segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Tu Te Irritas?

Não sei se é impressão, mas parece que as pessoas estão se irritando cada vez mais a cada dia. E três têm sido as demonstrações incontestáveis de que a irritação passou a habitar a mente e o coração delas: expressão facial fechada, agressão verbal e agressão física, nos casos extremos. É preciso combater urgentemente essa doença, que já alcança abrangência pandêmica, como mostram relatos diários de suas manifestações em todo o globo.

A primeira coisa é saber com relativa precisão o que é irritação. De forma geral, é a impaciência e intolerância com alguma coisa que incomoda. E conhecer esse incômodo é fundamental para que a impaciência e a intolerância seja extirpada com vida da pessoa. Se isso não for possível, pelo menos que possa conviver com ela sem grandes e nocivas consequências.

Tanto a impaciência quanto a intolerância são uma maneira consciente ou inconsciente de dizer "não aguento mais". A pessoa se irrita porque não aguenta mais aquilo que lhe causa incômodo. Muitas vezes o incômodo provoca dores horríveis, físicas, mentais ou espirituais. Por essa razão, todo mundo que convive com alguém que vive irritado ou que sofre desse mal precisa saber disso: a pessoa se irrita porque não aguenta mais alguma coisa. E é preciso descobrir o que a irrita e o porquê.

Disso resulta algumas descobertas óbvias, mas importantes. A primeira é que a pessoa se irrita porque não aguenta mais enfrentar a causa do seu incômodo. A primeira obviedade é que ela não tem mais controle físico ou emocional para enfrentar a situação e conviver com ela. Provavelmente já tentou inúmeras alternativas, mas fracassou. A irritação, portanto, é a forma mais eficiente encontrada para pelo menos reduzir o impacto do incômodo.

A segunda obviedade é que a causa do incômodo continua ali, perto dela, física, mental ou espiritualmente. Isso é óbvio porque, se a causa estivesse distante, provavelmente a irritação diminuiria sensivelmente ou diminuiria. Se estiver perto fisicamente, o simples distanciamento seria suficiente para eliminar a irritação. Contudo, muitas vezes as causas estão distantes fisicamente, mas como para a mente e para o espírito não há distância, além de estarem perto estão dentro do corpo (físico e espiritual) de quem sofre.

E a terceira obviedade é consequência das outras e que aponta para o tratamento: o doente não consegue se separar da causa que o incomoda. No fundo, e isso parece ser estarrecedor, é o próprio doente que cria a doença. Quase sempre ele está em processo simbiótico com a causa, alimentando e sendo alimentado por ela. Há, portanto, uma relação de codependência entre eles.

Luzia não suportava músicas "barulhentas". Todas as vezes que seus parentes aumentavam o volume do som, parecia que ela se transformava em uma leoa. Certa vez, inclusive, chegou a quebrar completamente o aparelho de som. Dizia que tinha a impressão de que o barulho estava dentro dela e que sua intensidade fazia ferver todos os seus órgãos internos. Desesperada, tinha que dar fim ao incômodo de alguma maneira.

Jujuca ficava possesso de raiva quando alguém espirrava perto dele. Achava um profundo desrespeito. Além disso, questionava, quem garantia que não houvesse o espalhamento de doenças em cada espirro dado? Tinha pavor, na verdade, de ser contaminado com alguma doença respiratória, coisa que desconhecia completamente, antes de ser curado.

Por incrível que isso possa parecer, a cura da irritação só se dá com o conhecimento. Aprender, novamente, parece funcionar com precisão em todos os casos de irritação. O que o irritado desconhece e que precisa aprender? Vejamos algumas delas.

a) O mundo é feito de relações. Isso significa que nada está isolado. Tudo contribui para a existência e dinâmica de outras coisas. Tudo o que fazemos beneficia a nós e/ou aos outros. Há uma relação da gente para com nós mesmos e outras relações da gente para com outras pessoas. As relações, portanto, são inevitáveis. Essa é a primeira coisa a ser aprendida.

b) Somos alvo do bem o tempo todo. Se a gente parar para observar, veremos que a maioria das coisas acontecem para nos beneficiar. Quando elas nos prejudicam, o próprio prejuízo tem sempre pelo menos um aspecto benéfico. Por exemplo, se entro e saio várias vezes de ambientes frios e quentes, posso pegar um resfriado. E, se isso me acontece, esse conhecimento é confirmado mais uma vez em minha experiência. Assim, estar resfriado (que é aparentemente um mal) se faz um bem (aquisição de conhecimento). E provavelmente vai reforçar em mim a necessidade de encontrar uma forma de evitá-lo, gerando  mais saber.

c) Aquilo que me irrita é apenas uma visão distorcida da realidade. A primeira distorção é decorrente do desconhecimento da lei das relações, em que é obrigatório que eu me relacione com o mundo, o que inclui aquilo que me causa irritação. A segunda é o desconhecimento de que aquilo que me deixa irritado também me traz pelo menos um benefício. Esse benefício é desconhecido ou sua origem.

d) Se a fonte da minha irritação é uma ação de outra pessoa, o problema não é meu. Entenda-se como problema a obrigatoriedade de corrigir a causa de alguma consequência ruim. Se alguém coloca o som em volume alto e eu considero isso um mal, por que me irritar, se não sou eu que estou causando o mal? Aquilo que os outros fazem é obrigação deles corrigir. E não compete a mim obrigá-los a isso.

e) Se o som alto da outra pessoa me causa irritação, o problema não é o som, mas o que há em mim. O autoconhecimento é fundamental em todas as situações de irritação. A experiência tem mostrado que a irritação é apenas a reverberação, o aumento de intensidade, daquilo que habita no indivíduo que se irrita. Pode ser inveja por não poder fazer o mesmo barulho, por exemplo.

O que queremos mostrar é que a irritação é a incapacidade do indivíduo de se autocontrolar. Ele não consegue separar as coisas de fora e de dentro dele. Por extensão, não consegue distinguir entre as coisas que ele pode e as que não pode controlar. O que o torna irritado, então, é o desconhecimento do fato de que pode controlar os efeitos das causas externos agindo sobre seus recursos internos.

Ricardinho não suportava a voz rouca da sua chefa temporária, que veio de outra cidade; resolveu o problema colocando um fone de ouvido com músicas de Beethoven em tons baixos. Mariinha não aguentava a presença de sua cunhada em sua casa nos finais de semana, mas a irritação foi eliminada quando começou a imaginar uma aura de luz em volta do corpo da irmã de seu marido. Jozito deixou completamente de se ofender com as ironias de Vivinho quando soube que elas eram expressões de profundas invejas.

O conhecimento de que a irritação não é originária dos outros mas do que há em nós leva, necessariamente, à invenção de alguma estratégia de uso dos recursos internos para pelo menos frear aquilo que nos irrita. Não é o que está fora que me causa a irritação, mas a forma como eu reajo. Não posso impedir que o céu deixe de ser azul, mas posso inventar uma forma de não deixar que isso me irrite. E o que fazer com as aparentes causas distantes?

Dimitriva era altamente preconceituosa com os homens que tinham cabelos escorridos até os olhos. Achava todos criminosos. Tinha certeza disso. Bastava ver alguém com cabelos escorridos até os olhos que o ódio se lhe tomava conta a ponto de poder cometer assassinato antes que o outro o fizesses. Seções de psicanálise apontaram a causa do problema. Na infância, Dimitriva assistiu a dois assassinatos cometidos por um vizinho que tinha cabelos escorridos até os olhos. A cena foi tão forte que fugiu completamente de sua memória, mas permaneceu intocada nas gavetas de seu inconsciente.

Ainda que as causas estejam distantes, é sempre o conhecimento que gera a cura de todas as irritações. De forma mais precisa, é necessário autoconhecimento para que as nossas estruturas emocionais sejam inabaláveis contra as tempestades exteriores, porque as causas são todas internas. Mas é necessário conhecimento relacional dos fatos e fenômenos do mundo, tanto para ver a beleza das coisas quanto fortalecer o amor que passaremos a ter para com nós mesmos. E quem se ama não se irrita.

sábado, 12 de dezembro de 2020

Uma Dor muito Profunda

 Há pessoas que carregam dentro de si uma dor tão profunda que um olhar mais cuidadoso é capaz de percebê-la e até senti-la facilmente. Muitas vezes apresentam um olhar ferido em um rosto quase sempre franzido, como se olhassem o mundo e a vida com desgosto ou desdém. Quase não sorriem, a não ser para exteriorizar uma parte de sua dor em forma de sarcasmo ou cinismo. Têm muitas dificuldades em elogiar. Quando elogiam o fazem para aliciar ou puxar o saco. Não têm amor próprio. São profundamente doentes de um orgulho que exala de todos os seus poros físicos, mentais e espirituais.

João é uma pessoa bem sucedida. Conhecida no mundo todo por sua obra em várias áreas, resolveu incentivar a cultura de sua pequena cidade do interior amazônico. Convidou a todos para uma coletânea de textos. Não importava o tipo de texto. Por mais de três meses percorreu todas as redes sociais convidando possíveis autores para promover suas obras. Com muita dificuldade conseguiu completar a obra e a publicou.

Os poucos autores que atenderam ao convite ficaram muito felizes pela oportunidade. As milhares de pessoas da cidade e de outras comunidades se maravilharam com o talento daqueles conterrâneos. Muitas delas decidiram participar de uma segunda empreitada, caso ela ocorresse. E a obra começou a ser compartilhada para regiões mais distantes, elevando o conhecimento de sua existência e importância para o resgate da literatura daquela região brasileira.

Zezeco, em uma conversa a sós com João, demonstrou toda a sua fúria com a publicação de textos de autores desqualificados, plagiadores, vermes, nas suas palavras. O motivo da fúria? A obra não citou, em nenhum momento, o nome Zezeco. Aliás, toda a obra deveria estar voltada apenas para o nome dele. E ele não entendia por que João, uma pessoa considerada culta e muito importante em vários lugares do mundo, cometera um erro tão estúpido desse.

Noutra ocasião, um grupo de amigos resolveu coletar donativos de roupas e alimentos para que, mensalmente, pudesse aliviar a fome dos moradores de uma comunidade miserável amazônica e substituir os trapos que vestiam por vestimentas mais dignas. E assim fizeram. No primeiro mês, a felicidade daquela comunidade foi quase geral. Quase. 

Fulustreca, uma senhora de aparência repulsiva, ficou indignada com a marca do macarrão que estava sendo distribuído. Havia, argumentava a moradora, marcas mais famosas na cidade. Por que não estavam ali? Além disso, por que não davam mais roupas novas do que usadas? Por que ela teria que aceitar aquelas doações de última categoria, nas palavras dela?

Tanto o caso de Zezeco quanto o de Fulustreca, se vistos de forma superficial, podem ser tomados por atitudes normais. Mas não o são. O normal é agradecer a todo tipo de doação feita com intenção de bondade. Toda atitude centrada no bem, voltada para o bem, realizada para trazer alegria e contentamento precisa ser louvada. O que essas atitudes estranhas mostram, na verdade, é um descontentamento profundo que essas pessoas têm com elas mesmas.

A atitude de Zezeco é translúcida: ele queria ser o centro das atenções do livro de que ele não fez parte. Todos os textos deveriam falar dele, dos seus feitos, para que lhe pudessem trazer um pouco de contentamento - ou pelo menos não despertar seu descontentamento e sua fúria. Mas por que todos os textos do livro não falaram dele? Simplesmente porque nosso irmão é uma figura insignificante para ser retratada em um livro. Diante da realidade da insignificância e da fantasia de que ele é a pessoa mais importante do mundo surge uma lacuna abissal difícil de ser preenchida. A não ser, evidentemente, com ódio.

É essa mesma evidência que há em Fulustreca. Sua mente diz com nitidez que ela gosta de produtos de marcas famosas. Por quê? Talvez porque ela assim se veja intimamente ou porque se considere digna das coisas mais distintas e exclusivas do mundo, ainda que o mundo seja o universo daquela pequena cidade que habita. Noutras palavras, aquela moradora se vê como o centro do mundo e assim exige que seja tratada, ainda que inconscientemente, mas materializado nas suas atitudes.

A origem de tudo isso é o orgulho. Um orgulho tão profundo que não permite que as pessoas distinga a realidade de suas fantasias. Como o tempo todo suas fantasias estão sendo confrontadas com a realidade, o tempo todo estão se frustrando e o tempo todo estão demonstrando o seu descontentamento com aquilo que a realidade lhes mostra. É por isso que têm o rosto fechado, franzido, os olhos tristes, aquele ar raivoso e os sorrisos maquiavélicos.

As pessoas com orgulho profundo se veem como o centro de tudo, do mundo. Veem-se como os melhores escritores, mesmo sem escreverem uma frase sequer; como os melhores fotógrafos do planeta, ainda que suas fotografias tenham alguma qualidade; os melhores oradores do universo, mesmo que não consiga prender a atenção de ninguém; os raciocínios mais geniais da eternidade, ainda que os expressem com palavras chulas. Há sempre o confronto das suas fantasias com a realidade, em que suas ilusões são desfeitas, mas eles não veem. Na mente doente deles, quem está errado é o mundo e tudo o que nele existe.

E gente com orgulho profundo é o que não falta na face da terra. Eles não gostam de entrar nas filas, procuram um jeito de burlar a paciência dos demais; nas lojas, se algum problema acontece, querem logo falar com o dono da loja porque nenhum funcionário está à altura de ouvir suas vozes; nos grupos sociais são os que exigem mais visibilidade e puxassaquismo; no trabalho são os que querem ser promovidos sem mérito; e até nas suas relações com Deus, exigem uma mansão com inúmeros empregados, aqui e na outra vida.

Todas as vezes que o EU aparecer antes do NÓS, ali há alguém com dor profunda. EU tenho que ser servido primeiro, EU sou o único merecedor daquele prêmio, todos têm que ME obedecer, o MEU trabalho é o melhor. O orgulhoso doentio é o centro do mundo porque foi convencido por suas ilusões. Nele não há alteridade, essa desconfiança de que não somos melhores nem piores do que os outros, mas apenas diferentes. 

O orgulhoso profundamente doente vive em um mundo de fantasias. Felizmente para ele, a realidade trata de colocar as coisas nos seus devidos lugares o tempo todo. Consequentemente, o tempo todo eles estão descontentes, raivosos. Chegará o dia em que as ilusões darão lugar à realidade. Mas, até lá, muito sofrimento ainda haverá de haver.

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Supersimplificações

Quase todos nós temos uma tendência a generalizar as nossas ideias. E isso até que é natural. Mas é preciso tomar muito cuidado para que não passemos a acreditar que aquilo que a gente acredita seja a própria realidade. Uma coisa é imaginar a realidade, outra coisa é como ela é de fato. Quase sempre há desencontro entre o que imaginamos e como o mundo é realmente. Quase sempre nossa imaginação é plantada em nós e nos aprisiona.

Por muito tempo se imaginou que a terra era o centro do universo. Todos os outros astros, incluindo o sol em toda a sua majestade, giravam ao redor do nosso planeta. Não se admitia a existência de outros mundos. As estrelas, por exemplo, estavam presas, suspensas, em um gigantesco arco de cristal. E assim essa imaginação coletiva perdurou por mais de dois milênios.

Uma imaginação tão grande como essa passa a dominar todas as nossas esferas de vida. Os deuses gregos, por exemplo, eram todos invenções dessa forma de imaginar e por isso executavam os papéis de ordenadores do mundo dos homens. Aquela harmonia que se verificava no céu (no cosmos) também deveria ser reproduzida no mundo dos homens. Era um mundo de certeza e estabilidade. Qualquer outra imaginação que estivesse em desacordo com essa grande imaginação poderia até causar a morte, como aconteceu com Sócrates.

Ao longo da história, não foi apenas essa grande imaginação que tomou conta e dominou a mente e a forma de viver das pessoas. Inúmeras outras, tão fantasiosas quanto essa, apareceram e desapareceram, como sói de acontecer. O que faz as nossas fantasias se desvanecerem são a racionalidade e as evidências fáticas, dois palavrões que precisam ser conhecidos.

Racionalidade é o descobrimento ou invenção de relações de causa e efeito em duas ou mais coisas. Se sei que comer muito carboidratos pode provocar diabetes, digo que o diabetes é efeito do excesso de carboidratos, sua causa. Assim, para que eu reduza ao máximo a probabilidade de ficar diabético, tenho que reduzir o consumo de carboidrato apenas ao que é necessário, uma vez que sua ausência também é prejudicial. Note, aqui, outra relação causa-efeito: ausência de carboidrato é causa de outras doenças, que são seus efeitos.

Evidências fáticas são demonstrações da realidade daquilo que a racionalidade inventa, explica. As evidência comprovam ou reprovam os esquemas racionais. Por exemplo, se um milhão de indivíduos come carboidratos em excesso e quase todos eles têm diabetes, isso é forte evidência de que a explicação racional é válida. Note que eu falei "quase todos" e não "todos". A razão disso é que haverá sempre uma margem de erro aceitável nas explicações racionais. 

Tanto na proposição de uma racionalidade quanto nas demonstrações dos fatos, podemos errar. E essa é uma das características fundamentais que reduzem em muito a possibilidade de nossas ilusões nos aprisionar. Quem se ilude não admite erros, de forma que tudo o que fala passa a ser verdade. Verdade é a ausência de erros e de sua possibilidade. É por isso, por exemplo, que a ciência não trata e nem lida com a verdade. Uma explicação, para ser científica, tem que apresentar uma margem de erro aceitável. Não existe ciência sem erro.

Vejamos duas grandes ilusões do nosso tempo que teima em continuar aprisionando a cabeça de muita gente por aí, principalmente pessoas importantes que se consideram (e são consideradas) sábias. A primeira é que há um grupo de pessoas opressoras que domina e oprime a maioria das outras pessoas. Nesta supersimplificação, quem não é opressor necessariamente é oprimido. Inversamente, quem é oprimido, necessariamente não é opressor. É outra versão ainda mais infantilizada de ricos e pobres, burgueses e proletários, explorado e explorador e assim por diante.

A ciência tem demonstrado que cada pessoa executa em diversos momentos de sua vida e até dos seus dias ações de opressão e também é oprimida. Ainda que os gênios dessa dualidade não definam o que é ser oprimido e nem o que é ser opressor, vamos imaginar (e isso é imaginação, não é ciência) que opressor é quem causa dor e oprimido é quem recebe a ação do opressor, quem sofre a dor. E vamos imaginar que só haja dor proposital, planejada, como os sábios dessa oposição imaginam.

Quando um pai pune o filho de alguma maneira, está sendo opressor, se o filho achar que aquilo lhe é doloroso. Inversamente, quando o filho desaponta o pai com alguma atitude indesejada, está sendo opressor. Olhando de outra forma, se o pai deixa o filho de castigo para que ele reflita sobre sua ação indesejada, o pai é opressor ou amigo? Se o filho reconhece que sua atitude prejudicou várias pessoas e que se não fosse a ação do pai não aprenderia a lição, estaria sendo oprimido?

Mais ainda: se outro filho, que não tem pai e que teve atitude semelhante com consequências semelhantes, toma para si a responsabilidade de consertar seu erro, estaria sendo opressor de si mesmo ou estaria sendo oprimido? Alguém que sofre de bulimia, que faz sofrer seu corpo e sua mente, seria opressor ou oprimido?

Outra supersimplificação é o discurso que só tem sucesso quem se dedica com afinco ao trabalho. Essa é outra imaginação tão frágil que basta ver que em todo lugar tem os desonestos. Desonesto é aquele que burla as leis ou esquemas morais para se dar bem. E muito desonestos são bem sucedidos. Muitos deles são milionários, têm os bens que querem, têm o poder que desejam, muitos são muito famosos.

O trabalho honesto sempre é um bem. Isso é fato. O trabalho honesto beneficia (palavra derivada de benefício, bem) pelo menos o seu executor ou quem o está recebendo. Mas a ideia de sucesso é tão variada quanto o comportamento das pessoas. Se João considera sucesso "ser ou ficar milionário", Maria pode considerar "Ser famosa", enquanto para José pode ser "ser feliz". Na cabeça de João, a imaginação pode lhe dizer "Que adianta ser famosa e feliz, se não é milionário?". A cabeça de Maria pode lhe dizer "De que adianta ser milionário e feliz, se não é famosa?". A cabeça de José pode lhe advertir "De que adianta ser milionário e famosa, se não é feliz?".

Os inventores de supersimplificações têm completa ignorância sobre o universo interior das pessoas. Eles imaginam que o mundo é do jeito que suas cabeças orientam. Cada gênio da supersimplificação pensa como José, Maria e João de nossos exemplos, de maneira bem rasteira, como as crianças o fazem. São adultos infantis. Só que eles não sabem disso. Como as crianças, eles se imaginam revolucionários em suas fantasias.

Mas eles têm muitos seguidores, milhões podem falar de forma consistente. É verdade, não há de se negar. Mas são todos infantis, já que seguem pensamentos infantis? Infelizmente a resposta é sim. Alguns as seguem por infantilidade, enquanto outros o fazem por esperteza, desonestidade. Felizmente, os que são mais infantis do que desonestos são a maioria. O que lhes falta é conhecimento. 

Com os espertos é mais difícil de lidar. Como se veem em um papel de salvar o mundo, fazem de tudo para que suas ideias ilusórias sejam conhecidas por todos. E criam formas de "ensiná-las" a todos. E fazem denúncias e manifestações de todo tipo. Agem exatamente da forma como denunciam seus ilusórios adversários de fazê-lo. Afinal, segundo eles, seus opositores nunca dormem. Estão sempre a inventar novos artifícios para espalhar suas maldades.

E o que se deve fazer? Primeiro, desconfiar da forma como todo mundo pensa. Se a maioria das pessoas pensa de um jeito, tente imaginar a possibilidade de elas estarem equivocadas. Faça o teste da racionalidade (causa-efeito) e das evidências dos fatos. Se reprovar em um desses testes, procure outras explicações. Provavelmente você encontrará várias delas.

Em segundo lugar, veja se as pessoas que pensam dessa forma admitem pelo menos uma mínima possibilidade de estarem erradas. Quanto menos possibilidades elas apresentarem, maiores as chances de estarem se iludindo. Se não apresentarem nenhuma possibilidade e só enxergarem coisas boas no que dizem, esteja certo de que elas estão se enganando.

Em terceiro lugar, veja se acusam pessoas, grupos de pessoas, instituições ou coisas abstratas como "sistema" ou algo parecido como a causa do que denunciam. Como os gênios das supersimplificações são perfeitos, todas as causas de maldade e coisas ruins estão sempre fora deles, estão nos outros. Inversamente, como são deuses, tudo o que falam é a verdade e tudo o que orientam só traz o bem.

Em quarto e último lugar, veja se eles reconhecem alguma virtude em quem pensa diferente. Quanto menos virtude forem reconhecidas, maiores as probabilidades de ilusão. Se não houver alguma virtude nos seus adversários (eles sempre apontam algum adversário, preferencialmente com o uso de palavras abstratas, que ao mesmo tempo em que engloba muita gente não identifica ninguém, outra prova de ilusão).

domingo, 22 de novembro de 2020

Sangue de Barata

Uma das coisas que sempre me impressionou ao longo de quase toda a minha infância foi a expressão "ter sangue de barata". Eu entendia tanto o seu sentido sintático quanto semântico. O que me incomodava era um dos sentidos pragmáticos. Eu entendia que aquele que não tinha sangue de barata tinha muita facilidade de ficar com raiva de alguém a ponto de praticar qualquer tipo de agressão verbal ou física. 

Meu conhecimento era vivido, vivenciado, experimentado nos exemplos dos outros. Mas outro sentido exigiu muito do meu cérebro e da minha mente. Vejamos alguns exemplos, para que se compreenda o que quero mostrar.

Tínhamos um amigo muito, muito calmo. Vivia quase o tempo todo sorrindo. Saudava as pessoas quase sempre com um sorriso, dado que não era de muitas palavras. Jogador de futebol mediano, jamais se ofereceu para integrar uma ou outra equipe. Ficava sempre na dele. Se lhe convidassem, aceitava o convite com dedicação; se o convite não chegasse, tudo bem. Era notória a alegria dele de apenas acompanhar a molecada na sua diversão.

Certo início de noite, quando nos encontrávamos para as brincadeiras de bandeirinha, esse amigo se sentou ao meu lado. Como sempre, chegou, sorriu e ficou ali, calado. Em seguida, um outro amigo se aproximou e começou a azucrinar a vida do amigo calmo. Durante toda a brincadeira, o tempo todo ele foi importunado. Teve até agressão verbal, sem qualquer reação que não fosse o pedido em forma de súplica "vai embora, rapá".

No final das brincadeiras, quando os primeiros moleques já começavam a ir embora dormir, o importunador resolveu empurrar o menino calmo. Nesse instante, algo impressionante aconteceu. Como um gato, no mesmo segundo em que começou a escorregar pela sarjeta, o garoto sorridente desferiu um violento chute no rosto do importunador. Imediatamente o sangue começou a jorrar.

De forma inacreditável, ao invés de cair na sarjeta, com a violência do chute, o menino calmo caiu ao lado do corpo inerte do seu adversário. Como eu estava perto, alertei a todos que o golpe havia tornado imóvel o outro moleque, sem sucesso. Com muita rapidez o menino calmo começou a agredir com tamanha violência o outro que quase esmagou o meu braço, ao tentar pelo menos amenizar seus golpes. Meus gritos de dor convenceram os demais.

Quanto mais eu me agarrava ao menino calmo descontrolado, mais percebia que sozinho eu jamais conseguiria contê-lo. Além disso, meus apelos não moviam seus olhos do seu importunador. Parecia sair faíscas daqueles olhar avermelhado, enlouquecido, ensandecido, criminoso. Com a ajuda dos outros, o corpo do menino foi arrastado para longe do menino calmo que, como se nada tivesse acontecido, pegou sua camisa da batente de uma das portas daqueles casarões antigos e se foi, calmamente. Nada falou.

Com os outros moleques era diferente. A explosão começava quase imediatamente à importunação. Se alguém falasse alguma maldade da mãe do outro, no mesmo instante as agressões verbais e físicas começavam, não necessariamente nessa ordem. Bastava uma pequena faísca e logo as agressões aconteciam. 

Noutras vezes era preciso, digamos assim, uma certa maquinação. Por exemplo, desenhavam-se duas imagens no chão e dizia-se que eram as mães (sempre elas) de um e de outro adversário. Aí um pisava na imagem da mãe do outro para provocar-lhe até que se chegasse às vias de fato. 

Esses dois casos ilustram a ideia mais óbvia da expressão "não ter sangue de barata", que pode ser considerada sinônima de "Não levar desaforo para casa". Quem não tem sangue de barata agride quando é agredido. Mas também agride quando não é agredido. Se sua interpretação da realidade é de não agressão, ele não agride. Mas, se for de agressão, ainda que de fato não tenha sido essa a realidade, ele agride também.

Parece ser o instinto a faísca que acende o ódio que domina todos aqueles que não têm sangue de barata. A dimensão racional das faculdades humanas ainda não está razoavelmente desenvolvida a ponto de lhes dar um sinal de que as coisas talvez não sejam da forma como elas se aparentam. E tampouco que pagar o mal com o mal seja a saída mais inteligente que existe.

Aqueles que reagem de forma automática são os mais deficientes racionais, mais dominados pelo instinto. Tanto é assim que parece que é são os seus corpos que reagem no exato instante em que eles levam um tapa. O lapso de tempo é tão curto que não é possível sequer acompanhar com os olhos. É com se fosse zás(tapa)-trás(revide).

Certa vez uma mãe pediu à filha de cerca de cinco anos lhe trazer um copo d´água. Irritada, a criança respondeu "por que você não vai pegar?". Quando a criança pronunciou a última sílaba da última palavra seu rosto foi acertado por um violento tapa da sua genitora, totalmente tomada de ódio, exatamente como o menino calmo ficou quando tentava tirar a vida do seu importunador.

Aqueles indivíduos do "vai embora, rapá", "me deixa em paz" e "não mexe comigo" já evoluíram um pouco na longa escada de acesso ao andar do completo controle emocional. Já não reagem automaticamente. Já se conhecem um pouco mais, sabem do que são capazes de fazer, caso percam o domínio de suas emoções. A diferença entre eles e os outros é apenas na quantidade de carga (ou faíscas) de estresse necessária para que seu instinto criminoso deixe de lado seus ainda tênues recursos racionais.

E quem são os que têm sangue de barata. Algumas vezes são indivíduos evoluídos, que sabem que as agressões, quaisquer que sejam elas, são apenas combustíveis de novas agressões. Sabem que as agressões de revide podem demorar, mas que elas virão. Podem levar até gerações ou séculos, mas um dia serão acesas, caso a evolução moral não alcancem a mente e a alma dos agredidos.

É por essa razão, por exemplo, que mesmo que sejam cruelmente espancados, são capazes de cuidar dos agressores. Ainda que suas famílias sejam dizimadas, encontram tempo para se dedicarem aos seus assassinos. Eles sabem que os outros fazem essas atrocidades porque precisam de ajuda. E como conhecimento gera ação, a consequência natural é o cuidar, verdadeira essência do verbo amar. Amar principalmente aos inimigos. 

Quem ama, na verdade, não tem inimigo, ainda que outros assim o considerem. Podem até sentir raiva, mas praticamente no segundo seguinte a razão e o sentimento nobre já lhe dominaram completamente o resquício de instinto que ainda lhes remanesce. Quem tem sangue de barata é evoluído, mas isso não quer dizer que sejam santos, que sejam perfeitos. Algumas pontinhas de imperfeições ainda existem neles.

Os demais que não têm sangue de barata são variados, tais como os covardes, dissimulados e zombeteiros. Estão mais para a covardia do que para a nobreza de espírito. Não têm coragem de reagir às agressões verbais, por exemplo, pelo menos quando estão ao alcance dos seus agressores por medo das consequências físicas. Mas o ódio permanece na sua mente por longo tempo, esperando uma oportunidade para se manifestar de alguma forma que o agressor não perceba sua ação.

Como são fracos, alguns internalizam de forma tal as agressões não revidadas que somatizam seus horrores psíquicos em patologias fatais. Surgem aí alguns deprimidos, suicidas, vítimas da síndromes de pânico, dentre muitas outras consequências nefastas. Em síntese, a outra parte dos que têm sangue de barata são dissimuladores.

A grande descoberta, então, foi essa. Os que se vangloriam de não ter sangue de barata são nossos irmãos que ainda estão nos primeiros degraus da escala evolutiva moral e espiritual. Veem defeitos e horrores em tudo e em todos. E, na primeira oportunidade, estão praticando os seus revides. Agridem verbalmente, agridem fisicamente, agridem moralmente, agridem espiritualmente, agridem mentalmente. Onde há agressão, manifesta ou reprimida, ali está a ausência do sangue de barata. E na ausência desse sangue da elevação há a presença do ódio.

E como tudo evolui, também evoluiu a forma de não se ter sangue de barata. A agressão pode vir dissimulada de análises técnicas, científicas, filosóficas, religiosas, éticas, morais, dentre inúmeras outras formas. E quanto mais doente for o agressor, mais sórdidas e inconscientes as agressões. Tanto é assim que jamais ele reconheceria que está agredindo, principalmente quando ele se coloca a etiqueta de defensor de alguma coisa. São os pseudossábios, pseudoespecialistas, pseudoconhecedores. São escravos de um tirano para eles desconhecidos: a ausência (não a falta) de amor.

sábado, 31 de outubro de 2020

Você é treinado ou capacitado?

Treinar e capacitar são dois fenômenos muito típicas das atividades de gestão de recursos humanos. Ali, naturalmente, denotam duas coisas infinitamente diferentes, mas ambas voltadas para o mesmo alvo. Do ponto de vista da psicologia, são também distintos, mas para alvos completamente diferentes. Um terceiro ponto de vista pode ser aí adicionado, para dar sentido não apenas à visão gerencial e psicológica, mas a todas as demais, assim como todos os focos. Essa visão é a espiritual. Que nada tem a ver com religião, é bom que se advirta antes.

Comecemos com o desafio de treinar. Dizem que Oscar Schmidt, o jogador de basquete conhecido também como Mão Santa, começou a se interessar pelo esporte já em idade avançada para isso. Como gostou assim que experimentou, começou a sua dedicação. A partir daquele momento, todos os dias, durante todas as semanas, durante muitos e muitos anos, procurou dominar cada jogada, cada forma de pegar na bola, cada maneira de atirá-la, cada tipo de marcação e assim por diante. Depois que seus colegas iam para casa, ficava horas e horas ali, treinando, treinando, treinando. Sozinho, na maioria das vezes.

Dizem relatos mais eufóricos que Mão Santa chegava a repetir, em um único dia, 5 mil lançamentos da bola à cesta. Os mais céticos contradizem essa euforia. Ficava apenas entre 3 e 3,5 mil tentativas de fazer cesta de 3 pontos! A vida do atleta passou a ser treinar, treinar, treinar. Em equipe, treinava posicionamentos, passes, recepções e assim por diante; sozinho, treinava cestas de 3 pontos. E como o que mais fazia era treinar cestas de 3 pontos, mais do que qualquer ser humano no planeta, o resultado não poderia ser diferente: ele é o maior cestinha da história!

Outro gênio, e todos os demais, teve comportamento semelhante. Pelé treinava com seus companheiros durante o "expediente" normal. Depois, permanecia sozinho no campo ou com alguns amigos treinando cobranças de faltas, pênaltis, escanteios. Também treinava e gostava muito de ser o goleiro. Quando treinavam apenas pela manhã, o autor dos mil e poucos gols voltava depois do almoço e ficava até a noite treinando. Todos os dias que não tinha jogo era assim. Fez-se não apenas o maior jogador de futebol da história (naturalmente que contestado pelos irmãos argentinos), mas também o atleta do século.

O que queremos mostrar é que a dedicação, não tenha dúvidas disso, leva qualquer pessoa, literalmente qualquer pessoa, aos píncaros da glória. Repetir, repetir, repetir muitas e muitas vezes a mesma coisa leva os indivíduos à beira da perfeição. Um enxadrista, por exemplo, consegue prever inúmeras jogadas possíveis a partir de um uma única movimentação do seu adversário. Papagaios, em outro extremo, conseguem falar tal qual um ser humano aquelas palavras e frases que lhe são ensaiadas e repetidas inúmeras vezes.

Uma funcionária de uma escola era considerada exemplar pelos seus proprietários. Todas as negociações, eles se gabavam, eram feitas de uma forma tal que os pais de alunos pagavam logo a mensalidade, quase sem atraso no pagamento das demais. Fui matricular meus filhos e tive que lidar com a funcionária exemplar. Como esperado, assim que ela começava a falar eu era capaz de adivinhar a próxima palavra a ser pronunciada. Eu conseguia adivinhar até o próximo argumento. Não foi fácil para eu descobrir o esquema mental dela. Aquela servidora tinha sido treinada.

Uma professora teve o desafio de substituir a diretora de outra escola durante um longo período de enfermidade. Um amigo precisou trocar seus filhos de escola e aquela instituição lhe foi indicada. Durante as duas horas que permaneceu ali, a diretora a substituta o acompanhou o tempo todo. Suas palavras e expressões corporais todas estavam voltada para o conforto daquele pai em relação à segurança de seus filhos na escola e na qualidade do ensino que receberia. Todo o material didático lhe foi mostrado, detalhada a estratégia principal de ensino-aprendizado, os cidadãos ilustres que por ali passaram lhe foram apontados.

O pai, preocupado com o custo de todo aquele zelo, perguntou quanto era a mensalidade. A professora apenas lhe disse que era um investimento que ele não teria nenhuma dificuldade em pagar. De fato, apesar da mensalidade estar no patamar mais elevado da cidade, a professora organizou de uma forma tal os investimentos que meu colega conseguiu fazê-lo sem grandes preocupações. Toda a negociação financeira não demorou 20 minutos das duas horas em que meu amigo ali esteve. A professora não foi treinada. Ela foi capacitada para ser diretora.

Qual é a diferença, então? Em todas as visões, particularistas ou generalistas, o que valem são ou os resultados ou as maneiras como eles são alcançados. O indivíduo treinado repete aquilo que ele sabe fazer com perfeição. Ele não consegue dialogar, porque dialogar exige o reconhecimento da integridade e integralidade de quem está do outro lado, provocando a necessidade da alteridade. Quem é treinado não consegue se colocar na posição do outro, não consegue imaginar as necessidades de quem está à sua frente. A preocupação do indivíduo treinado é com o êxito, o sucesso. E a forma como faz isso é quase sempre única, seus métodos são bastante limitados, reduzidos em variedades. Se diversificar, ele se perde.

Quem é capacitado foca o resultado, naturalmente, mas vive intensamente o percurso que o levará até ele. A diretora tinha tanta felicidade em descrever e apresentar os recursos da escola que contagiava o meu amigo. Não era preciso muito esforço para perceber que ela estava vivendo cada momento, cada segundo, como se fosse um relato de vivências que ela viveu inúmeras vezes, e todas as vezes essas vivências foram vividas com satisfação. Era a somatória de todas essas satisfações que parecia transbordar pelas suas bocas e olhos. Interessava a ela, ainda que inconscientemente, que o pai dos futuros alunos sentisse um pouco dessa vivência.

A diretora substituta focava o resultado, que era a matrícula das crianças na escola. O resultado era o foco de suas atitudes. Diferentemente, a funcionária exemplar via em cada indivíduo que ela atendia apenas um número a mais na quantidade de alunos na sala de aula, no montante de receitas de mensalidade e das inúmeras taxas que se tem que pagar, no seu percentual sobre as mensalidades pagas em dia e assim por diante. A professora falava da possibilidade de tirar cópia das páginas do livro didático para que as crianças pudessem acompanhar as aulas, enquanto o livro não estivesse disponível; os canais de comunicação com os professores e profissionais do setor pedagógico; como levar com rapidez as crianças para as unidades de saúde; dentre inúmeras outras questões de preocupação familiar.

Ser capacitada, como o próprio termo indica, é ser capaz de fazer o bem. Isso não quer dizer que aumentar as receitas da escola não seja um bem, pelo contrário. Mas é preciso compreender que as receitas em si não são um bem. A funcionária deveria raciocinar ao contrário: é fazendo o bem que as receitas se elevam. Mas, para fazer o bem, é preciso ser capacitado para tal. E essa capacitação é decorrente do poder que as pessoas têm de resolver problemas dos outros.

O treinamento traz a glória para o indivíduo. A capacitação a traz para todos os comprometidos no desafio. A diretora trabalhava pela coletividade, o que incluía os possíveis futuros parceiros, que eram os pais de alunos à procura de matrícula para seus filhos. A funcionária exemplar via os pais como clientes, o que não é uma coisa ruim, que pagariam as aulas que seus filhos receberiam; a diretoria os via como parceiros no esforço de tornar seus filhos cidadãos de bem. Infelizmente, muitos funcionários exemplares existem que ainda não conseguiram sequer ver os outros como clientes, fazendo valer cada centavo de seu dinheiro investido nos produtos e serviços que deveriam lhes entregar em troca.

As atitudes da professora não eram muito diferentes das praticadas por Oscar Schmidt e Edson Arantes do Nascimento, os cidadãos do mundo. Os três treinaram a realização de suas responsabilidades visando a um bem maior, do outro e da coletividade. A professora via futuros cidadãos maravilhosos; Pelé e Mão Santa, uma equipe saudável nas vitórias e derrotas de suas equipes. A funcionária exemplar via seu percentual financeiro nas mensalidades e o aumento das receitas de sua instituição.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

O Mundo Não é como Tu o Vês

Confiamos demais nos nossos sentidos. Olhamos para o céu e o vemos da cor azul celeste, mas também o vemos cinza-escuro, como nos prenúncios de tempestades. Nos crepúsculos podemos vê-lo amarelado, outras vezes até arroseado e amarronzado. Mas, por incrível que isso possa parecer, essas diferentes visões apontam justamente na enormidade de possibilidades de manifestações visuais do nosso astro. Enormidade significa que ele não é de apenas um jeito. As coisas mudam o tempo todo. E os nossos sentidos começam a nos enganar.

Para que a gente entenda por que o mundo não é do jeito que a gente vê, é preciso que compreendamos três coisas. A primeira é o óbvio, que tudo muda. O sol muda de cores durante todo o dia. Mas ele não muda apenas de cores, muda todos os seus componentes a cada segundo. Por exemplo, seu estoque de oxigênio está se esgotando e se transformando em hélio. Mas isso não percebemos olhamos para o céu azulzinho, provocado justamente pela luminosidade do nosso astro-rei.

A cada segundo, o sol expele, coloca para fora, milhões e milhões de tonelada de sua massa em forma de jatos de plasmas. Além disso, faz jorrar material radiativo o tempo todo, que atinge todos os componentes do sistema solar. Essa dinâmica toda não é percebida pelos nossos sentidos. Quando falamos do sol, falamos apenas de uma ideia muito deformada dele. Na verdade, não o conhecemos.

O segundo motivo é a consequência da primeira: cada um de nós muda o tempo todo. Ainda que não percebamos, o tempo todo estamos aprendendo. E é por meio do aprendizado que cada componente do nosso corpo, por exemplo, é provocado e instado a mudar. Como eles mudam, mudamos nós também, inclusive e principalmente, o nosso corpo mental.

Se na infância víamos o sol de forma amorosa e romântica, para quem é obrigado a trabalhar sob sua intensa luminosidade aquele romantismo pode se ter transformado em dor. Não é fácil nem para o corpo e nem para a mente suportar altas temperaturas sem que acelere sua destruição. Nosso corpo muda e muda a nossa percepção das coisas.

O terceiro motivo é tanto consequência quanto inferência das duas primeiras: ninguém é igual ao outro. João é diferente de Maria não apenas no sexo (gênero não existe), mas fundamentalmente pelo seu estoque de vivências e aprendizados. Traumas, por exemplo, fazem as pessoas terem sentimentos diferentes das outras em relação à mesma coisa. Tem gente adulta que tem pavor de gatos, enquanto outras os amam com devoção.

Gêmeos univitelinos que apresentam quase todo o material genético parecido são extremamente diferentes em muitas coisas (e parecidos em poucas delas). Podem apresentar sentimentos diferentes e pensar de formas antagônicas, por exemplo. Ainda que sejam 99% iguais em termos genéticos, são praticamente 99% diferentes em termos de percepção e compreensão dos fatos e fenômenos do mundo.

O mundo jamais é do jeito que a gente pensa que é. O que vale para o sol vale para tudo. A árvore não é do jeito que a gente a vê e muito menos os políticos que nos governam. Não dá sequer para imaginar o que se passa na cabeça de um único deles, imagina de um partido todo! Ainda que utilizemos todos os recursos tecnológicos disponíveis, não dá para entender tudo de uma castanheira.

Se o pensamento de Maria é parecido com o de José, isso é apenas aparência. Na verdade, é o que eu imagino, que é outra forma de ilusão. É ilusão porque desconheço tanto o pensamento de Maria quanto o de José e mais ainda como o pensamento de cada um acontece dentro de seus corpos físico e mental. Se eu não sei de fato e chego a uma conclusão sobre o que eu não sei, essa conclusão é apenas uma especulação, que é outra forma de me iludir.

Ainda que Maria e José me dissessem quais são os seus pensamentos e como eles pensam, ainda assim isso não passaria de ilusão. Ninguém conhece a si mesmo a ponto de dizer coisas como essas com exatidão. Elas expressam apenas o que sentem, suas impressões do sentido, que são coisas completamente diferentes da realidade como ela é.

Uma coisa é o que eu penso sobre João, que pode me parecer a pessoa mais bondosa do mundo. Mas, de fato João só será assim se ele permanecer assim para sempre e eu tivesse a capacidade de não mudar a minha forma de imaginar sobre como as coisas são. Como eu mudo e as coisas do mundo também, sou obrigado a aceitar o que os outros me dizem, confiando neles, para que eu possa ter certa segurança sobre as coisas da vida e possa conviver com as pessoas. 

Mas essa confiança deve ser sempre seguida de uma certa desconfiança. Por quê? Por que as pessoas são sempre desonestas? Não. Porque as pessoas se enganam. Seus sentidos as levam ao engano, tanto sobre as coisas do mundo quanto sobre elas mesmas. Quantas e quantas vezes já imaginamos sermos capazes de fazer certa coisa e, na hora H, fracassamos?

Mas isso quer dizer que não vemos a realidade? Que tudo o que vemos é falso? A resposta mais adequada é um sono Não. O que vemos e sentimos também fazem parte da realidade. Mas são partes parciais, com o perdão do pleonasmo. Não devemos confiar perdidamente no que vemos, sentimos ou pensamos. Por exemplo, se alguém gosta do partido político A e eu gosto de C não significa que A é ruim e o meu bom. Todos têm o mesmo direito de gostar do partido Z, WQ e qualquer outro, tanto quanto eu do meu.

Queremos mostrar que todos veem apenas uma parte da realidade. Ninguém pode se aventurar a ser o rei da verdade. O que o menos escolarizado ser humano disser não pode ser tomado como inferior ao que disser o mais alto PhD em Astronomia. Um pescador analfabeto pode ser um gênio da pescaria, tanto quanto o doutor o é em relação ao universo.

Respeitar o que o outro sabe é ser sábio. E essa sabedoria vem justamente da compreensão de que o que vemos é apenas parte do real e que a compreensão do outro me ajuda a aumentar a minha própria compreensão. Assim, ao invés de eu querer me achar mais entendido que o outro, devo compartilhar com ele o que eu sei e receber com toda grandeza o conhecimento dele, para que eu possa melhorar o meu. Simples assim.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Vem com a Solução

O mundo está repleto de pessoas que preferem passar pela exagerada porta dos sentimentos inferiores do que pelo crivo depurador da sobriedade. Por essa razão criticam sem conhecer, reclamam sem compreender, rejeitam sem ajudar, isolam-se sem se darem chances de se conhecer. Tudo isso leva à confirmação de que não sabem que a vida, o que inclui as suas, carece de solução, não de destruição.

Uma vez ouvi de um amigo a confissão tristonha de que sua esposa não é como imaginava. E citou como exemplo o fato de que ela não conseguia deixar o banheiro limpo todos os dias. Quando ia tomar banho, estava tudo sujo. Era preciso, todos os dias, chamar a atenção da ocupada esposa para que fizesse a limpeza. Meu amigo quase desmaiou quando eu lhe perguntei: "E por que você não limpa, já que ela esquece todos os dias de fazer a limpeza?".

Esse exemplo mostra uma situação corriqueira em que a pessoa que reclama não percebe que sua infelicidade ou descontentamento é facilmente superada, resolvida. Basta que ela tenha um pouco mais de capacidade perceptiva e desloque o seu raciocínio da "obrigação de alguém" para a "necessidade de limpeza". Quando se raciocina com a obrigação, que nunca é de quem reclama, a infelicidade vai perdurar até que a pessoa reclamada possa suprir aquela necessidade. Mas, se o raciocínio focar a necessidade de alguma coisa acontecer, as coisas mudam de figura e colocam o reclamante no centro das atenções e o impulsionam para a ação.

Uma história incrível aconteceu quando um dos gerentes de uma empresa fez ácidas críticas ao paciente proprietário sobre as supostas conduções inadequadas do negócio que o fundador estava fazendo. Aquele homem simpático ouviu tudo com atenção. No final, fez a seguinte proposta ao seu crítico: "Você não quer assumir a presidência por pelo menos um mês e tentar executar o que você faz?". Surpreso e feliz pela oportunidade de assumir o comando da organização, que era o seu sonho, o gerente aceitou imediatamente.

As ações que recomendava ao proprietário logo começaram a surgir efeitos. Os dois principais fornecedores da empresa passaram a não fazer mais os suprimentos pelas novas políticas adotadas; o gerente de finanças e o de produção pediram demissão; os funcionários reduziram suas produtividades como represália aos cortes de alguns de seus benefícios; e os clientes passaram a fazer menos pedidos devido à redução dos prazos de pagamentos. Em duas semanas o crítico teve que ser retirado da presidência e demitido. Sua presença não era mais bem visto na empresa, apesar do sentimento amoroso que o proprietário tinha por ele.

Esse exemplo mostra que aquilo que falamos não é solução. O discurso quase sempre está em desconexão com a realidade. É apenas o que pensamos. Mas o pensamento precisa passar pelo crivo da racionalidade, da razoabilidade e da sobriedade. Foi o que faltou ao gerente que aspirava à presidência da empresa. Suas soluções eram apenas discursos. Ele não as testou antes, não fez simulações, para ver se elas realmente funcionavam. Na prática, deveria ter agido de outra forma, em parceria com o proprietário, para que pudessem, juntos, aos poucos, testar cada uma das suas alternativas. Isso teria evitado o fracasso.

Um professor de história vivia fazendo críticas  horrendas ao dirigente da instituição onde trabalhava. O diretor seria tirano, irresponsável, incompetente, fascista e assim por diante. Outra instituição, vendo nele um suposto líder, o convidou para dirigir uma de suas unidades, convite aceito prontamente. Teria a oportunidade de mostrar como se dirige uma instituição. Já nos primeiros dias percebeu que as pessoas não são fáceis de serem conduzidas, que poucas cumprem com suas obrigações, que outras precisam de recompensas constantes para agir e que na primeira oportunidade até seus ajudantes imediatos começaram a falar mal dele.

Na segunda semana o crítico começou a sentir o peso das denúncias e reclamações dos pais dos alunos. Começou a responder a dois processos criminais e três cíveis, dividindo seu tempo entre a instituição e a justiça. Outra parte do tempo era dedicado ao entendimento com os fornecedores de energia e água, além das obrigações tributárias municipais e federais, coisas de que nunca tinha ouvido falar. No início da terceira semana as críticas se voltaram para tudo na boca daquele diretor infeliz e o fizeram pedir demissão. Sentia uma enorme paz sendo apenas professor, como se um mundo tivesse sido retirado de suas costas.

Os críticos são incapazes de imaginar os desafios e adversidades próprias de determinadas posições. Ser diretor tem uma enormidade delas, assim como ser esposo e esposa. Meu amigo descobriu, por exemplo, que ele não desempenhava quase nenhuma de suas funções de marido, e as que realizava não as fazia adequadamente. Se alguém teria que reclamar, era sua esposa, não ele. Da mesma forma, se alguém teria que reclamar era o diretor da escola que o professor trabalhava, porque ele, o professor, não cumprir com suas funções adequadamente.

Esses casos mostram que reclamações, críticas, rejeições, descontentamento são diversos tipos de sentimentos inferiores. As pessoas que agem assim o fazem, muitas vezes, não por desonestidade ou maldade, mas por pura e simples ignorância, infantilidade. Se não fossem ignorantes, se tivessem conhecimento, perceberiam que tudo isso é perda de tempo. Ao invés de reclamar, criticar, rejeitar e ficar descontente, o correto é ir lá e fazer. Ao invés de fazer aparecer a inferioridade de seus sentimentos, o correto é solucionar o problema. Essas pessoas, portanto, não sabem agir porque não reconhecem que aquele é o momento exato da ação que não praticam.

Mas por que as pessoas reclamam, criticam, rejeitam e se descontentam? Por duas razões. A primeira é porque não sabem consertar o que consideram errado e, portanto, não têm solução para a situação. O que externalizam, então, é justamente esse sentimento de inconformação por depender de outro para fazer aquilo que são capazes de fazer, mas não estão dispostas a aprender. A segunda é a falta de vontade de sair de sua suposta posição de conforto de apenas apontar defeitos, sem se comprometer no passo seguinte, de ajudar a solucionar.

As pessoas que agem assim merecem todo o nosso carinho porque precisam de ajuda. Precisam de ajuda principalmente para que comecem a gostar de si mesmas, a cuidar delas mesmas. Ainda não aprenderam que suas vidas dependem do que forem capazes de fazer. E isso inclui essa fantástica capacidade de solucionar problemas que todo ser humano tem.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

És sociável? Tens certeza?

Há uma confusão recorrente sobre o termo sociabilidade e sociável. Muita gente imagina dizer alô, oi ou tchau é ser sociável. Outros tomam a palavra como sinônima de enturmar, estar entre pessoas, o oposto de não estar sozinho, não ficar sozinho, especialmente em ambientes onde haja muita gente. Essa concepção equivocada pode gerar muitos conflitos.

João sempre foi uma pessoa com extrema capacidade de relacionamento. Falante, quase sempre era o centro das atenções dos lugares por onde passava. Galanteador, estava sempre atento a qualquer aspecto feminino para lançar algum de seus inusitados elogios. De grande humor, animava as pessoas com suas ironias e improvisos desconcertantes. Esse amigo era o exemplo quase perfeito do que se costuma chamar sociável.

Onde chegava, João não conseguia ficar um metro distante de outra pessoa. Na verdade, jamais alguém o viu sozinho. Sempre que alguém dele se lembrava era sempre em situações onde estava se destacando pelas suas características de falante, galanteador e cômico. Em nenhuma outra situação era lembrado, nem quando precisavam de qualquer pessoa para algum tipo de trabalho ou situação considerada séria. Sintetizando, o amigo não era uma pessoa séria. Não podia ser levado a sério.

Tempos depois se soube que aquela figura sociável (altamente sociável, como muitos diziam) cometeu suicídio. A carta deixada mostrava que ele agia daquela forma para encobrir sua enorme solidão. Era tão só e triste que não suportava sua própria companhia. Não conseguia ficar sozinho, portanto. Era um verdadeiro martírio quando voltava para casa, quase sempre bêbado, para não se ver a sós consigo mesmo.

José era considerado antissocial e até mesmo antipático. Nos encontros sociais, fazia apenas o protocolo, como muitos diziam. Falava com todos, nessas ocasiões, preferencialmente com um boa noite a todos. Quando visitavam alguém de sua família que não ele, fazia as saudações normais e depois se retirava, deixando a visita a sós com quem ela veio visitar. Se interpelado, interagia com normalidade, no menor espaço de tempo possível.

Esse amigo era envolvido com inúmeros projetos e ações. Participava ativamente de diversos grupos de estudos sobre meio ambiente, através do qual ajudava a recuperar ambientes degradados e a cuidar de animais retirados de seus ambientes naturais. Trabalhava com cobrança de tributos e por essa razão conhecia muita gente nas diversas comunidades de sua cidade. E dava atenção especial para aquelas que viviam nas ruas, com aquisição de alimentos e vestimentas que pudessem aliviar um pouco o sofrimento dessas pessoas.

Diversas vezes José foi visto praticando essas ações, ajudando aos outros, cuidando do meio ambiente. Sua concentração era tanta para fazer essas coisas bem feitas que parecia esquecer quem estava a seu lado. E isso, aos olhos dos outros, era sinônimo de antissociabilidade. Com sua família, era um pai e filho normal, mas reservava um tempo para meditar e conversar consigo mesmo.

Esses dois exemplos são prototípicos para diferenciar quem é e quem não é, de fato, sociável. O que distingue a sociabilidade da antissociabilidade é exatamente o significado da palavra social, que vem da palavra sócio, que, por sua vez, quer dizer companheiro, seguidor. E quem é o companheiro, afinal, se não aquele que cuida do outro? Se não aquele que, além de conviver, de estar ao lado, age sempre em benefício do outro?

Alguém sociável é, então, aquele que cuida do outro. É aquele que não deixa o outro sozinho em suas necessidades. É aquele que respeita a individualidade do outro e, portanto, sabe que todos precisam de um tempo para ficar sozinhos para dialogarem consigo mesmos. 

Se ser sociável é ser companheiro, é ser seguidor, a primeira companhia que ele conquista é a sua. O ser sociável, então, jamais será solitário, sozinho. Não porque esteja sempre junto de outras pessoas, mas fundamentalmente porque ama e preza a sua própria companhia. A sociabilidade começa e tem sua raiz no próprio indivíduo. Quem não é feliz consigo mesmo, quem não ama a si mesmo, não consegue ser feliz com o outro, ainda que esteja rodeado e seja o centro de bilhões de outras pessoas.

O indivíduo sociável não está com o outro porque precisa de companhia, mas porque é companhia necessária ao outro. Porque sabe que é capaz de ser companheiro quando o outro precisar. É por essa razão que a sociabilidade é sempre doação. É diferente, portanto, de João, que fazia palhaçada porque precisava de atenção. Era carente. E a carência lhe levava a essas atitudes extremas de ser engraçado a qualquer custo, de simular cavalheirismo, de não deixar que os outros falassem.

Por incrível que possa parecer, o indivíduo sociável age muitas vezes sem que os outros saibam. É um parceiro oculto, anônimo. O que lhe interessa não é a ação em si, mas o efeito dela em proveito do outro. É um companheiro de fato, especialmente diante das necessidades, quando até os amigos desaparecem. Ser sociável é ser capaz de ajudar de forma nobre e desinteressada

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Que te Importa, o Outro?

Nascemos com um defeito grave de fabricação: o de nos importar demasiado com os outros. Não estou me referindo às louváveis atitudes de ajudar a todos indistintamente, mas, sim, ao que tem de pior nos nossos comportamentos: ver apenas o que há de ruim nos outros. E isso é tão contagioso que desenvolvemos habilidades extremas de fazer isso. E, o que ainda é pior, chegamos ao ponto de achar que nossas mazelas são produzidas justamente por eles, os outros. Mas isso tem uma explicação surpreendente.

O sinal estava fechado. Diversos automóveis aguardavam em fila o sinal verde. De repente, uma caminhonete invade a pista contrária e passa em pleno sinal vermelho. Quase todos os motoristas que aguardavam o sinal abrir se revoltaram. E utilizaram as buzinas para fazer extravasar o seu descontentamento com a atitude daquele motorista. A ferocidade era tamanha que, imagina-se, se pegassem o moço que furou o sinal provavelmente o agrediriam.

Luzídio era um funcionário exemplar. Chegava todos os dias antes do horário de início do trabalho e saía depois que todas as suas tarefas tinham sido executadas. Quando tinha um tempinho vago, estava sempre disposto a ajudar os colegas, principalmente no preenchimento de informações financeiras. Ele trabalhava no departamento de pessoal de um órgão público. Era um servidor tão bom e conceituado, que ninguém se recusava a dar a sua senha profissional para ele ajudar. Luzídio foi assassinado quando descobriram que ele retirava todo mês menos de um real do salário de cada servidor.

Esses são dois extremos dessa doença que temos de culpar os outros pelas nossas mazelas. Se alguém fura o sinal, será que não passa pela cabeça de ninguém a possibilidade de o condutor estar indo prestar algum socorro, em que alguém correria risco de vida? Já aconteceu com um amigo fazer isso: teve um ataque cardíaco e acelerou em busca de atendimento médico. Se não tivesse infringido as leis de trânsito (das quais foi absolvido depois), certamente teria ido a óbito. No caso do servidor público, por que assassiná-lo? Certamente a justiça o faria devolver cada centavo retirado indevidamente de cada um.

Uma primeira explicação para isso é a tendência que as pessoas imaturas têm de encontrar um culpado para as suas inconsequências. Os culpados podem ser tanto outras pessoas, como no caso da pessoa que chegou atrasada ao trabalho porque o ônibus não parou para ela, quanto coisas. Há quem alegue não ter dormido direito porque a forte ventania fazia ranger a janela do seu quarto. Não lhe passava pela cabeça, por exemplo, passar um óleo na fechadura ou encostar a porta de forma mais vigorosa, que fizesse cessar o rangido.

Na verdade, a pessoa não percebe que quando age assim está dizendo, de diversas formas, que não tem maturidade o suficiente para assumir suas atitudes. "Aquela maldita pedra estava no meio do caminho e torceu o meu dedo" significa "não prestei atenção por onde andava e por isso tropecei na pedra". Mas, por incrível que pareça, a pessoa não tem a maturidade para admitir que estava andando desatenta.

Outro dia ouvi alguém dizer "eu não aguento mais ter que limpar a casa todo dia". A casa e a sujeira dela passaram a ser a causa da infelicidade dessa pessoa. Não passava jamais pela cabeça dela o fato de que casas e todo tipo de objeto se sujam. E quem não gosta de viver e conviver com sujeira tem que limpá-la. E se as coisas se sujarem todos os dias, todas as horas e todos os minutos, todos os dias, horas e minutos precisam ser limpas. Simples assim. Ser infeliz por causa disso por quê? Uma saída seria morar em um hotel, que teria funcionários para fazer a limpeza a todo instante...

A pessoa não percebe, portanto, que a "culpa" de suas infelicidades (porque são múltiplas) não é das pessoas a quem ela acusa e tampouco das coisas que ela condena. É ela, a própria pessoa, que é infeliz e repassa a sua infelicidade para as pessoas e coisas. É uma atitude cômoda que perpetua a infantilidade, mas que também gera infelicidade para quem compra a ideia infantil que ela conta.

A segunda explica é a vontade de fazer o que é proibido. Isso se aplica à quebra das regras que não fazemos, mas feita pelos outros. Se a pessoa atravessou com o sinal vermelho, o que é que eu tenho a ver com isso? Se a mulher traiu o marido, no que isso me interessa? Se alguém não está cumprindo o acordo feito, no que isso me toca?

Na verdade, quando alguém faz o que eu condeno, eu condeno justamente por isso: porque eu gostaria de fazer e não tenho coragem. Se eu condeno quem fura o sinal, é porque eu gostaria de fazer o mesmo; se eu me descontrolo com o marido que trai a esposa, é porque eu gostaria de fazer aquela traição; se eu perco a paciência com quem não cumpre o que promete, é porque eu gostaria muito de não cumprir os meus acordos. Simples assim.

Se as pessoas soubessem o que dizem quando reagem de forma desequilibrada emocionalmente ao culpar os outros, provavelmente jamais o fariam. Perceberiam que essas atitudes o fariam ou infantil ou criminosos em potencial. Lembro de várias pessoas que culpam os ex-amantes pelas suas infelicidades e finalizações de seus relacionamentos na frente dos amantes atuais. Pouco tempo depois falavam a mesma coisa dos que presenciavam suas denúncias. Um vizinho chegava a chorar de raiva quando lia notícias de pedofilia. Foi flagrado abusando de crianças da vizinhança e herdou 20 anos de prisão.

Se o descontrole emocional é quase sempre uma transferência de responsabilidade ou vontade reprimida de fazer o que é proibido, é bom que o indivíduo se conheça um pouco mais. É que a infantilidade tem um lado perverso: faz o indivíduo sofrer demais. Como a culpa está sempre no outro e o outro é difícil de mudar, a infelicidade tende a perpetuar. É assim que a mente inconsciente dessas pessoas age. Como os loucos jamais admitem que o são, a mente doentia jamais vai reconhecer que elas mesmas são as causas de suas desgraças, não os outros.

Há uma regra de ouro que ajuda muito a lidar com esse problema: só ligar para o outro, se for para fazer o bem a ele. Tudo o mais deve ser deixado de lado. Se alguém furou o sinal vermelho, tenho que imaginar algum bem naquilo - por exemplo, que ele estivesse indo socorrer alguém. Se a pessoa olhou de cara feia para mim, posso imaginar que ele não está bem - por exemplo, está com dor de barriga. Se alguém me deu um tapa, posso imaginar que fiz alguma coisa errada sem perceber ou que a pessoa agrediu a pessoa errada.

No início até parece absurdo, mas com o tempo a nossa mente vai se desapegando dos outros e passando para nós a responsabilidade pelas consequências dos nossos atos. Se o copo caiu da minha mão, é porque eu não o segurei direito, e não porque ele estava liso. Se quebrei o vidro da janela foi porque fui imprevidente ao segurar a escada, não porque a escada era pesada. Se perdi o ônibus ao ir para o trabalho foi porque não acordei mais cedo na parada.

Ainda que a justiça venha a reconhecer a responsabilidade de outro por alguma coisa que nos aconteça, de fato ela é sempre nossa. Certo dia fui processado por calúnia, difamação e injúria. A justiça me absolveu. No entanto, a "culpa" foi minha porque não fui previdente com os objetos que roubaram da minha casa, que gerou toda a série de desdobramentos que levaram ao processo.

Assumir as suas responsabilidade por tudo na vida é o que denota a maturidade de alguém. E tudo quer dizer tudo, absolutamente tudo. Até aquilo que comprovadamente não foi responsabilidade nossa. Afinal, tudo o que nos acontece de ruim tem sempre a nossa contribuição, diferentemente do que nos acontece de bom. Vigiar é a melhor atitude, como  já aconselhava um grande amigo há mais de dois mil anos.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Vai e Faz

Juma ficava irritada todas as vezes que chegava ao escritório e copos estavam sobre a sua mesa. Seu sócio, quando recebia clientes e ficava várias horas após o expediente trabalhando, quase sempre os deixava por lá nas poucas vezes em que trabalhava até mais tarde. Juma ficava possessa. Será que ele não percebia que aquela não era uma atitude adequada?

João por vários dias brigou com a esposa por causa das roupas de cama com um cheiro suspeito. Era provável, imaginava ele, que algum de seus filhos pequenos tivesse feito xixi e vazado da fralda na cama. Mas não compreendia por que a mãe não as retirava e as colocava para lavar. Será que ela não estava percebendo aquele mau cheiro?

Muitas e muitas vezes sofremos em decorrência do que os outros fazem ou deixam de fazer. Na verdade, nenhum motivo há, de fato, para esses sofrimentos. Nada justifica a frustração e a tristeza derivadas do comportamento dos outros. Os outros têm todo o direito de fazer o que bem entenderem. Se fizerem coisas erradas, provavelmente a justiça se lhes será acionada; se fizerem coisas certa, é possível que sejam por isso bonificados.

Se alguém ganha na loteria e resolve doar todo o prêmio para os outros, que motivos eu tenho para contestar essa decisão? Se outro resolve se apaixonar pela pessoa que sabidamente é desonesta, porque devo interferir? Se o sócio deixa os copos em cima da mesa, por que isso seria motivo de descontrole das minhas emoções? Se alguém não consegue sentir o cheiro de xixi, isso é motivo de irritação minha? 

A ciência e as histórias de vida têm mostrado que as paixões descontroladas jamais levaram à mudança do comportamento dos outros. Diferente das atitudes, não se combate um suposto mal com um mal inquestionável. E são justamente as atitudes que devem ser acionadas, não para alterar o comportamento indesejado do outro, mas para retirar o suposto motivo do descontrole emocional.

Se os copos estão em cima da mesa e isso causa aborrecimento, retire-os. Se a roupa de cama está cheirando a xixi e isso incomoda, retire-a e/ou lave-as. Se as paredes da casa estão sujas e isso te causa descontrole, lave-as ou pinte-as. Se a comida do almoço não te cai bem, aprenda a cozinhar e faça-a todos os dias.

Certa vez o reitor de uma universidade entrou no banheiro dos homens e viu que uma torneira estava quebrada, jorrando água e inundando vários compartimentos. Imediatamente tirou o terno, retirou a gravata e a camisa e se pôs a cessar o jorro de água, no que foi bem sucedido. Em seguida acionou o pessoal da engenharia para providenciar o conserto definitivo.

Se o principal executivo de uma organização gigantesca é capaz de atitude semelhante, por que eu não seria? Depois que a instituição soube do ocorrido, divulgação feita pelos alunos e professores que estavam ali naquele momento vendo a atitude do reitor, praticamente todos louvaram a iniciativa. Tanto é assim que estou eu aqui a lembrar desse feito, mais de duas décadas depois.

Toda iniciativa desse porte é divina e louvável. É o que todos gostariam de fazer, mas, incrivelmente, não se sabe o porquê de não levá-lo a cabo. É formidável a atitude de alguém que recolhe o mendigo da rua e o leva para sua casa para tratar dele como se fosse parente seu, mas é impressionante que aquelas pessoas que mais se emocionam ao saber dessas ocorrências são aquelas que menos capazes são para fazer o que lhes emociona. É provável que a emoção não seja devido ao fato presenciado, mas pela consciência de sua incapacidade.

Fazia mais de mês que os funcionários entravam pelo portão quebrado da entrada principal e se contorciam um pouco, para que não se machucassem. Um deles, que estava a serviço na unidade de outro estado voltou e, ao entrar, percebeu o portão trincado. Deu meia volta e foi a uma pequena loja de material de construção da esquina, comprou uma nova dobradiça e substituiu a que estava com problema. Novamente todos poderiam entrar na empresa sem problemas.

O que esse servidor fez? Ele foi lá e fez. Simples assim. Ele não esperou que alguém o mandasse fazer, mesmo por que essa não era sua responsabilidades. Também não ficou xingando a empresa e os funcionários responsáveis pelo portão quebrado. E tampouco ficou resmungando pelos cantos pelo contorcionismo necessário para que pudesse entrar sem se ferir devido ao portão quebrado. Ele foi lá e fez.

Vai e faz. Não resmungue. Não esbraveje. Não xingue. Não culpe. Vá lá e faça.

Se os copos estão em cima da mesa, vá lá e os coloque no lugar. Se a roupa de cama está fedendo xixi, vá lá e as lave. Se seu chefe não lhe dá bom dia, dê bom dia a ele. Se seu marido não limpa as paredes da sala, vá lá e limpe-a ou pinte-a. Faça isso uma vez e tantas quantas forem necessárias, se isso lhe incomodar. Deixe o seu ambiente o mundo do jeito que você gosta. E isso só precisa de sua ação. Vá lá e faça.

Se você fizer isso, coisas milagrosas vão começar a acontecer. A primeira é que o tempo perdido com tristezas e frustrações vão diminuir muito. E com a possibilidade de desaparecer. A segunda é que você se tornará mais autônomo, independente, não precisará mais dos outros para que você se sinta bem. Você será capaz de preparar o caminho do seu sentir bem. A terceira é que você descobrirá inúmeras coisas que precisa aprender e que não sabe fazer. Isso lhe proporcionará mais conhecimentos e habilidades. E, quarta, como todo conhecimento e habilidade mudam o nosso comportamento, você se recobrirá de atitudes cada vez mais bela, o que levará ao quinto milagre, que é mais e mais pessoas gostarem de você.

Ir lá e fazer, portanto, é uma atitude simples que transforma completamente a vida da gente. Se você vive reclamando que não tem dinheiro, vai lá e aprende uma forma legal ter o dinheiro que você quer ter. Se vives triste porque não consegue o reconhecimento profissional que teus conhecimentos e habilidades permitem, vai lá e obtém outros conhecimentos e novas habilidades que te tragam o reconhecimento esperado. O que não vale é ficar parado, reclamando da vida e sendo infeliz. O tempo passa rápido. E logo já é chegada a hora da partida.

Vai lá e faz. Deixe o mundo mais parecido contigo. E seja feliz.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Triste Razão

 Há quem sonhe em ter muito dinheiro, como se esse bem pudesse sanar todos os problemas e dificuldades da vida. A vida vai mostrando, porém, que saber lidar com dinheiro é uma das grandes lições que se tem que aprender. E isso não é fácil. Muitos sucumbem fazendo do dinheiro o fim da própria vida, nos dois sentidos semânticos. Apenas aqueles que o tornam meio para fins mais nobres é que conseguem viver de forma menos atribulada. Mas a primeira coisa que se tem que entender é uma lógica simples, esquisita e triste.

Comecei a trabalhar muito cedo. Aos cinco anos já vendia tomates, vassouras, maxixe e outros produtos nas ruas de Alenquer. Mas foi pela altura dos dez anos de idade, quando já dominava completamente a arte de datilografar, que comecei a ter um retorno sistemático, em forma de dinheiro, do meu trabalho. Praticamente toda semana, eu recebia um pequeno pagamento pelas coisas que eu fazia.

Quando chegava em casa, entregava quase todo o dinheiro que eu tinha recebido para a minha mãe guardar. Ela era o meu banco, no sentido singelo de guardar o meu dinheiro. Nada de juros para mim e tampouco taxa bancária para ela. A ideia era simples: quando eu precisasse, bastava pedir para que ela me desse. Quase nunca perguntava para que eu queria o dinheiro que eu pedia.

A dinâmica era, portanto, toda semana lhe entregar um pouco de dinheiro e, ao longo da semana, quando eu precisasse, pedia e ela me atendia. Entrada e saída de recursos financeiros apenas. Contabilidade simples, cálculo fácil de fazer. Mas, na prática, as coisas não são bem simples assim.

Alguma coisa esquisita e triste acontece entre os intervalos de tempo em que nos prestamos a fazer um pequeno balanço da situação financeira. A esquisitice e tristeza é maior para quem está começando a lidar com dinheiro, como foi o meu caso e o caso da maioria das pessoas para quem eu contei a minha história.

Parece que a mente trabalha de uma forma a maximizar as entradas e a minimizar as saídas. Esclareço. Toda semana parecia ficar registrado na nossa mente, com bastante clareza, o quanto foi entregue ao banco (no meu caso, para a minha mãe), mas, inversamente proporcional, a própria mente se encarregava de apagar ou deixar apenas de forma sombria, nebulosa, aquelas retiradas que eu fazia. E o resultado disso era que, na minha mente, eu tinha mais dinheiro do que efetivamente tinha no bolso do vestido onde minha mãe guardava minhas economias.

Eu não anotava em nenhum papel o quanto eu entregava e o quanto eu retirava. Não tinha esse registro formal de entrada e saída de dinheiro. Deixava tudo sob a responsabilidade da minha mente. E isso também não me preocupava. Mas quando eu queria comprar algo que custava um pouco mais dinheiro, uma calça jeans, por exemplo, quase sempre minhas economias me deixavam na mão. Minha mãe me dizia simplesmente que faltava dinheiro. Mas minha mente me dizia o contrário. Não apenas me dizia o contrário, mas me levava e às vezes me forçava a desconfiar da honestidade da minha própria mãe, coisa veementemente repudiada e jamais obedecida por mim. 

Eu deixava a compra para outra ocasião. Mas ficava, naturalmente, com a pulga atrás da orelha, desconfiado. A desconfiança jamais fora em relação à dignidade de minha matrona. A curiosidade vinha como decorrência do desequilíbrio que minha mente apontava entre a entrada e a saída de recursos. Eu imaginava que tinha uma certa quantidade de dinheiro, porém a realidade me apontava outra.

Cresci um pouco e tive que sair de casa, para enfrentar o mundo. E trabalhei novamente. E novamente comecei a ganhar meu dinheirinho. Aqui a dinâmica era parecida, mas diferente ao mesmo tempo. O dinheiro entrava na minha conta bancária de verdade e eu o ia retirando ao longo do mês, para as necessidades da minha casa e pessoal. Como eu não tinha cheque especial, quando as retiradas zeravam a conta, os cheques começavam a voltar (naquele tempo havia essas coisas anacrônicas, que era um pedaço de papel com um certo valor anotado que as pessoas e empresas recebiam como pagamento a ser descontado em relações interbancárias). E começavam os problemas.

Eu comecei a desconfiar da honestidade do banco. Eu imaginava que o banco estava me roubando, contabilizando demais as minhas retiradas. Veio em mim a lembrança do que ocorria quando minha mãe era o meu banco. O que estaria acontecendo, afinal? E por que isso acontece?

Comecei a fazer anotações no canhoto do talão de cheques. Eu pegava o meu saldo no início do mês e ia diminuindo cada cheque ou retirada que eu fazia. Dessa forma eu comecei a saber com certa precisão quanto restava na minha conta bancária. Mas, ainda assim, o dinheiro na minha conta acabava antes do que indicavam as minhas anotações.

Um dia tive a ideia de gastar quase nada do meu salário. E assim o fiz. Apenas o essencial, o essencial mesmo, era comprado ou pago, como conta de luz e telefone. E resolvi pegar extratos semanais, para acompanhar o que estava acontecendo na minha conta. No final do mês, para minha surpresa, não detectei nada de anormal. Quer dizer, algo anormal aconteceu: mais da metade do meu salário estava lá na conta. E, o que é melhor, o mês tinha acabado. E ainda faltava entrar o salário!

Fiquei novamente com a pulga atrás da orelha. Algo esquisito estava acontecendo. Quer dizer, não estava mais acontecendo a esquisitice de sumir meu dinheiro da conta. Eu parecia jurar que quando a gente não presta atenção nas entradas e saídas de dinheiro, o dinheiro some; mas, se a gente controla tudo, tintim por tintim, diariamente, todo o tempo, o dinheiro fica lá. É claro que isso exige tempo e paciência. E, mais do que isso, determinação.

Depois de muito estudar (e praticar) finanças descobri, com um ramo da ciência chamado psicologia financeira ou econômica, que a mente nos surpreende de verdade. É ela que, através de determinados hormônios, faz abrandar o impacto das retiradas e mantém firmes as entradas, causando essa dissonância entre o que entra e o que sai de dinheiro, nos levando a desconfiar da honestidade dos outros. Na verdade, a ciência mostra que a primeira desconfiança tem que ser com a gente mesmo.

As riquezas materiais (e dentre elas as riquezas financeiras) são decorrentes da nossa determinação em controlar o que entra e o que sai. Quando essa determinação se torna um hábito, educamos a nossa mente para lidar com adequação com a dinâmica de entrada e saída de dinheiro. E só então compreenderemos que não é a honestidade ou desonestidade das pessoas que faz diminuir, aumentar ou permanecer constante o saldo de nossas contas, mas as nossas atitudes. Todo pobre financeiro é pobre mental e miserável em atitudes. É escravo de uma triste razão. Razão que teima em ter.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Sabes Pedir?

Pode até parecer algo estranho, mas é muito difícil encontram alguém que saiba pedir aquilo que deseja. E isso inclui desde aquele comprador que quer comprar determinado produto até aquele que, por necessidade de caridade, precisa encarecidamente de alguma coisa. Quando essas pessoas fazem os seus pedidos a impressão que se tem é que se está diante de algum tirano. Do lado extremo estão os ingênuos, indivíduos com comportamentos marcadamente infantis, que parecem imaginar que aqueles a quem fazem suas solicitações são seus empregados ou, o que é tão grave quanto, seus servos.

Certa vez um grupo de dez estudantes de Administração (e eu no meio) procurou um deputado estadual para pedir colaboração para que pudessem participar de um encontro nacional de estudantes em Salvador, na Bahia. O deputado nos recebeu, muito solícito, ouviu com atenção as palavras de cada um de nós. Depois que falamos, ele perguntou: "quanto custa as passagens e as estadias de todos vocês?".

Aquela pergunta me atingiu mortalmente. Quanto custa cada passagem? Quando custa a diária de um hotel sem estrela? Nós não sabíamos. Na verdade, não fazíamos ideia de que precisávamos ter essas informações. E não só essas, descobri depois. Eu precisava saber o preço das passagens rodoviárias e aéreas, se poderia pagar a prazo ou apenas à vista, com quanto tempo de antecedência deveria ser feita a reserva, no caso de orçamentação de órgãos públicos e mais uma série de outras questões que estavam por trás de um simples pedido de ajuda.

Outro dia recebi um pedido singular. Uma senhora na rua me parou e pediu dinheiro para comprar um remédio para suas dores nas costas. E eu perguntei: quanto custa? Ela olhou para mim, surpresa, baixou a cabeça e disse "não sei". Como estávamos próximos a uma farmácia, perguntei novamente "qual é o nome do remédio?". Aquela senhora parecia ter sido atingida mortalmente, tal qual eu fui há décadas, diante daquele deputado. A senhora não sabia. 

Mas, diferente do deputado, que nos pediu para fazer esse levantamento e depois voltar, me dispus a ir até a farmácia consultar o farmacêutico. E assim fizemos. Comprei o remédio indicado e entreguei a ela, que apenas olhou para mim, meio indiferente, e foi embora, sem agradecer.

Durante meu tempo de quartel, tinha um sargento odiado por todos. Sempre que podia, aquele militar maltratava demais seus subordinados. Certo dia ele chegou muito atrasado para o almoço. Tentou forçar ser servido fora do horário, sem sucesso, pelos soldados que estavam terminando de lavar o refeitório. Diante da ameaça de insubordinação, um dos soldados pediu que ele se sentasse na mesa ao lado da entrada do cassino dos subtenentes e sargentos, que ele iria fazer e servir o almoço, mesmo fora do horário, mesmo correndo o risco de transgressão militar por desobedecer ordem do tenente comandante daquela unidade.

De onde estava, o sargento não viu como seu almoço foi feito. Um dos soldados pegou um bife bem robusto e jogou no chão como se joga pedra na superfície de lagos, para que ela quique várias vezes até afundar. Só que o bife deslizou naquela água suja misturada com sabão e desinfetante do piso da cozinha. Outro soldado pegou o bife com, com o rodo, jogou para cima e o chutou, enquanto o outro o aparava no peito, como se fosse um jogo de futebol.

Outro soldado disse que a carne estava dura e precisava ser amassada. Pisoteou-a no chão com seu coturno várias vezes. Outros passavam os acompanhamentos nos seus órgãos genitais, enquanto outro passava os tomates em sua grande ferida na altura do joelho. Como colocaram muito molho de saladas, o cheio e o sabor ficaram disfarçados. O bife ficou bastante queimado, quase crocante. O aspecto estava agradável e deixou o militar satisfeito.

O que essas pessoas não percebem é que todo pedido é uma solicitação de favor. Não é obrigação. E, como favor, a outra pessoa faz se quiser. O outro atende o pedido se quiser. E ponto final. Isso vale em casa, no trânsito, no trabalho e qualquer lugar do universo. A pessoa solicitada pode simplesmente não querer atender. Ela está no direito dela. Ainda que moralmente possa ser condenável, legalmente nada a obriga a fazer aquilo que a lei não o faz.

Outro dia uma mãe pediu que sua filha lhe trouxesse um copo de água. A filha se recusou. A amiga da mãe reagiu nervosa, condenando a atitude da filha. A mãe, compreensiva e conhecedora da arte de pedir, simplesmente pediu que a amiga deixasse para lá. A filha estava no direito legal de recusar atender o pedido, ainda que, moral e fraternalmente, a atitude tenha sido grosseira.

No trânsito, por exemplo, quando se quer mudar de pista de rolamento há que se sinalizar com o pisca-alerta. Aquela sinalização é um pedido, um "por favor, você me deixa passar na sua frente na sua faixa de rolamento?". Muitos atendem ao pedido reduzindo a velocidade, mas outros não o fazem. A atitude civilizada de quem atende é louvável, mas as atitudes grosseiras dos outros não podem ser condenadas. É preciso compreender isso.

Essa, portanto, é a primeira lição do ato de pedir: quem recebe o pedido, atende se quiser. Se não quiser, quem faz o pedido não tem o mínimo direito de se contrariar e muito menos reagir com agressão ou se deprimir. A segunda é relativa ao tempo: quem quer ser ajudado precisa esperar a disponibilidade do outro para ter seu pedido atendido. 

Nada, portanto, de ficar pressionando, procurando saber quando o pedido vai ser realizado. Evidentemente que o indivíduo que se dispôs a ajudar pode esquecer do compromisso assumido. E isso é natural. Daí quem deseja a ajuda tem que ter habilidade para lembrá-lo. Há quem diga "Não estou querendo lhe incomodar ou pressionar, mas não esqueça do meu pedido, querido amigo". E basta. E essa lembrança tem que ser feita apenas uma vez. Se o indivíduo esquecer novamente é porque não quis atender. Simples assim.

A terceira grande lição da arte de pedir é o modo de ser atendido. Muitas vezes criamos expectativas sobre como queremos que as coisas saiam, como aquilo que queremos tem que ser e assim por diante. Tire isso de sua cabeça definitivamente. Faça o pedido e ponto. A forma como o outro vai atender não interessa, se não não é pedido.

Certa vez uma vizinha pediu ao vizinho que limpasse o telhado de sua casa. O vizinho demorou para atender. Quando o fez, utilizou um produto químico de que a vizinha não gostava. A vizinha ficou uma fera e passou a falar mal do outro para a comunidade dizendo que o vizinho a queria envenenar porque tinha colocado aquele produto no seu telhado. Omitiu o fato de que o vizinho tinha atendido um pedido e desconhecia o "desgosto" da outra em relação ao produto utilizado, que ele mesmo comprou, diga-se de passagem, e que sempre utilizava para deixar o telhado de sua casa tão belo quanto queria a vizinha.

Se essas três regras forem obedecidas, dificilmente teremos consequências desastrosas com os pedidos de ajuda que fazemos aos outros. Saber que não atender é um direito do outro, que o tempo e o modo de atendimento são determinados por quem vai atender o pedido é uma forma superior de civilização que todos deveriam conhecer e praticar.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

A Conquista da Independência

Acho que todo mundo quer ser independente. Não lembro de ter conhecido alguém que tenha me dito, convictamente, que gostaria de permanecer a vida toda dependendo dos outros. É provável que a dependência seja antinatural. Tudo parece convergir para a conquista da autonomia. Mas o que é isso e como se pode fazê-lo?

A palavra autonomia vem do grego αὐτόνομος (pronunciado autonomos), junção de αὐτο (pronúncia auto), que quer dizer "de si mesmo", com νόμος (pronúncia nomos), que quer dizer lei, norma, regra. Por extensão, autonomia quer dizer criação de leis para si mesmo, que é a exata tradução da frase "aquele que cria suas próprias leis". Vejamos isso mais de perto.

Nunca é demais dizer que uma lei é criada para ser obedecida. Se não o for, para que serve? Daí vem a primeira desilusão de muita gente, que imagina que a pessoa independente é aquela que faz o que quer, o que bem entender, o que vem na telha. Aquele que é independente cria suas próprias leis para segui-las. E as segue com tanta dedicação quanto segue todas as outras. Se isso é irracional, vamos explicar a lógica da independência.

A falta de autonomia é chamada de anomia, palavra que vem novamente do grego e significa falta de lei, norma, regra. Aqui o indivíduo é quase que absolutamente dependente dos outros (com o perdão do pleonasmo, uma vez que quem é dependente só pode depender dos outros ou de alguma coisa). É o caso dos bebês recém-nascidos, que precisam de ajuda para quase tudo. Para eles não há regras porque eles simplesmente não conseguem segui-las porque não as conseguem entender. Veja que entendimento e autonomia são mutuamente dependentes, estão sempre presentes juntas. Quanto mais saber, mais independente o indivíduo será.

O estágio seguinte ao da anomia é o de heteronomia. Heteros, também do grego, quer dizer outros. Neste estágio já há lei. Mas todas elas são dos outros. Uma criança de cinco ano não consegue fazer suas próprias leis e segui-las. Ela precisa dos outros para criar as leis que elas precisam aprender a obedecer. Se ela quiser colocar os dedos na tomada, alguém precisa proibi-la, para que ela não se machuque ou venha até mesmo a morrer. Essa proibição é que é a lei. Daí vem a segunda constatação: a lei é feita para proteger as pessoas. Quanto maior nossa capacidade de seguir a lei, mais em segurança estaremos. Consequentemente, mais livres seremos, porque nada poderá barrar a nossa ação.

Os pais e familiares são os grandes ensinadores das leis neste estágio, assim como os professores. É preciso que o indivíduo comece a aprender a obedecer aqui, para que não haja problemas nos estágios seguintes. Nem pensar em pular, deixando que a criança faça o que bem entender, a não ser que se queira um tirano em casa e na vida.

O terceiro estágio é o de socionomia. Socio é um termo que vem do latim socius e quer dizer amigo, companheiro, outro indivíduo. Aqui o indivíduo aprende que a escola tem regras diferentes das de sua família e dos seus amigos. Aliás, dentro da própria família há regras diferentes nas casas dos tios, dos avós e assim por diante. E ele vai aprender a terceira coisa que quase ninguém ensina, mas que é fundamental para viver bem: é preciso respeitar todas as leis para que sejamos queridos.

Ele vê na escola e no clube que Mariazinha é amada por todo mundo, mas ninguém suporta o Juquinha. A razão? Simples: Mariazinha não desrespeita as regras dos grupos de que ela participa, diferente de Juquinha, que está quase sempre esperando uma oportunidade para desrespeitá-las por concordar só com as que lhe convém. Além disso, Mariazinha é solícita para com todos, enquanto o amigo é muito egoísta. Alteridade e obediência são os segredos do bem querer.

É só depois de conquistar os aprendizados dessas etapas que o indivíduo consegue adentrar o estágio da autonomia. Ser autônomo é obedecer a todas as leis, em primeiro lugar. Daí ele verá que ainda assim, obedecendo a todas elas, ainda é necessário criar outras que as leis não preveem. E assim ele faz. Só que suas leis não conflitam com nenhuma outra lei existente. Se conflitar, sabe que tem sua liberdade reduzida pela possibilidade de arcar com as consequências legais e/ou morais da infração.

Mas tem uma consequência prática que evidencia a autonomia como vinculada ao entendimento e que marca a independência. Quanto mais coisas o indivíduo conhecer e souber fazer, menor a sua dependência dos outros. Se sabe lavar roupas, não precisará de quem as lave para ele. Se sabe cozinhar, provavelmente não passará fome por falta dessa habilidade. Se sabe falar chinês, certamente não se verá em apuros em nenhuma cidade chinesa de que conheça a língua.

Dai vem que as primeiras habilidades (assim como o entendimento) tem que vir com o auxílio dos pais. Ir ao banheiro fazer xixi, por exemplo, é uma das primeiras habilidades. Mas não se pode parar apenas no básico. É preciso ensinar a arrumar a cama, guardar os brinquedos, colocar as roupas sujas no lugar e assim por diante, à medida que o indivíduo vai crescendo. O motivo desse procedimento é que a habilidade é que vai julgar, consciente ou inconscientemente, o valor do entendimento. Quanto mais coisas o indivíduo souber fazer, maior e mais complexo poderá ser o entendimento que ele é capaz de obter. Essa é a quarta lição que quase ninguém ensina porque não a conhece.

A grande meta de todo o esforço de autonomia e independência é que o indivíduo consiga sobreviver sozinho o mais breve possível. E quando se fala em brevidade, é brevidade de tempo mesmo. Se conseguir aos 15 anos, maravilhoso; se apenas aos 21, menos pior. O que não pode é o indivíduo se transformar em um figurão empenado que suga as energias de todos durante a vida toda. Esse continua a ser quase que absolutamente incapaz que apenas uma mudança drástica provocará por força das necessidades o início do aprendizado que deveria começar na primeira infância e que provavelmente será feito agora com dor.

Então, quer ser autônomo e independente? Aprenda a fazer tudo na vida. Desde lavar privadas até o mais complexo cálculo matemático. Desde olhar para alguém e saber que ela está triste até dominar diversas técnicas de multiplicar dinheiro legalmente. Estamos na vida para aprender tudo o que for possível. Nada, absolutamente nada, deverá ficar de fora do nosso campo de preocupação de aprendizagem. Não podemos perder tempo. Até quando descansamos devemos aprender. O descanso bem usufruído também é demonstração de liberdade que apenas a autonomia e a independência podem proporcionar com adequação.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Por Que não és Feliz?

Muito se tem falado sobre a felicidade e muito pouco ainda se sabe efetivamente sobre esse fenômeno extraordinário. Alguns têm a sua própria receita para alcançá-la e acham que podem ensiná-la aos outros, principalmente se os outros estiverem dispostos a pagar por isso. A maioria parece dormitar sobre alguns momentos ao longo de suas vidas que tiveram a oportunidade de sentirem felizes. Ainda que as receitas dos chamados especialistas em felicidades não sejam confiáveis, parece que há uma lógica entre as vivências felizes relatadas por muita gente.

Grande parte desses relatos se concentram em dois momentos. O primeiro é quando estão fazendo alguma coisa, o exato instante em que produzem algo, de maneira que o agir, a operacionalização parece ser uma das fontes de felicidade. Os relatos dessa primeira forma denunciam uma espécie de prazer muito forte e diferente dos demais prazeres da vida.

Uma enfermeira certa vez me falou que encontra muitas dificuldades para chegar ao trabalho. Começa pelas várias tarefas que tem que fazer em casa, antes de sair, prossegue com a rotina de preparar e levar os filhos à escola, continua com as várias horas que permanece no trânsito pesado e barulhento e perdura até enfrentar os olhos sempre encolerizados da chefa. Mas milagrosamente começa a desaparecer completamente quando ela começa a tratar das pessoas. Cada procedimento é como se ela fosse tomada de um profundo bem estar que a fizesse flutuar.

Certa vez uma diarista me falou coisas comoventes neste sentido. Ela dizia que era muito feliz com o que fazia. Era feliz de verdade. Seus relatos mostravam que tudo o que fazia durante o seu trabalho era uma forma de desafio que ela colocava para si mesma deixar aquele local o mais limpo, belo e perfumado como ninguém jamais deixara antes, inclusive ela. E à medida que ia fazendo as coisas, ia percebendo a transformação que estava produzindo em cada centímetro de chão, cada milímetro de móvel, cada decímetro de parede. No final de cada pequena peça de móvel ou pedaço de chão, ela comparava aquela primeira imagem com a que acabara de produzir. E aquela sensação fantástica de bem estar e leveza lhe tomava o corpo todo, deixando-lhe extasiada. Seus olhos brilhavam à medida que ela relatava essas coisas.

Inúmeros outros relatos parecidos me levaram à minha primeira conclusão, pelo menos parcial, de que o ato de fazer as coisas provoca uma sensação de bem estar profundo em algumas pessoas que elas não têm dúvida de que aquilo é felicidade. Já ouvi isso de jogadores profissionais e amadores de futebol, médicos muito dedicados, garis, cientistas, professores, cuidadores de idosos, pescadores, agricultores e dezenas de outros profissionais e artífices. Alguns artesãos, por exemplo, me disseram que têm uma sensação divina durante e após suas criações.

A segunda constatação é a de que fazer o bem traz felicidade. Nesta segunda modalidade, não é tanto o ato em si de fazer alguma coisa o centro da empolgação dos relatos, mas os resultados que aquilo que foi feito trouxe para algumas pessoas. A felicidade, portanto, é pelos benefícios gerados, o que dá uma sensação inquestionável de dever cumprido, de missão dada e realizada. Mas não é uma missão qualquer.

Uma amiga de longas datas não tem filhos, nem maridos, nem família. Quer dizer, sua família são seus animais. Mais precisamente, gatos e cães. Seu ofício é a corretagem de imóveis, que lhe dá muita satisfação. Mas apenas o cuidar dos animais lhe dá felicidade. Relatou que certa vez encontrou uma cadelinha abandonada na rua, atropelada, morrendo de frio, de madrugada chuvosa. Não teve dúvida: parou o carro, colocou a cadelinha no banco do carona e a levou para casa. Gastou muito dinheiro para recuperar a vida do animal. Depois de recuperada a saúde, sentiu uma felicidade tão grande que lhe faz chorar todas as vezes que relembra. E é assim com todos os animais que cuida.

Um ex-colega de trabalho é excelente profissional e rico. Tem uma família maravilhosa e harmoniosa. Essas coisas todas lhe dão profunda satisfação na vida. Mas todas as noites ele sai para alimentar aqueles não têm o que comer pelas ruas de sua cidade. Quando volta para casa, se sente tão leve e feliz que quase sempre lágrimas lhe caem dos olhos. Recentemente tem se dedicado também a levar alimento para famílias inteiras que, mesmo tendo uma habitação fixa, não têm o que comer.

Mas o que chama a atenção é que muitos casos de felicidades contínuas não têm essa separação de ofício profissional que dá satisfação e uma espécie de missão, que traz felicidade. Tem muita gente que é feliz tanto fazendo o bem no seu local de trabalho quanto em outras missões que eles se colocam. A razão disso é que elas fizeram do trabalho delas uma missão, da mesma forma que escolheram outras missões para também serem felizes.

E é justamente isso o que impressiona: as pessoas escolheram uma missão para serem felizes. Não foi vocação. Foi escolha pura e simples. Tanto é assim que conheço muita gente que não gostava do trabalho que executavam, mas que quando resolveram fazê-lo bem, detalhe por detalhe, passaram não apenas a gostar do que faziam, mas fundamentalmente a amá-lo. Daí o trabalho se transformou em missão. E toda missão amorosamente trabalhada provoca aquela sensação de leveza e bem estar da felicidade.

Isso nos leva a algumas constatações. A primeira é que a concentração em cada detalhe do que se faz, em cada etapa do que é feito, além de dissipar a fadiga do trabalho renova as energias das pessoas e as fazem se sentir muito bem, que é o sentimento de felicidade. A segunda é que quando as pessoas fazem coisas que beneficiam muito os outros e consideram esse fazer uma forma de missão, a cada vez que realizam o trabalho e constatam os benefícios gerados se enchem de uma leveza muito grande que vem da sensação do dever cumprido, que também lhes dá felicidade. A terceira é que a felicidade é resultado da ação, ainda que a sensação comece a acontecer no exato instante em que a ação é executada e se estende para além do final da execução, com aquela sensação de dever cumprido.

Alguém poderia até dizer que podemos estar confundindo satisfação com felicidade. Pode ser. Mas esses relatos permitem distinguir com clareza uma de outra. A satisfação, quando retirada sua fonte, cessa; a felicidade, quando retirada sua fonte, continua. Muitos se sentem extremamente satisfeitos em morar em lugares confortáveis, mas são infelizes; outros se sentem felizes,  mesmo morando nas ruas, porque fazem alguma coisa extraordinária, como se fosse sua missão. Inúmeros casos de pessoas que cuidavam das outras, atos que lhes davam profunda felicidade, continuavam com a sensação de felicidade depois de cumpridas suas missões.

Daí vem que a satisfação tem um contrário, que é a insatisfação, enquanto contrário de satisfação, algo como irritação. Mas não existe um contrário de felicidade. A infelicidade é apenas ilusão. Geralmente quando a pessoa se diz infeliz, de fato não é infelicidade o que sente, mas algo parecido com insatisfação com alguma coisa. Se felicidade é essa sensação de leveza, flutuação, a infelicidade, se existisse, seria o contrário, enquanto sensação de se enterrar, como se tivesse caído em areia movediça.

A fórmula da felicidade é essa: fazer o bem e procurar fazê-lo sempre cada vez melhor. A primeira parte da fórmula é o desafio de ver os beneficiários da nossa ação pelo menos satisfeitos, usufruindo dos benefícios que lhes proporcionamos, como sensação divina de dever muito bem cumprido. A segunda é um desafio da pessoa com ela mesma, no sentido de se fazer cada vez melhor, mais competente, mais hábil, mais ágil naquilo que se dispõe a fazer. E não importa se o que vai ser feito é um ofício profissional ou uma missão que a pessoa se colocou. Se trouxer o bem para os outros e se fizer cada vez melhor, a probabilidade de que seja feliz é muito grande.

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...