quarta-feira, 31 de março de 2021

Perspectivas e Percepções

Perspectivas e percepções são duas coisas que comandam a vida das pessoas, mas que são praticamente desconhecidas. Na verdade, são as duas causas primárias de todos os tipos de conflitos domésticos, relacionais e trabalhistas. É urgente, portanto, que se lance alguma luz sobre elas para que possamos dar um passo além na nossa capacidade de convivência e passar a ver nas dissonâncias grandes oportunidades de aprendizado.

Da mesma forma que comportamento gera comportamento, as nossas perspectivas influenciam sobremaneira as nossas percepções. Uma perspectiva é uma posição a partir da qual a gente observa alguma coisa. É como se fosse uma visada, como dizem os topógrafos. Se olho um automóvel a partir do seu lado esquerdo, percebo algumas coisas; como eu não consigo ver nada do que está na frente, atrás e do lado direito, nenhuma percepção eu consigo desenvolver. 

Perceber é ver, enxergar. Mas ver é diferente de olhar. Uma pessoa pode olhar uma figura inúmeras vezes, mas não consegue enxergar um gato cinza por entre as sombras das árvores. Um cientista iniciante pode olhar diversas vezes a mesma massa de dados e não conseguir enxergar praticamente nada ali.

Dependendo da perspectiva, a mesma cena pode ser vista de diferentes formas. Tomemos o caso de uma fotografia de uma casa de campo. Um biólogo vai enxergar com muita clareza coisas sobre os diversos tipos de vidas e ecossistemas que tem ali; o poeta vai ver inúmeras coisas apenas traduzíveis, muito distantemente, em poesias; um profissional de turismo perceberá naquele lugar um possível atrativo turístico. Cada um olha a mesma cena, mas tem diferentes percepções. Elas diferem justamente devido às perspectivas de cada um.

Mas vejamos agora algumas cenas muito comuns nos nossos cotidianos. O primeiro é o de uma bela família que tem um casal de filhos. Ela é muito sonhadora, no sentido exato do termo: sonha, como se estivesse dormindo, mesmo estando acordada. Certo dia, depois que ficou de férias, olhou seriamente para o esposo, e disse "Bem que a gente podia tirar pelo menos dez dias de férias e viajar, né?". O marido, já acostumado com aqueles momentos de delírios da esposa, apenas assentiu com a cabeça e continuou a trabalhar.

Como a esposa via as coisas? Qual era a sua perspectiva? Na sua mente deslizavam suavemente as belas praias e dunas de um lugar paradisíaco. Não fazia parte desse mundo mental um hotel de luxo, apenas um lugar decente e com alguns luxos singelos, se é que isso existe. Imaginava-se em restaurantes legais, com comidas saborosas e, se as crianças deixassem, alguns momentos em alguma boate interessante. Para as crianças pensava em passear nos parques temáticos e aproveitar momentos de descontração em algum shopping center. Evidentemente que algumas comprinhas não deveriam deixar de serem feitas. Nada além disso fazia parte da perspectiva daquela digna senhora. Depois de tanto estudar, era praticamente regra descansar e desfrutar.

Como o marido percebia a proposta da esposa? À medida que ela ia falando, vinha-lhe à tela mental as dificuldades de fechar as contas mensais. Em alguns dias o seu salário (o único da casa) não conseguia cobrir os gastos, quando precisava recorrer às economias que conseguia fazer, principalmente nos meses de recebimento do décimo terceiro salário e um terço de férias. Depois sua mente se concentrava no preço das passagens e hospedagens para quatro pessoas, mais as refeições, custos com passeios e compras. Se ela me ajudasse a economizar um pouco, ou, quem sabe, se encontrasse alguma forma de renda, pensava.

O conflito era inevitável porque o marido não conseguia ver as coisas da perspectiva da mulher, e muito menos a mulher do ponto de vista do marido. A esposa jamais imaginava que aquilo que ela queria custava pelo menos dois meses de salário líquido do marido. Para ela, bastaria entrar na internet e comprar as coisas, como se dinheiro caísse do céu. Aliás, dinheiro era algo que jamais fizera parte de sua tela mental quando deslizavam aquelas maravilhas de lugar onde queria estar. O marido, por sua vez, não conseguia entender como alguém é incapaz de não levar em consideração o custo daquilo que quer.

Mas os conflitos são fenômenos que estão em todos os lugares. E, quase sempre, as causas são as percepções e perspectivas dissonantes. João era o proprietário de uma pequena mercearia em uma periferia de capital amazônica. Como os trabalhos aumentaram, contratou um auxiliar, para ficar responsável pela estocagem e reposição de produtos. Luiz vivia com a cabeça na lua, reclamava João. O tempo todo precisava ser chamado a atenção porque alguma coisa fizera errado. Além do mais, chegava quase sempre exatamente na hora de abrir o comércio e queria sempre sair antes do horário.

João via em Luiz alguém que, no futuro, poderia ser um bom sócio. O jovem possuía o maior valor que o pequeno empresário sempre estimou, que é a honestidade. Sua perspectiva mostrava que em alguns anos o comércio ia crescer bastante e seria necessária a abertura de várias filiais na cidade. E quem mais poderia ser seu sócio no empreendimento que alguém honesto? Por isso percebia em Luiz aquele que o ajudaria a concretizar seu sonho.

Luiz, por outro lado, efetivamente era honesto. Sabia disso. Mas aceitou o emprego na mercearia porque precisava de dinheiro para o que mais gostava de fazer: treinar em academia e se mostrar para as mulheres. Se dependesse dele, jamais acordaria às seis da manhã, passar mais de uma hora dentro de um ônibus e ficar o dia inteiro em pé carregando produtos, todo suado e fedido. Estava ali por alguns momentos, dizia.

As pessoas maduras buscam entender a perspectiva do outro para entender as percepções que ele tem, mas sem pretender alterá-las. É algo mais ou menos assim: como você vê isso ou aquilo? Uma perspectiva ou percepção nada tem de certo ou errado. É apenas uma percepção e uma perspectiva que se relacionam. Nada mais do que isso. Se a mulher é sonhadora, paciência. Se o marido raciocina a partir da viabilidade financeira da diversão, também precisa ser compreendido. É a perspectiva deles com suas respectivas percepções.

Ninguém consegue mudar a percepção de ninguém. Apenas a própria pessoa consegue mudar a forma de ver as coisas ao mudar o seu ângulo de visão, a sua visada, a sua perspectiva. E todas as vezes que se faz isso, deixa-se de ver no outro um crápula ou criminoso. E deixa-se de lado o pedantismo de imaginar que a perspectiva do outro é limitada ou coisa assim, muito comum hoje em dia.

Aliás, todos os regimes totalitários, por exemplo, só aceitam uma única perspectiva e, portanto, uma única percepção. E regime totalitário não diz respeito apenas a governos, a países, mas também a relações entre marido e mulher e mãe e filhos. Regime vem do verbo reger, o que significa que o totalitarismo é regido por uma única visão do mundo. É o que acontece com os feministas, machistas, hedonistas, comunistas, capitalistas, fascistas, antifascistas e todo mundo que vê no outro, no que é diferente dele, a imagem do mal.

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...