segunda-feira, 17 de junho de 2019

Razão Inversa

Nesses tempos de ódios exacerbados, chama a atenção o fato de algumas pessoas não perceberem que aquilo que elas fazem é exatamente o contrário daquilo que elas falam. Se fossem pessoas chamadas comuns, tudo bem. Mas são pessoas consideradas da elite intelectual do País que procedem dessa forma. O mais agravante é que elas não percebem essa dissonância, o que implica em admitir que o fazem inconscientemente. Como consequência, o que elas falam não é o que efetivamente elas acreditam, o que só nos resta admitir que o que fazem é o que realmente são.

Uma colega escreveu um texto de muito sucesso entre o público que se diz de esquerda. Ali, provava por A + B que a direita é intolerante. Não apenas intolerante, mas detinha como característica tudo o que é doença moral. O texto foi escrito com uma tonalidade tão raivosa, que muitas vezes não tive dúvida de que aquilo era uma autodescrição. A forma como todos os que não compartilhavam com as suas ideias eram tratados era tão aviltante que a intolerância parecia saltar do papel e morder quem o lia.

Li o texto, fiz algumas anotações e na primeira oportunidade conversei com ela. Senti que ela ficou triste quando eu lhe falei que o texto parecia muito raivoso. Fiquei feliz quando ela assentiu que estava com raiva quando o escreveu. Por isso eu mostrei que o texto era uma declaração explícita de intolerância. Para minha surpresa, a colega enraiveceu. Olhou para mim de cima a baixo, bufou e me disse que não estava me reconhecendo. Eu completei dizendo que ela não podia ser intolerante ao escrever defendendo a tolerância. Fui surpreendido com a afirmativa dela de que para defender a tolerância é necessário até ser intolerante. Calei.

Outro colega vivia defendendo nas suas aulas a necessidade da democracia em todos os espaços da vida humana associada. O problema é democracia para ele se resume a escolha. Basta as pessoas escolherem, que ele chama democracia. Seus alunos escolhem fazer trabalho ao invés de prova: isso é democracia, mesmo as notas sendo aferidas, para as meninas, com base no assédio moral e sexual; para os meninos, eram a subserviência. Suas práticas democráticas terminaram no dia em que o pai de uma das alunas assediadas tentou lhe matar e foi demitido.

Há quem chame a atenção dos filhos, quando falam palavrão, com palavrões mais tenebrosos ainda. E não percebem. Tem os que só faltam matar os filhos com agressões físicas apenas para lhes ensinar que não se deve bater nos outros. E não percebem. Há os corruptos que roubam milhões inúmeras vezes, mas ficam profundamente violentos quando descobrem que outros estão roubando. E não percebem. Outros cometem todo tipo de infração no trânsito com o filho do lado e os instruem dizendo que não façam aquilo. E não percebem.

Esses indivíduos estão cegos? São dementes? Não. Apenas os seus conhecimentos estão invertidos. Eles acham que é o que falam o que importa, não as suas ações. Eles não sabem o que é aprender e nem o que é saber. Eles acham que alguém sabe alguma coisa quando fala dessa coisa. Eles não sabem que isso não é saber. Eles confundem discurso com saber. Eles não sabem que saber é fazer.

Um indivíduo só sabe efetivamente alguma coisa se ele souber fazer alguma coisa com o que ele diz saber. Um indivíduo só sabe cozinhar, se ele realmente cozinhar alguma coisa. Uma pessoa só sabe andar de bicicleta, se ela montar em uma bicicleta e sair andando normalmente. Alguém só sabe escrever, se pegar caneta e papel e fizer um texto. É o que fazemos a comprovação do que sabemos. Não o discurso. No máximo, o discurso pode nos dar uma pista do que o outro pode vir a saber.

Voltando aos nossos amigos. Nossa colega não entende de tolerância porque ela não sabe ser tolerante, da mesma forma que a democracia, para o nosso colega, ficou apenas nos discursos antigos que ele memorizou. Como ele não teve a felicidade de aprender as coisas, imaginou que bastava falar que já estava praticando a coisa de que falava. Bastava falar de democracia e fazer as pessoas escolherem o tipo de prova que ele achava que estava sendo democrata. É como a pessoa, que sabendo que as mesas têm pernas e falando delas, já se imaginava como marceneiro.

Ser alguma coisa demora e dói muito. Andar de bicicleta demora e custa vários arranhões pelo corpo. Dói. Saber escrever também demora muito e custa muitas e muitas horas de sofrimento. Ser tolerante também demora. E, acredite, dói muito. Provavelmente teremos que sofrer por décadas para aprendermos a ser tolerantes. É preciso engolir a raiva, o preconceito, o ciúme, a inveja, as dores, o ódio e toda sorte de doença moral. Talvez seja necessário conviver com o déspota e o tirano, tolerando-o, para aprender a ser tolerante. Em outra postagem vou explicar por que isso é necessário.

Ser democrata talvez seja ainda mais doloroso e demorado. Talvez sejam necessárias várias gerações para que aprendamos a sê-lo. Democracia é governo do povo. E o que é governar, se não gerir, se não administrar? E o que é administrar? Administrar é planejar, organizar, dirigir e controlar recursos para alcançar os objetivos de toda uma comunidade. Pergunto eu: quem faz isso? Mais ainda: onde é que está a bendita eleição nisso tudo? Quem foi que disse que para haver democracia tem que haver eleição? Na Grécia, nosso grande modelo de democracia, não havia eleição. Os governantes eram sorteados. Sim. Se fosse hoje, pegaríamos os nomes de todos os cidadãos de uma comunidade e sortearíamos quem seriam os vereadores, o prefeito, os juízes, os promotores e todos os dirigentes.

Da mesma forma, só se ensina os outros a não falar palavrão, se nunca o falarmos. As pessoas só aprendem a não agredir fisicamente as outras, se elas não forem agredidas e não virem agressões no seu dia a dia. Um professor só defende de verdade a educação quando ele faz seus alunos aprenderem a viver bem, a serem felizes, a resolver seus próprios problemas, a amar os outros, a servir, da mesma forma que um indivíduo só poderá ser cidadão se cuidar da sua cidade, da sua casa, do seu quintal, de sua rua, de sua quadra.

Os dicionários dizem que aquelas pessoas que falam uma coisa e agem de forma diferente são chamadas de hipócritas. A hipocrisia é quando a pessoa, conscientemente, tenta fazer as pessoas acreditarem no que elas falam, sem perceberem que elas agem diferente. O hipócrita tenta induzir os outros ao erro. O mundo de hoje está cheio de gente assim, em todos os lugares, sem exceção.

Se é assim, muitos podem pensar, então como identificar o indivíduo digno? Simples: veja sua ação. Não ligue para o que as pessoas falam. Veja o que elas fazem. É que as pessoas dignas não são de fazer muitos discursos porque sabem que os discursos são vazios, se  não há ação. As pessoas dignas agem. Veja no seu trabalho. Aqueles que fazem bem as coisas, não ficam se gabando. Aqueles que são democratas não vivem tentando convencer os outros. Aqueles que fazem o bem não ficam falando mal dos outros.

Se você tirar sua atenção do que as pessoas falam e focalizar o que elas fazem, não tenho dúvida: você verá as pessoas um pouquinho mais parecidas como elas realmente são. Mas, cuidado. Você pode se assustar.

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