outros é uma forma de advertência, um chamamento de atenção para que não façam o que os outros fizeram. Está sendo mostrada ali a realidade nua e triste para que não sigam aquele caminho. Mas, quem se preocupa em aprender com as tristezas dos outros? Se esses irmãos compreendessem essas duas lições, mudariam suas atitudes imediatamente. E fariam pelo menos duas coisas urgentemente.

A primeira era cuidar dos irmãos infelizes. É que cuidar dos outros é consequência de quem realmente aprendeu a lição. Não cuidar é prova de que não aprendeu. A razão? Se nosso irmão hoje famoso e poderoso amanhã ficar na pior, gostaria muito de ter a ajuda dos outros para se levantar. Aquele que não cuidou dos outros pessoalmente quando era poderoso e famoso muito provavelmente não terá quem o ajude, caso ele caia na infelicidade de perder tudo o que tinha.

A segunda coisa é que, ao ajudar os outros, aprendemos a como evitar ficar naquela situação. Se cuido de viciados em álcool, aprendo como se viciar, como se tornar um viciado. E ao saber como se viciar fica mais facilitado não trilhar aquele caminho. Se nossos irmãos hoje miseráveis tivessem praticado a ajuda aos outros, muito provavelmente não teriam jogado fora tudo o que a fama e o poder lhes deram.

Tudo passa. Até a situação lamentável em que os ex-poderosos se encontram hoje também passará. Não há dor que seja eterna, da mesma forma que não há felicidade que dure para sempre neste planeta. E essa lição é universal. Também vale para mim. E para você.

Veja que dons e habilidades você tem e que as pessoas admiram. Veja maneiras de melhorá-los ainda mais, ter mais domínio sobre eles, de maneira que as pessoas aumentem ainda mais a admiração por eles. Procure conhecer pessoas que tinham esses dons e habilidades e fracassaram. Aprenda com elas ajudando-as a se levantar. Com o tempo você perceberá que a ajuda que você dispensou a elas lhe fez ainda mais primoroso nos dons e habilidades.

Não fique receoso de ensinar e tampouco dê ouvidos a quem lhe tenta impedir de fazer isso. Quem recebe a ajuda dos outros jamais esquece. Pode até não retribuir, mas não esquece. Mas, dentre inúmeros que a gente ajudar, alguns serão capazes de levar adiante a corrente da ajuda, replicando aquilo que você deu a eles. E, se um dia você cair (o que pode acontecer), quem sabe aquele que você ajudou não será aquele que lhe ajudará a se levantar?

sábado, 6 de julho de 2019

Primitivos e Civilizados

Conta-se que um executivo muito bem sucedido se desencantou com o enorme sucesso alcançado. De uma hora para outra, segundo os olhos da maioria, abandonou tudo e foi conviver com uma tribo indígena do alto Curuá, quase na fronteira com as Guianas. Ali chegando, muito comunicativo, ficou amigo de todos, principalmente dos caciques. Acostumado aos ambientes de alta liderança, se sentiu à vontade com a feliz situação de não se intrometer na vida da tribo.

Os primeiros dias lhe foram renovadores. Banhou-se nos inúmeros rios da região, aprendeu a caçar (sim, índio mata animais para comer), pescar, fazer ticujá para pegar pássaros. Com o passar dos anos, dominou a técnica da queimada das matas (sim, índio queima a mata também) para fazer as mesmas lavouras de sempre, principalmente o cultivo da mandioca.

O ex-administrador apenas observava. Livre das obrigatoriedades instintuais de anotações para compreender com profundidade cada processo, cada etapa de cada procedimento, cada componente de cada etapa de cada procedimento de cada processo, assistia à vida dos outros como se assiste a um filme. Mas os dias foram passando..

De uma hora para outra a caça pareceu se esgotar, os peixes sumiram, os pássaros já não mais sobrevoavam a comunidade e a terra pareceu se recusar a dar alimentos. Rompe Mato deve estar contrariado, pensava a maioria dos indígenas. Os chefes, aconselhados por um grupo de doze índios, tinham certeza disso.

O conselho era acionado nos períodos de crises semelhantes. Suas soluções consistiam no refazer e reaplicar as soluções que alguns aventureiros lhes recomendavam nas poucas vezes que algum deles aparecia por ali. Para validar as recomendações, consultavam os conselhos das duas tribos vizinhas, que adotavam o mesmo procedimento.

Chamou a atenção do forasteiro a adoção das mesmas medidas para problemas supostamente parecidos. A notoriedade de muitos conselheiros se devia justamente a isso: falar de cor cada detalhe da solução. O detalhamento era de ordem tão fantástica, que chegavam a se revezar por algumas semanas, segundo a segundo, minuto a minuto.

Quando faltavam peixes, alimentavam-se de outras fontes de proteína animal; se a terra se recusava a dar alimentos, a tribo se abstinha de seus frutos. Mas era a primeira vez que tudo faltava. Rompe Mato deveria realmente estar furioso. O que fazer? Não havia soluções para este problema nas memórias dos conselheiros.

Ainda não dominavam os esquemas de causa-efeito e tampouco a ideia de que as coisas têm uma lógica interna. Para cada problema que aparecia, consultavam seus vizinhos ou acolhiam as recomendações de forasteiros, muitos deles zombeteiros.

Diferentemente dos pagés, o conselho não se especializou em conselhos. Geralmente seus membros eram escolhidos dentre os voluntários. Como todo índio primitivo, quase sem contato com outras tribos e humanos, vivia para comer e comia para viver, como anotara o ex-executivo. Para que se preocupar com a gestão da tribo, se havia ali caciques, pagés e conselheiros?

Na prática, todo o futuro estava contido no passado, que se repetia continuamente todos os dias. O movimento circular, imperceptível até para o mais brilhante da tribo, parecia ser o máximo de felicidade e prosperidade que se poderia almejar. E todos os seus esforços eram direcionados justamente para que o passado se eternizasse na vivência do presente. Não sabiam disso. Suas ações é que eram a manifestação desse não saber.

Certa vez um forasteiro tentou lhes falar da "estupidez" desses procedimentos, mas foi violentamente repelido e obrigado a deixar a tribo, sob pena de ser esquartejado e comido (esses índios praticavam a antropofagia nestes casos, como forma de fazer desaparecer esse tipo de ameaça à normalidade tribal.). É que as soluções para os problemas (e todos os demais procedimentos) não deviam ser contestadas. Quando apresentadas, era para serem aplaudidas.

Depois de alguns anos, o citadino resolveu voltar para o seu habitat. O que aprendera lhe foi de uma riqueza imensurável e indizível para o retomar de suas atividades profissionais. Sua fortuna se avolumou magicamente em pouco tempo. De vez em quando ainda volta àquela tribo. Cada vez mais raramente...

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Razão Inversa

Nesses tempos de ódios exacerbados, chama a atenção o fato de algumas pessoas não perceberem que aquilo que elas fazem é exatamente o contrário daquilo que elas falam. Se fossem pessoas chamadas comuns, tudo bem. Mas são pessoas consideradas da elite intelectual do País que procedem dessa forma. O mais agravante é que elas não percebem essa dissonância, o que implica em admitir que o fazem inconscientemente. Como consequência, o que elas falam não é o que efetivamente elas acreditam, o que só nos resta admitir que o que fazem é o que realmente são.

Uma colega escreveu um texto de muito sucesso entre o público que se diz de esquerda. Ali, provava por A + B que a direita é intolerante. Não apenas intolerante, mas detinha como característica tudo o que é doença moral. O texto foi escrito com uma tonalidade tão raivosa, que muitas vezes não tive dúvida de que aquilo era uma autodescrição. A forma como todos os que não compartilhavam com as suas ideias eram tratados era tão aviltante que a intolerância parecia saltar do papel e morder quem o lia.

Li o texto, fiz algumas anotações e na primeira oportunidade conversei com ela. Senti que ela ficou triste quando eu lhe falei que o texto parecia muito raivoso. Fiquei feliz quando ela assentiu que estava com raiva quando o escreveu. Por isso eu mostrei que o texto era uma declaração explícita de intolerância. Para minha surpresa, a colega enraiveceu. Olhou para mim de cima a baixo, bufou e me disse que não estava me reconhecendo. Eu completei dizendo que ela não podia ser intolerante ao escrever defendendo a tolerância. Fui surpreendido com a afirmativa dela de que para defender a tolerância é necessário até ser intolerante. Calei.

Outro colega vivia defendendo nas suas aulas a necessidade da democracia em todos os espaços da vida humana associada. O problema é democracia para ele se resume a escolha. Basta as pessoas escolherem, que ele chama democracia. Seus alunos escolhem fazer trabalho ao invés de prova: isso é democracia, mesmo as notas sendo aferidas, para as meninas, com base no assédio moral e sexual; para os meninos, eram a subserviência. Suas práticas democráticas terminaram no dia em que o pai de uma das alunas assediadas tentou lhe matar e foi demitido.

Há quem chame a atenção dos filhos, quando falam palavrão, com palavrões mais tenebrosos ainda. E não percebem. Tem os que só faltam matar os filhos com agressões físicas apenas para lhes ensinar que não se deve bater nos outros. E não percebem. Há os corruptos que roubam milhões inúmeras vezes, mas ficam profundamente violentos quando descobrem que outros estão roubando. E não percebem. Outros cometem todo tipo de infração no trânsito com o filho do lado e os instruem dizendo que não façam aquilo. E não percebem.

Esses indivíduos estão cegos? São dementes? Não. Apenas os seus conhecimentos estão invertidos. Eles acham que é o que falam o que importa, não as suas ações. Eles não sabem o que é aprender e nem o que é saber. Eles acham que alguém sabe alguma coisa quando fala dessa coisa. Eles não sabem que isso não é saber. Eles confundem discurso com saber. Eles não sabem que saber é fazer.

Um indivíduo só sabe efetivamente alguma coisa se ele souber fazer alguma coisa com o que ele diz saber. Um indivíduo só sabe cozinhar, se ele realmente cozinhar alguma coisa. Uma pessoa só sabe andar de bicicleta, se ela montar em uma bicicleta e sair andando normalmente. Alguém só sabe escrever, se pegar caneta e papel e fizer um texto. É o que fazemos a comprovação do que sabemos. Não o discurso. No máximo, o discurso pode nos dar uma pista do que o outro pode vir a saber.

Voltando aos nossos amigos. Nossa colega não entende de tolerância porque ela não sabe ser tolerante, da mesma forma que a democracia, para o nosso colega, ficou apenas nos discursos antigos que ele memorizou. Como ele não teve a felicidade de aprender as coisas, imaginou que bastava falar que já estava praticando a coisa de que falava. Bastava falar de democracia e fazer as pessoas escolherem o tipo de prova que ele achava que estava sendo democrata. É como a pessoa, que sabendo que as mesas têm pernas e falando delas, já se imaginava como marceneiro.

Ser alguma coisa demora e dói muito. Andar de bicicleta demora e custa vários arranhões pelo corpo. Dói. Saber escrever também demora muito e custa muitas e muitas horas de sofrimento. Ser tolerante também demora. E, acredite, dói muito. Provavelmente teremos que sofrer por décadas para aprendermos a ser tolerantes. É preciso engolir a raiva, o preconceito, o ciúme, a inveja, as dores, o ódio e toda sorte de doença moral. Talvez seja necessário conviver com o déspota e o tirano, tolerando-o, para aprender a ser tolerante. Em outra postagem vou explicar por que isso é necessário.

Ser democrata talvez seja ainda mais doloroso e demorado. Talvez sejam necessárias várias gerações para que aprendamos a sê-lo. Democracia é governo do povo. E o que é governar, se não gerir, se não administrar? E o que é administrar? Administrar é planejar, organizar, dirigir e controlar recursos para alcançar os objetivos de toda uma comunidade. Pergunto eu: quem faz isso? Mais ainda: onde é que está a bendita eleição nisso tudo? Quem foi que disse que para haver democracia tem que haver eleição? Na Grécia, nosso grande modelo de democracia, não havia eleição. Os governantes eram sorteados. Sim. Se fosse hoje, pegaríamos os nomes de todos os cidadãos de uma comunidade e sortearíamos quem seriam os vereadores, o prefeito, os juízes, os promotores e todos os dirigentes.

Da mesma forma, só se ensina os outros a não falar palavrão, se nunca o falarmos. As pessoas só aprendem a não agredir fisicamente as outras, se elas não forem agredidas e não virem agressões no seu dia a dia. Um professor só defende de verdade a educação quando ele faz seus alunos aprenderem a viver bem, a serem felizes, a resolver seus próprios problemas, a amar os outros, a servir, da mesma forma que um indivíduo só poderá ser cidadão se cuidar da sua cidade, da sua casa, do seu quintal, de sua rua, de sua quadra.

Os dicionários dizem que aquelas pessoas que falam uma coisa e agem de forma diferente são chamadas de hipócritas. A hipocrisia é quando a pessoa, conscientemente, tenta fazer as pessoas acreditarem no que elas falam, sem perceberem que elas agem diferente. O hipócrita tenta induzir os outros ao erro. O mundo de hoje está cheio de gente assim, em todos os lugares, sem exceção.

Se é assim, muitos podem pensar, então como identificar o indivíduo digno? Simples: veja sua ação. Não ligue para o que as pessoas falam. Veja o que elas fazem. É que as pessoas dignas não são de fazer muitos discursos porque sabem que os discursos são vazios, se  não há ação. As pessoas dignas agem. Veja no seu trabalho. Aqueles que fazem bem as coisas, não ficam se gabando. Aqueles que são democratas não vivem tentando convencer os outros. Aqueles que fazem o bem não ficam falando mal dos outros.

Se você tirar sua atenção do que as pessoas falam e focalizar o que elas fazem, não tenho dúvida: você verá as pessoas um pouquinho mais parecidas como elas realmente são. Mas, cuidado. Você pode se assustar.

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...