terça-feira, 29 de setembro de 2020

Vem com a Solução

O mundo está repleto de pessoas que preferem passar pela exagerada porta dos sentimentos inferiores do que pelo crivo depurador da sobriedade. Por essa razão criticam sem conhecer, reclamam sem compreender, rejeitam sem ajudar, isolam-se sem se darem chances de se conhecer. Tudo isso leva à confirmação de que não sabem que a vida, o que inclui as suas, carece de solução, não de destruição.

Uma vez ouvi de um amigo a confissão tristonha de que sua esposa não é como imaginava. E citou como exemplo o fato de que ela não conseguia deixar o banheiro limpo todos os dias. Quando ia tomar banho, estava tudo sujo. Era preciso, todos os dias, chamar a atenção da ocupada esposa para que fizesse a limpeza. Meu amigo quase desmaiou quando eu lhe perguntei: "E por que você não limpa, já que ela esquece todos os dias de fazer a limpeza?".

Esse exemplo mostra uma situação corriqueira em que a pessoa que reclama não percebe que sua infelicidade ou descontentamento é facilmente superada, resolvida. Basta que ela tenha um pouco mais de capacidade perceptiva e desloque o seu raciocínio da "obrigação de alguém" para a "necessidade de limpeza". Quando se raciocina com a obrigação, que nunca é de quem reclama, a infelicidade vai perdurar até que a pessoa reclamada possa suprir aquela necessidade. Mas, se o raciocínio focar a necessidade de alguma coisa acontecer, as coisas mudam de figura e colocam o reclamante no centro das atenções e o impulsionam para a ação.

Uma história incrível aconteceu quando um dos gerentes de uma empresa fez ácidas críticas ao paciente proprietário sobre as supostas conduções inadequadas do negócio que o fundador estava fazendo. Aquele homem simpático ouviu tudo com atenção. No final, fez a seguinte proposta ao seu crítico: "Você não quer assumir a presidência por pelo menos um mês e tentar executar o que você faz?". Surpreso e feliz pela oportunidade de assumir o comando da organização, que era o seu sonho, o gerente aceitou imediatamente.

As ações que recomendava ao proprietário logo começaram a surgir efeitos. Os dois principais fornecedores da empresa passaram a não fazer mais os suprimentos pelas novas políticas adotadas; o gerente de finanças e o de produção pediram demissão; os funcionários reduziram suas produtividades como represália aos cortes de alguns de seus benefícios; e os clientes passaram a fazer menos pedidos devido à redução dos prazos de pagamentos. Em duas semanas o crítico teve que ser retirado da presidência e demitido. Sua presença não era mais bem visto na empresa, apesar do sentimento amoroso que o proprietário tinha por ele.

Esse exemplo mostra que aquilo que falamos não é solução. O discurso quase sempre está em desconexão com a realidade. É apenas o que pensamos. Mas o pensamento precisa passar pelo crivo da racionalidade, da razoabilidade e da sobriedade. Foi o que faltou ao gerente que aspirava à presidência da empresa. Suas soluções eram apenas discursos. Ele não as testou antes, não fez simulações, para ver se elas realmente funcionavam. Na prática, deveria ter agido de outra forma, em parceria com o proprietário, para que pudessem, juntos, aos poucos, testar cada uma das suas alternativas. Isso teria evitado o fracasso.

Um professor de história vivia fazendo críticas  horrendas ao dirigente da instituição onde trabalhava. O diretor seria tirano, irresponsável, incompetente, fascista e assim por diante. Outra instituição, vendo nele um suposto líder, o convidou para dirigir uma de suas unidades, convite aceito prontamente. Teria a oportunidade de mostrar como se dirige uma instituição. Já nos primeiros dias percebeu que as pessoas não são fáceis de serem conduzidas, que poucas cumprem com suas obrigações, que outras precisam de recompensas constantes para agir e que na primeira oportunidade até seus ajudantes imediatos começaram a falar mal dele.

Na segunda semana o crítico começou a sentir o peso das denúncias e reclamações dos pais dos alunos. Começou a responder a dois processos criminais e três cíveis, dividindo seu tempo entre a instituição e a justiça. Outra parte do tempo era dedicado ao entendimento com os fornecedores de energia e água, além das obrigações tributárias municipais e federais, coisas de que nunca tinha ouvido falar. No início da terceira semana as críticas se voltaram para tudo na boca daquele diretor infeliz e o fizeram pedir demissão. Sentia uma enorme paz sendo apenas professor, como se um mundo tivesse sido retirado de suas costas.

Os críticos são incapazes de imaginar os desafios e adversidades próprias de determinadas posições. Ser diretor tem uma enormidade delas, assim como ser esposo e esposa. Meu amigo descobriu, por exemplo, que ele não desempenhava quase nenhuma de suas funções de marido, e as que realizava não as fazia adequadamente. Se alguém teria que reclamar, era sua esposa, não ele. Da mesma forma, se alguém teria que reclamar era o diretor da escola que o professor trabalhava, porque ele, o professor, não cumprir com suas funções adequadamente.

Esses casos mostram que reclamações, críticas, rejeições, descontentamento são diversos tipos de sentimentos inferiores. As pessoas que agem assim o fazem, muitas vezes, não por desonestidade ou maldade, mas por pura e simples ignorância, infantilidade. Se não fossem ignorantes, se tivessem conhecimento, perceberiam que tudo isso é perda de tempo. Ao invés de reclamar, criticar, rejeitar e ficar descontente, o correto é ir lá e fazer. Ao invés de fazer aparecer a inferioridade de seus sentimentos, o correto é solucionar o problema. Essas pessoas, portanto, não sabem agir porque não reconhecem que aquele é o momento exato da ação que não praticam.

Mas por que as pessoas reclamam, criticam, rejeitam e se descontentam? Por duas razões. A primeira é porque não sabem consertar o que consideram errado e, portanto, não têm solução para a situação. O que externalizam, então, é justamente esse sentimento de inconformação por depender de outro para fazer aquilo que são capazes de fazer, mas não estão dispostas a aprender. A segunda é a falta de vontade de sair de sua suposta posição de conforto de apenas apontar defeitos, sem se comprometer no passo seguinte, de ajudar a solucionar.

As pessoas que agem assim merecem todo o nosso carinho porque precisam de ajuda. Precisam de ajuda principalmente para que comecem a gostar de si mesmas, a cuidar delas mesmas. Ainda não aprenderam que suas vidas dependem do que forem capazes de fazer. E isso inclui essa fantástica capacidade de solucionar problemas que todo ser humano tem.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

És sociável? Tens certeza?

Há uma confusão recorrente sobre o termo sociabilidade e sociável. Muita gente imagina dizer alô, oi ou tchau é ser sociável. Outros tomam a palavra como sinônima de enturmar, estar entre pessoas, o oposto de não estar sozinho, não ficar sozinho, especialmente em ambientes onde haja muita gente. Essa concepção equivocada pode gerar muitos conflitos.

João sempre foi uma pessoa com extrema capacidade de relacionamento. Falante, quase sempre era o centro das atenções dos lugares por onde passava. Galanteador, estava sempre atento a qualquer aspecto feminino para lançar algum de seus inusitados elogios. De grande humor, animava as pessoas com suas ironias e improvisos desconcertantes. Esse amigo era o exemplo quase perfeito do que se costuma chamar sociável.

Onde chegava, João não conseguia ficar um metro distante de outra pessoa. Na verdade, jamais alguém o viu sozinho. Sempre que alguém dele se lembrava era sempre em situações onde estava se destacando pelas suas características de falante, galanteador e cômico. Em nenhuma outra situação era lembrado, nem quando precisavam de qualquer pessoa para algum tipo de trabalho ou situação considerada séria. Sintetizando, o amigo não era uma pessoa séria. Não podia ser levado a sério.

Tempos depois se soube que aquela figura sociável (altamente sociável, como muitos diziam) cometeu suicídio. A carta deixada mostrava que ele agia daquela forma para encobrir sua enorme solidão. Era tão só e triste que não suportava sua própria companhia. Não conseguia ficar sozinho, portanto. Era um verdadeiro martírio quando voltava para casa, quase sempre bêbado, para não se ver a sós consigo mesmo.

José era considerado antissocial e até mesmo antipático. Nos encontros sociais, fazia apenas o protocolo, como muitos diziam. Falava com todos, nessas ocasiões, preferencialmente com um boa noite a todos. Quando visitavam alguém de sua família que não ele, fazia as saudações normais e depois se retirava, deixando a visita a sós com quem ela veio visitar. Se interpelado, interagia com normalidade, no menor espaço de tempo possível.

Esse amigo era envolvido com inúmeros projetos e ações. Participava ativamente de diversos grupos de estudos sobre meio ambiente, através do qual ajudava a recuperar ambientes degradados e a cuidar de animais retirados de seus ambientes naturais. Trabalhava com cobrança de tributos e por essa razão conhecia muita gente nas diversas comunidades de sua cidade. E dava atenção especial para aquelas que viviam nas ruas, com aquisição de alimentos e vestimentas que pudessem aliviar um pouco o sofrimento dessas pessoas.

Diversas vezes José foi visto praticando essas ações, ajudando aos outros, cuidando do meio ambiente. Sua concentração era tanta para fazer essas coisas bem feitas que parecia esquecer quem estava a seu lado. E isso, aos olhos dos outros, era sinônimo de antissociabilidade. Com sua família, era um pai e filho normal, mas reservava um tempo para meditar e conversar consigo mesmo.

Esses dois exemplos são prototípicos para diferenciar quem é e quem não é, de fato, sociável. O que distingue a sociabilidade da antissociabilidade é exatamente o significado da palavra social, que vem da palavra sócio, que, por sua vez, quer dizer companheiro, seguidor. E quem é o companheiro, afinal, se não aquele que cuida do outro? Se não aquele que, além de conviver, de estar ao lado, age sempre em benefício do outro?

Alguém sociável é, então, aquele que cuida do outro. É aquele que não deixa o outro sozinho em suas necessidades. É aquele que respeita a individualidade do outro e, portanto, sabe que todos precisam de um tempo para ficar sozinhos para dialogarem consigo mesmos. 

Se ser sociável é ser companheiro, é ser seguidor, a primeira companhia que ele conquista é a sua. O ser sociável, então, jamais será solitário, sozinho. Não porque esteja sempre junto de outras pessoas, mas fundamentalmente porque ama e preza a sua própria companhia. A sociabilidade começa e tem sua raiz no próprio indivíduo. Quem não é feliz consigo mesmo, quem não ama a si mesmo, não consegue ser feliz com o outro, ainda que esteja rodeado e seja o centro de bilhões de outras pessoas.

O indivíduo sociável não está com o outro porque precisa de companhia, mas porque é companhia necessária ao outro. Porque sabe que é capaz de ser companheiro quando o outro precisar. É por essa razão que a sociabilidade é sempre doação. É diferente, portanto, de João, que fazia palhaçada porque precisava de atenção. Era carente. E a carência lhe levava a essas atitudes extremas de ser engraçado a qualquer custo, de simular cavalheirismo, de não deixar que os outros falassem.

Por incrível que possa parecer, o indivíduo sociável age muitas vezes sem que os outros saibam. É um parceiro oculto, anônimo. O que lhe interessa não é a ação em si, mas o efeito dela em proveito do outro. É um companheiro de fato, especialmente diante das necessidades, quando até os amigos desaparecem. Ser sociável é ser capaz de ajudar de forma nobre e desinteressada

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...