quarta-feira, 28 de julho de 2021

É Só Um Minutinho

Meu vizinho colocou o carro dele na saída da minha garagem. Ele o fez com tanta naturalidade, que me deu a sensação de que nem pensou no que fez. Parece que os ventos da razão não lhe sopraram a possibilidade de que algum carro que estivesse no interior da minha residência precisasse sair e tampouco as luzes da sua consciência puderam iluminar as sombras de sua visão de seu automóvel impedindo a saída. E o incrível é que todo o espaço da frente de sua casa estava limpo e aberto a qualquer estacionamento. Se eu não o conhecesse com certa profundidade, teria todos os motivos para imaginar que ele tivesse feito isso justamente para impedir a minha saída de casa para buscar as crianças na escola.

 E por falar em escola, um segundo exemplo vem de lá. A escola dos meus filhos fica em uma rua isolada de um conjunto habitacional periférico de um bairro da periferia. A rua é tão estreita que dois carros conseguem passar um pelo outro sem tocar apenas com muito cuidado. Assim, dois automóveis não podem ficar estacionados próximos uns dos outros em ambos os lados da rua. A escola fica do lado direito da rua, cuja única saída é para a esquerda com a distância de cerca de quarenta metros da entrada. O perímetro que vai da esquina à saída da rua, à esquerda, deve ter uns 50 metros, que comporta cerca de 12 automóveis para estacionamento temporário. E é aí que está o problema.

A impressão que se tem é que a maioria dos pais de alunos não consegue ver aquele espaço todo para estacionamento temporário. E o que eles fazem? Simplesmente param o carro na frente da entrada da escola e ficam esperando os filhos saírem. Enquanto isso, outros automóveis vão parando e esperando a sua vez de ficar na frente da entrada para que seus filhos possam sair e entrar na escola.

Sabendo disso, chego antes de abrir a escola e coloco o carro próximo à saída da rua, à esquerda. Assim que o portão abre, entrego as crianças e vou embora, antes que o furdunço tenha início. Mas certa vez, para obter dados para saciar minha sede de compreensão dessas coisas bizarras, resolvi deixar o carro na rua principal, bem longe das confusões, e assistir ao que se passava.

Descobri que cada carro ficava obstruindo a passagem da rua por mais ou menos trinta segundos. Como os carros chegavam quase simultaneamente, a fila chegava facilmente aos trezentos metros. E os conflitos pouco a pouco iam surgindo. Festivais de palavrões e ameaças, inclusive com o disparo de arma de fogo.

Você deve estar se perguntando: mas, sim, o que isso quer dizer? Simples: essa é uma demonstração de até onde pode chegar o orgulho humano. O orgulhoso é movido por uma força, muitas vezes inconsciente, de que é superior aos outros, que é mais importante, que tem mais direitos e assim por diante. É preciso que nos concentremos a isso com mais detalhes.

Há orgulhosos que têm consciência do seu orgulho. Têm consciência de que exigem mais poder que os outros, como é o caso de muitos juízes que mesmo fora do horário do expediente querem ser tratados como se em expediente estivessem. Quando há a consciência, o orgulho se torna um indivíduo sórdido, vil, cuja intenção deliberada é prejudicar os outros para que o seu orgulho não seja ferido. É esse orgulho vi, por exemplo, que leva muitos homens a cometer assassinatos de mulheres por ego ferido.

Os dois exemplos que detalhei aqui são atitudes orgulhosas inconscientes. E esse é um problema sério porque tudo o que está armazenado no inconsciente é extremamente difícil de reconhecer. O orgulhoso sórdido sabe, tem consciência de sua sordidez, mas o vizinho e os colegas que nos aviltam a vida com seus orgulhos não percebem o aviltamento.

Quando eu falei ao meu vizinho que ele me fez chegar atrasado à escola por causa do seu carro na saída da minha garagem ele apenas riu e disse que "foi só um minutinho". Ele não tem consciência de que todos os minutos têm exatamente 60 segundos, de maneira que não há minutos maiores e menores. Disse a ele que eu fiquei por exatos 5 minutos batendo na sua porta, depois ele levou exatos 3 minutos para me atender e mais exatos 4 minutos para vestir sua roupa e exatos 3 minutos para tirar o carro, totalizando 15 minutos. Ele ouviu atentamente, sempre sorrindo, sem levar a sério o que eu dizia. Os 15 minutos de vida que ele me tirou não têm a mínima importância. O que tem importância para o orgulhoso é sempre ele, os interesses dele, os objetivos dele, as coisas dele. Os outros e o mundo, que se lixe.

Esse comportamento sórdido é encontrado em todos os lugares onde a vida não tem o mínimo valor, como é o caso do Norte do Brasil. Em lugares onde a lei impera, essas ocorrências são mínimas. E já se contam às centenas as cidades e comunidades em que o respeito predomina sobre o desrespeito. Mas por aqui pelas bandas equatoriais ainda predomina essa tristeza.

Certa vez o cadeirante foi retirado do seu automóvel a pontapés por um orgulhoso porque o irmão com dificuldades de locomoção teria furado a fila e estacionado na vez dele. O orgulhoso viu que ali as vagas eram reservadas, viu o cartão de identificação que atestava a qualificação do cadeirante para estacionar ali mas, ainda assim, achou que aquela vaga era dele, sem nenhuma dificuldade de se locomover, na altura de seus trinta e poucos anos. Seu argumento? Ele iria estacionar ali só um minutinho para pegar a esposa.

Todas as vezes que ouço essa bendita frase me vem uma curiosidade enorme que eu não consigo controlar, que é a de olhar o rosto de quem a pronuncia. "Vou deixar aqui só um minutinho, tá? Já volto". Quando esse aviltamento é realizado com automóveis, geralmente o aviltador deixa o pisca-alerta ligado. Esse aviltador já deu um passo em direção à consciência de seu ato vil. A sinalização é a materialização de que sua consciência já começou a dar sinal de existência.

Outra vez o dono de um minimercado resolveu colocar um vagão de lixo na rampa de acesso da rua para a calçada. Isso impedia que portadores de necessidades e idosos conseguissem andar na calçada, dada a altura da calçada para a rua. Mostrei para ele a dificuldade de uma senhora idosa. Ele sorriu (sempre esse bendito sorriso de sordidez e descaso) e me disse: "é só um minutinho, professor". Daí eu disse que a lei não distingue minutinho de minutão. É proibido e ponto. Aquele vagão ficou lá por mais de oito longos meses.

Não é fácil lidar com o orgulhoso. Tanto é assim que quase todos preferem ignorar essas ocorrências, deixar para lá. Talvez estejam corretos porque mais cedo ou mais tarde cada qual terá a colheita que semeia. Conheci um que encontrou um orgulhoso ainda maior, aquele consciente. Teve o crânio penetrado por seis tiros. Mas eu tenho mania de professor. E professor, também inconsciente ou conscientemente, tem a mania de esclarecer o que supõe não estar claro. E todos esses casos se tornam momentos propícios para levar o esclarecimento aos aviltadores. Talvez essa minha atitude também seja outra forma do orgulho se manifestar.

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...