sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, para isso, não estabelecessem quaisquer princípios filosóficos. Paradoxalmente, experiências fundamentadas filosoficamente neste sentido foram as que geraram as maiores ditaduras e genocídios da história. Infelizmente, a igualdade parece só ser possível no campo do esforço individual com esse intuito. E nada mais.

Não é preciso muita capacidade cognitiva para que possamos perceber, de imediato, que absolutamente nada é igual na realidade. Um cachorro é diferente de todos os outros. Uma moeda de dez centavos também difere radicalmente de todas as outras. Um átomo é hidrogênio, o mais elementar, é quase que absolutamente distinto de todos os demais. Até uma equação matemática é diferente da outra. Por exemplo, f(x) = 2x + 1 é diferente de f(x) = 2x +1,00000000000000000001.

Tudo na realidade parece mostrar que os esforços de igualdade são pura ilusão. Outros até podem argumentar, com muita razão, que a busca por igualdade é esperteza. Se até dois gêmeos univitelinos são universos absolutamente distintos, que saída um indivíduo ou comunidades têm para promover a igualdade?

Parece que a questão precisa ser refeita. A impressão que se tem é que a questão deveria ser: "Por que procurar a igualdade entre os desiguais?". Meu amigo é tão diferente de mim e de todo mundo agora quanto com qualquer experiência de igualdade futura. A questão, portanto, está desfocada. O desafio, na verdade, é desenvolvermos compreensão e capacidade de convivência entre desiguais. Não posso forçar um pé tamanho 50 caber em um calçado de número 20. Inversamente, até que o pezinho entra no sapato, mas ficará tão desconfortável que talvez seja melhor ficar sem proteção nenhuma para os pés.

Isso pode parecer coisa sem importância. Mas vamos ampliar um pouco as coisas, para que possamos ver as consequências do pensamento distorcido. Quase todas as guerras e acontecimentos infames da humanidade foram feitos em nome da igualdade. Hitler queria uma sociedade sem os judeus porque os judeus eram desiguais. A igualdade racial exigia, portanto, o banimento semita. O que fez Davi, o grande nome do judaísmo, quando destroçou povos como os moabitas? Em nome de quê? Exatamente! A igualdade em cultuar o mesmo Deus.

A nossa incapacidade em conviver com as diferenças causa tantos males que não percebemos. É ela que explica o porquê de um juiz mande mandar prender aqueles que falam coisas que não batem com o que supostamente a lei não permite. Não havendo essa igualdade, essa sintonia, o juiz denuncia, processa, julga, condena e ainda fiscaliza o cumprimento da pena. Executa uma série de atos ilegais e imorais apenas para que haja igualdade entre o que se passa em sua mente e o que ele vê.

Nossas sociedades estão contaminadas com esse raciocínio e percepções venenosas. Alguém que não tenha um membro é considerado deficiente. Deficiente? Uma pessoa cega também. Cegos, surdos e mudos são apenas pessoas diferentes de nós. Se aplicássemos de forma inversa o venenoso raciocínio e percepção, quem não é cego seria deficiente porque não teria tanta habilidade nos dedos e olfativos quanto quem não vê desde seu nascimento.

E essa cegueira vai além e toma contornos muito dissimulados, quase imperceptíveis. O aluno que sabe pouco os assuntos da escola e aprende muito lentamente é considerado deficiente. E deficiência é justamente aquele descompasso entre o modelo mental de algum iluminado e o que o aluno efetivamente é. Estão pouco se lixando para todo o universo de saberes e sabedorias que ele traz, que talvez sejam mais importantes do que saber que uma oração é sindética ou assindética, que Sólon era grego ou que a Nigéria fica na África.

Não paramos para pensar, mas quase tudo o que a gente vê e que nos atormenta tem origem nessa ideia de se fazer igualdade com todos os desiguais. Um evangélico é tão belo na sua devoção a Deus, quanto um católico e um muçulmano. Um aleijado é tão maravilhoso nas suas formas de ver a vida quanto quem tem todos os seus membros funcionando perfeitamente. Quem tem a pele preta ou vermelha é tão digna de respeito e dignidade quanto quem tem a pele branca. Se há a possibilidade de alguma forma de igualdade é nisso: a prática da dignidade humana. E até nisso haverá sempre diferença, porque um fará a dignidade diferente de outro.

A maldade inconsciente por trás da igualdade é a causa de todas as formas de intolerância. Se meu irmão não pensa como eu, é autoritário; se não age como eu, é ditador; se não faz o que eu desejo, é genocida; se não sabe o que eu sei, é estúpido. Na mente doente é sempre o eu a referência, a base para o julgamento de tudo. Ela é a igualdade, o sinal de igual; a realidade é o que está do lado direito da equação. E não importa o que seja ela.

Ainda não conseguimos raciocinar retirando o sinal da igualdade da nossa mente. Talvez a vida e a realidade não sejam uma equação. Se não for, não tem sentido pensar de forma comparativa. Sim, pensar em igualdade é comparar. E toda forma de comparação vai encontrar, sempre, uma diferença. E exatamente por causa do que você acabou de perceber: somos todos diferentes. E quem pensa a partir da igualdade se reveste do dever, muitas vezes messiânico, de eliminar qualquer tipo de diferença. E a qualquer custo. É por isso que Napoleão fez o que fez. E é por isso que os políticos corruptos tomam de assalto o poder para ali se perpetuarem. No jogo da igualdade criminosa, vale tudo.

Ao longo da história, as atrocidades são tantas que o difícil é encontrar um momento em que elas não foram proeminentes. Em nome da única proposta para fazer emergir as diferenças para primeiro plano, institucionalizaram-se mundialmente os assassinatos e os genocídios. Em nome daquele que pregou a necessidade do respeito e dignidade a essa coisa que nos torna a todos parecidos (não iguais), ainda hoje criminalizam-se indivíduos e comunidades em inúmeras e diversificadas seitas. Se pudessem, retirariam a vida dos seus desiguais. 

Moda = a loucura de fazer todos serem iguais em alguma coisa

Forçar que todos tenham tudo em comum é forçar que sejamos iguais. Todas as tentativas fracassaram porque é forçosamente impossível que isso aconteça. 

Amar é com os desiguais, porque é cuidar e cuidar é carência, necessidade

Deus nos fez à sua imagem e semelhança = Deus é desigual = por isso é infinito = se fosse igual, seria um

Mostrar que apesar de todos os discursos contrários, o fato é que todos somos desiguais. Não há duas pessoas iguais

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Acreditas na Ciência?

A ciência é um fenômeno extremamente paradoxal. E esse paradoxo é percebido de uma forma um tanto quanto precisa, mas que permite cientistas e de não cientistas. Os cientistas veem a ciência de uma forma completamente diferente dos que a veem aqueles que não a têm como seu exercício profissional. Contudo, para que possamos compreender tal paradoxo, é necessário que algumas características científicas sejam compreendidas.

O que distingue a ciência de outros tipos de conhecimento é a aplicação do método científico. O método científico é uma série de etapas, cada qual com seus respectivos procedimentos, que precisam ser seguidas para que a comunidade científica possa aferir a validade daquilo que é "descoberto". Isso quer dizer que toda comunicação de descoberta científica precisa detalhar como o conhecimento foi gerado. Se a comunicação não contiver esse detalhamento, não é ciência.

O método científico é o que permite que os cientistas possam aferir se determinado conhecimento é válido ou não. Um conhecimento é válido quando os seus resultados podem ser reproduzidos nas mesmas circunstâncias em que ele foi gerado. Isso implica na necessidade de se conhecer como cada técnica, procedimento e condições ambientais interferem em cada resultado apresentado. Como essas as técnicas, procedimentos e condições não são universais, suas limitações precisam ser explicitadas para que se conheçam os limites daquela explicação (que chamamos de nível de análise).

O conhecimento científico é sempre limitado. Embora tenha pretensão universal, essa universalidade é limitada em alguns aspectos. Por exemplo, as explicações dos impactos dos investimento na educação sobre a criminalidade são limitados porque não se pode estudar todos os tipos de investimentos e os impactos de cada um desses tipos de investimentos sobre cada um de todos os tipos de criminalidade. Então há um limite daquilo que se pode estudar, assim como há limite na dimensão geográfica do estudo. Por exemplo, não é possível estudar o  impacto do investimento em educação de cada residência ou família sobre os diferentes tipos de crimes praticados pelos seus membros. Como essas, há inúmeras outras limitações em todo tipo de conhecimento científico.

Os conhecimentos científicos diferem entre si. As técnicas, procedimentos, condições ambientais, perspectivas, valores dos cientistas e inúmeras outras coisas interferem nas descobertas. É por esse motivo que uma vacina A funciona de forma limitada, da mesma forma que o que desmotiva psicologicamente algumas pessoas age como fonte motivadora para outras. Isso quer dizer que a ciência não tem e provavelmente nunca terá uma resposta consensual, única, para tudo. Aliás, no que dia que isso fosse possível, seria o fim da ciência. Essa falta de consenso é consequência dos erros que todo estudo científico apresenta, além de suas limitações.

Para ser ciência, há que haver erro. Um erro nada mais é do que a diferença entre a descoberta científica e aquilo que realmente acontece na realidade. A pretensão da ciência é chegar o mais próximo possível na retratação daquilo que acontece realmente, ainda que esteja convicta de que essa possibilidade é remota. Muitas vezes, o desafio é reduzir esse erro, como acontece com as vacinas e sua eficácia. Para que esse erro se minimize, portanto, é preciso refazer e até mesmo destruir o conhecimento existente, mas sempre com a responsabilidade e maturidade de colocar no seu lugar outro mais seguro.

A ciência é esse jogo interminável que se baseia na destruição. Destruir, aqui, não significa acabar, eliminar, fazer deixar de existir. Destruir é um ato e um compromisso de compreender com precisão o que já se sabe, identificar suas falhas e lacunas, e refazer a construção científica. Imagine uma casa com alguns cômodos em determinado espaço físico. Muitas vezes uma sala não está em harmonia com o conjunto, o que força sua reconstrução; noutras vezes se percebe que está faltando um lavabo na sala, que é construído; noutras vezes é necessário que novos ambientes sejam construídos, como uma piscina ou garagem inexistentes. É assim que funciona a ciência: para se melhorar ou se expandir, precisa destruir.

Perceba como agem os cientistas: eles não agem para dar continuidade ao que existe. Quase todos eles dedicam toda a sua vida para destruir o existente para colocar no seu lugar mais aperfeiçoado. E esse aperfeiçoamento leva em consideração todos os conhecimentos existentes sobre aquilo que estudam, com atenção especial para as dissonâncias, que quem não é cientista chama de contradição. Quando um conhecimento científico é dissonante, os cientistas sabem que ali há a carência de uma ponte, há uma lacuna que precisa ser preenchida, um vínculo que precisa ser construído. Se o conhecimento científico foi gerado com a utilização válida do método científico, seu resultado é confiável, não importando o quanto ele é conflituoso com os outros existentes.

Note que o foco da ciência é sempre a redução daquilo que ela fala com aquilo que ela está falando. Se falo sobre a potabilidade da água, aquilo que eu falo da potabilidade da água tem que haver o mínimo de erro em relação à potabilidade da água real, como acontece na realidade. Como os cientistas estão conscientes dessa atitude, precisam desenvolver uma elevada capacidade analítica, que significa ver os detalhes de cada coisa da realidade, e síntese, que quer dizer juntar os detalhes de cada coisa de um jeito que seja demonstrável. É a esse jogo de análise e síntese que faz com que os cientistas não ajam movidos pela crença popular. Os cientistas não creem, eles não têm crença no sentido de ter confiança sobre alguma coisa e acabou.

A ciência é movida pelo saber. Chamamos de saber àquilo que falamos e somos capazes de demonstrar ou fazer. Só sei cozinhar quando eu cozinho, ainda que não gostem da minha comida. Só sei andar de bicicleta quando consigo me locomover sem perigo por algum tempo ou alguma distância. Tudo aquilo que se fala e que não se pode demonstrar ou não se sabe fazer não é considerado científico. Nas comunicações científicas, a demonstração é dada pelo detalhamento do método a partir da descrição de como cada procedimento, técnica e condições ambientais que afetam os resultados. O saber é essa demonstração que outros podem reproduzir e confirmar.

Isso pode parecer desalentador e até mesmo frustrante para muita gente, mas os cientistas não acreditam na ciência. No máximo, eles acreditam desconfiando. Mas a palavra acreditar é muito forte e até mesmo exagerado para representar suas atitudes. O motivo disso é que eles sabem que todo discurso, tudo aquilo que é comunicado (como esse meu texto), é limitado. E a crença é uma instância psíquica que elimina a consideração da possibilidade de falhas e erros. E quando se tem essa atitude, todo e qualquer discurso é apenas mais uma tentativa de se aproximar da realidade, sem que, efetivamente, tenha esse sucesso.

Foi por essa razão que um dos grandes cientistas da atualidade disse que "a crença na ciência" é a atitude mais anticientífica que a humanidade jamais teve. Como a ciência é esse esforço incessante para levar a todas as mentes a compreensão de que as crenças impedem que o saber emerja, colocar em primeiro plano a crença em detrimento dos procedimentos da ciência é ser anticientista efetivamente. Aliás, essa é uma daquelas afirmativas típicas que não são passíveis de serem comprovadas cientificamente. É uma afirmativa de fora do campo científico. Provavelmente veio da filosofia, da religião ou do senso comum, conhecimentos que quase sempre ignoram o que se passa na arena científica.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Quando Começas?

A procrastinação é uma doença. Ela é o fato costumeiro de deixar tudo o que se pode e se deve fazer agora para depois. Procrastinar é adiar. Adiar uma ou outra vez, até que é algo normal na vida de qualquer pessoa. Ela se torna uma doença quando a gente se acostuma a adiar coisas fundamentais para a vida e que, por isso, compromete séria e decisivamente o nosso futuro. Mas por que que isso acontece?

Zizita tinha o hábito de não obedecer aos pais desde a mais tenra idade. Seus pais pediam que ela não deixasse suas roupas no chão, mas a garotinha não obedecia e os pais acabavam desfazendo a bagunça. Na adolescência, não gostava de estudar. Imaginava que quando fosse adulta tomaria rumo na vida. A vida adulta chegou e a garota se convenceu de que ainda era muito jovem para se preocupar com o futuro, e resolveu viver a vida. Viver a vida era se embriagar constantemente e passar dias nas farras. 

O tempo foi passando e agora senhora madura achava que um bom casamento viria, mais cedo ou mais tarde, dada a sua formosura. O tempo passou e Zizita adentrou o mundo da terceira idade esperando que as benesses da aposentadoria por idade, sem contribuição, poderia lhe sorrir, ainda que uns míseros reais lhe fossem dados todos os meses. Não contou com a mudança das regras, que lhe deu as costas. Morreu tal como viveu.

Nossa personagem fictícia não foi disciplinada. E disciplina sempre significa gerenciar a si mesmo. E gerenciar é o desafio de alcançar objetivos a partir do uso comedido e racionalizado daquilo que se tem. Alcançar objetivos é a palavra mágica, que significa ter no futuro aquilo que se deseja agora. Para que um objetivo seja alcançado, portanto, é preciso primeiro delineá-lo, desenhá-lo com exatidão para, em seguida, começar o esforço de concretização. Se o objetivo diário da criança era não deixar suas roupas espalhadas pelo chão, o esforço deveria ser dela, para que ela entendesse que aquele objetivo não seria alcançado sem o seu esforço. 

Mas os pais estragaram tudo ao convencê-la desde a primeira vez que eles poderiam fazer o que a ela foi atribuído, caso ela não o fizesse. E a cada vez que a recusa em obedecer se repetia e os pais faziam a atribuição, mais o cérebro e a mente da garota se convenciam de que bastava recusar que as coisas lhe cairiam do céu. É justamente nessa primeira fase que se instaura a personalidade do indivíduo, como a base sobre qual serão edificados os alicerces, as pilastras do caráter.

A fase da adolescência é a consolidação do que se edificou na infância. Infraestruturas de personalidades satisfatoriamente construídas não encontram muitas dificuldades nos grandes testes que a transição para a fase adulta faz. Se Zizinha estivesse convencida através de experimentos diários de que todos os seus objetivos poderiam ser alcançados pelos milagres de seus esforços, fatalmente perceberia que era possível casar o gozo de momentos alegres da adolescência com a consolidação das bases que lhe trariam tranquilidade na fase adulta.

A prática da disciplina nessas duas fases fariam com que a garota tivesse demonstrações diárias de que é possível fazer sucesso com os diferentes "amigos" e ser aceito por eles (que é o que caracteriza a adolescência) e alcançar sucessos maiores dali em diante. Se foi possível alcançar objetivos na adolescência, bastaria que esforços continuassem sendo enveredados para a construção de uma vida adulta de prosperidade. Estudar ou adquirir habilidades profundas sobre alguma coisa seria a constatação natural de que deveriam receber maiores esforços, maiores investimentos.

O sucesso duradouro e permanente existe. O sucesso passageiro, fugaz, também. O que diferencia um do outro é justamente o quanto foi investido em cada um. Não em forma de dinheiro, apenas. Mas fundamentalmente em forma de tempo. Investir na disciplina e autodisciplina na infância começa a produzir resultados ainda naquela fase, mais o sucesso maior só aparece depois, na adolescência e vida adulta. Se o investimento diário continuar, as fases posteriores inevitavelmente serão de glórias. E isso precisa ser entendido: o investimento é diário. Diariamente é preciso agir.

Zizinha, então, não teria feito investimentos? Não passou toda a sua vida investindo seu tempo? Por incrível que pareça a resposta é "sim". Porém, não investiu em disciplina, nos valores necessários ao sucesso. Não fez, portanto, os investimentos requeridos para alcançar os objetivos desejados. O valor investido (desobediência) levou ao resultado que ele obrigatoriamente vai trazer, que é o fracasso em forma de situações indesejadas. Se eu planto melancia, não posso, jamais, querer colher amendoim.

Mas o que não devemos desconsiderar é que a nossa personagem estava consciente de que deveria trilhar determinado trajeto. E esse trajeto era o de uma vida adulta boa, em que tivesse as benesses do dinheiro e tudo o que eles pode comprar, como bens luxuosos, casas confortáveis, viagens prazerosas e assim por diante. Era isso o que ela e toda a torcida do flamengo deseja. Só que não quis fazer os investimentos, principalmente em forma de tempo e esforço, para tal. Queria os bens, mas não queria ceder os vinténs. E por isso procrastinava. O seu cérebro estava convencido racionalmente da relação custo x benefício, mas a sua alma recusava a aceitar.

Por isso se tornou especialista em procrastinar. Viveu a vida toda se recusando a obedecer o que o cérebro lhe recomendava, mas a sua alma indomada se fechava a todas as recomendações. É que sua alma não aprendeu que é fazendo agora que o amanhã nos traz o que queremos. O cérebro estava pronto para o trabalho, mas sua alma ainda acreditava que a natureza poderia corromper todas as suas leis para atender aos seus caprichos, naquilo que os insensatos chamam de milagres (o que não quer dizer que milagres não existam).

Conheci um indivíduo que levou 18 anos tentando passar no doutorado em economia de uma renomada universidade brasileira. Conseguiu. Uma amiga maravilhosa tentou 25 anos entrar no curso de medicina de uma universidade não tanto famosa. Conseguiu. Outro tentou ser médico, sem sucesso, por 14 anos. Depois trabalhou com outra profissão por 30 anos até se aposentar. Novamente tentou o seu sonho por mais oito anos até conseguir. Esses exemplos mostram que o sucesso pode demorar, mas ele vem, se o esforço e os investimentos continuarem. 

Essas coisas da realidade, da vivência, os procrastinadores desconhecem porque lhes foi barrada a possibilidade de aprendizado na primeira infância. Não é por acaso que praticamente todas as terapias de recuperação deles tem início naquela fase da vida. E o que essas terapias ensinam, afinal? Três coisas.

A primeira é que grandes obras, resultados e sucessos são frutos de pequenos e constantes investimentos diários. São pequenos para que se possa acompanhar tanto a execução quanto o aprendizado que o pequeno resultado que se conquista. Aqui vem a constatação de que o grande sucesso é a somatória desses inúmeros pequenos sucessos ao longo da vida. Constante porque os investimentos não podem parar. Não basta eu saber calcular teorema de Pitágoras. É preciso que eu aprenda inúmeras formas de usá-lo para resolver os meus problemas práticos do dia a dia. E a cada vez que eu obtenho sucesso eu reforço as fundações da minha confiança, em mim e nos outros; a cada vez que eu fracasso sou obrigado a ver onde eu errei para que eu não erre mais. O procrastinador teme o fracasso, por isso não investe. Essa insegurança é consequência de sua desobediência infantil.

A segunda é que não há sucesso mágico que seja permanente. Alguém pode ganhar na loteria e ficar milionário de uma hora para a outra. Tudo bem. Mas ninguém consegue ser um líder admirado por todos da noite para o dia. É preciso anos e anos de investimentos em aprendizados e prática desses aprendizados até que muita gente ateste tanto a honestidade quanto a acurácia de suas decisões e orientações. Nenhum indivíduo pobre financeiramente consegue ser bilionário e assim permanecer sem muita força de vontade e determinação. É preciso fazer agora o que se pode deixar para amanhã. O procrastinador só vê o hoje. Afinal, amanhã ninguém garante que ele estará vivo, argumenta.

A terceira é que tudo tem um custo. Quanto maior for o custo, quanto maiores os valores dos investimentos, maiores tendem a ser os resultados, o sucesso almejado. O procrastinador não investe nos valores adequados que lhe tragam os resultados pretendidos. Como demente, quer ganhar na loteria sem jogar, quer ser um Neymar sem aprender a chutar uma bola, sonha em ser famoso sem ter nenhuma habilidade admirável, quer sucesso sem investimento.

E o que fazer para evitar a procrastinação. Duas estratégias. A Estratégia Alfa diz que aquilo que for difícil de ser feito tem que ser dividido em etapas. É preciso dividir tanto que cada etapa possa ser executada sem grandes dificuldades. A ]Estratégia Beta recomenda aprender todo dia. Aprender não é apenas ouvir falar, mas saber fazer. Aquele que aprende a fazer coisas interessantes todos os dias, de fato, está treinando não procrastinar e, mais do que isso, tendo exemplos concretos de que é o saber que permite fazer coisas interessantes. É justamente esse saber que é negado na primeira infância.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Estranho Amor

O que têm em comum as acusações de "Bolsonaro genocida" e "Luladrão", os desejos de ver alguém apodrecer na cadeia ou imaginar que o outro só ficou rico porque roubou ou faz tráfico de drogas? O que toda crítica, tanto as chamadas construtivas quanto as criminosamente destrutivas, todo ato invejoso, todas as atitudes de ciúmes e todas as fofocas comungam? Pode parecer estranho, mas são todas manifestações de amor. Sim, você não leu errado. Tudo isso são formas de amar. São maneiras estranhas, isso é incontestável, mas são atos de amor. Vejamos o porquê.

A primeira coisa que temos que fazer é saber o que é o amor. Para isso é necessário conhecer a sua fonte, que é o verbo amar. Muita gente acredita piamente que amar é um sentimento, algo que vem do coração. Pode até ser. Mas não é só isso. Quer dizer, amar é muito, mas muito mais do que isso. Talvez o sentimento seja apenas um reflexo tímido do que essa pequena palavra quer dizer e representar. A significação latina realmente diz que amar é um sentimento, mas línguas mais antigas vão além, como é o caso do hebraico e de outras línguas semitas.

Talvez a palavra portuguesa que mais represente com fidelidade o sentido do verbo amar é cuidar. É exatamente essa a significação, por exemplo, do pedido do Cristo para que amássemos ao nosso próximo, a nós e a Deus. Quando cuido de mim, aprendendo e agindo no bem, estou me amando. Quando cuido das pessoas que estão ao meu redor e outros mais além, também estou amando. Quando cuido de cada coisa que Deus fez, também estou amando o Criador. Então amar é fazer alguma coisa, agir, cuidar.

Quando estamos cuidando, estamos demonstrando amor. E quando esse cuidar é muito profundo, um sentimento de bem-estar nos invade e toma conta do nosso coração. É daí que vem a impressão de que o amor é um sentimento, quando, na verdade, é seu reflexo.

E o que seria a ausência do amor? Simples. Se amar é agir, cuidar, fazer alguma coisa, o não amor seria o não agir, o não cuidar, o não fazer alguma coisa, óbvio. Por essa razão, o contrário do amor é a indiferença. E ser indiferente quer dizer não se importar com o outro, não se importar consigo mesmo e nem com Deus. Ser indiferente é não fazer nada, absolutamente nada para nada e para ninguém. Essa é a segunda constatação que se tem que fazer. A primeira é que amar é agir.

Daí advém a conclusão de que o ódio, ciúme, inveja e toda forma de expressão maldosa contra nós mesmos, contra os outros e contra Deus não é desamor, não é indiferença. Quando estamos odiando, acusando, ofendendo, maltratando, enfim, fazendo maldade, não estamos sendo indiferentes. Estamos agindo. Estamos amando. Sim, isso é amor (lembre-se de que o contrário do amor é a indiferença). Só que é um amor enlouquecido, que perdeu a razão. É torpe, desditoso, sórdido. Mas é amor.

A ciência tradicional (como a psicologia e as neurociências) e as ciências espirituais mostram que a inveja é o desejo de ter o que o outro tem. E por essa razão é que odiamos quem tem o que eu não tenho e quero ter. O mesmo acontece com o ciumento, que tem medo de perder aquilo que ele imagina que é dele, como o milhão na sua conta bancária ou os prazeres de seu cônjuge. Em ambos os casos não há indiferença. Há ação. Ação desditosa, maldosa, sem dúvida, mas é ação.

O que acontece é que, na verdade, as pessoas odeiam não é quem tem aquilo que ela não tem, como no caso do ciumento, mas o que ela tem. Eu não odeio o João, que tem um milhão de reais em sua conta bancária. Eu odeio não ter um milhão na minha conta. José não sofre por causa de Maria. Seu sofrimento é motivado pela possibilidade (quase sempre fantasiosa) de perder a esposa. Ele tem medo da possibilidade, não de Maria.

É o que acontece com os que acusam Bolsonaro e Lula. Eles não odeiam Bolsonaro ou Lula. Eles odeiam não fazer e não ter o que esses dois irmãos têm. Se eles tivessem, não odiariam. A acusação de um e de outro é apenas subterfúgio do cérebro em busca de um culpado para aquilo que eu gostaria de ter, ser, fazer, enfim, praticar. É isso, na verdade, o que eles amam ou gostariam de amar.

Todo ódio, toda maldade, realizada ou manifesta em formas de acusações é sempre uma manifestação de desejo, como diz a psicanálise. É um amor que enlouqueceu porque quem odeia coloca essa possibilidade de amar (de ser presidente, de falar incivilidades como um é acusado, de roubar, conforme as acusações contra o outro) na ordem do impossível. Se fosse possível, procuraria um caminho para materializar a possibilidade. Como se vê incapaz, acusa, grita, ladra.

Alguém poderia perguntar, com toda razão, se é lícito deixar o maldoso impune, já que toda acusação é uma forma estranha, esquisita de amar. A resposta também é simples: esse é uma competência exclusiva da justiça, ainda que ela seja uma iniciativa sua. Outra coisa que pode ser feito é agir sempre, em todas as situações, de uma forma impecável, irrepreensível, dentro da lei e de forma amorosamente louvável. Mas, feito o seu papel ditosamente amoroso, continuar a esbravejar é manifestar seu amor sordidamente enlouquecido.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Acreditas na Ciência?

Parece haver uma grande contradição em um fato que tem se tornado corriqueiro: pessoas desesperadas querendo se apegar à verdade da ciência. Isso faz emergir da mente dos cientistas pelo menos duas indagações. A primeira é relativa à possibilidade de se acreditar em alguém ou algo que não se conhece. A segunda é ainda mais desoladora: como buscar a verdade em algo que não a pode garantir? Aqui vamos esclarecer essas duas indagações para que se possa decidir ou não acerca da possibilidade (ou não) de se acreditar na ciência.

Vejamos a possibilidade de se acreditar naquilo que não se conhece. Conhecer é explicar. Um conhecimento é uma explicação qualquer sobre alguém ou sobre alguma coisa. Quando digo que João é uma pessoa maravilhosa porque está sempre disposto a ajudar as pessoas, estou dando uma explicação da maravilha de João, que reside em sua disposição à generosidade. E quanto mais explicações eu consigo sobre as maravilhas de João e outros aspectos de sua vida, mais conhecimentos eu tenho sobre ele.

Mas não bastam apenas as quantidades de explicações. É preciso que elas tenham qualidade. João está sempre disposto a ajudar a carregar as compras, lavar o carro, limpar a calçada, lavar a casa e lavar as louças. Mas quando ele carrega as compras, quebra os produtos mais frágeis; quando lava o carro, molha os bancos de uma tal forma que eles ficam com cheiro insuportável; quando limpa a calçada, gasta material de higiene demais; e quando lava as louças, quebra a maior parte. Veja: a qualidade da ajuda de João é baixa.

Diante disso, volto novamente à questão: é possível confiar em algo que desconhecemos? É possível confiar na ciência, se não sei como ela funciona, não sei o que ela produz, não sei quem a produz, não sei como ter acesso a ela? Em termos comparativos: é possível confiar em um avião feito de papel, se não sei como ele funciona e nem quem vai pilotá-lo?

A ciência está em todo lugar. Está na política, na gestão pública, nas estrelas, no corpo humano, nas águas, nas árvores, enfim, em praticamente tudo. Quando eu digo que acredito na ciência, estou dizendo que sei como a ciência funciona em todos esses setores das vidas. Por exemplo, a ciência da Administração mostra que eleição não é a forma mais adequada de escolher gestores de organizações. Se as pessoas realmente acreditassem na ciência, não aceitariam as eleições para essa finalidade. 

Disso advém que as pessoas não acreditam ou acreditam na ciência. As pessoas simplesmente a aceitam ou a rejeitam, duas coisas muito diferentes. Acreditar ou não exige conhecimento. E não qualquer conhecimento, naturalmente, mas com a quantidade e a qualidade necessária para estabelecerem um juízo de fato, não de valor. Aceitar é menos oneroso porque é um ato que reflete um querer, vontade. Se eu quero comer laranja, eu aceito comê-la.

A segunda questão é desoladora. A ciência não consegue dar conta da verdade. Melhor ainda: a ciência não tem a mínima preocupação em dizer a verdade porque ela não consegue alcançar a verdade. A razão disso é muito simples: a verdade é uma condição de impossibilidade de erro. A verdade é sempre a perfeição. A explicação perfeita, o conhecimento infalível. E isso a ciência não consegue e não pode dar.

Tanto é assim que, para que um conhecimento possa ser considerado científico, tem que apresentar erro. É isso mesmo. O erro é uma das exigências de todo conhecimento científico porque permite que os outros cientistas (e não as pessoas que não são cientistas) afiram, confirmem ou não, a sua validade. O erro é sempre a diferença entre a realidade e o que supomos que ela seja. Dito de forma um pouco exagerada, é a diferença entre a verdade e o que a ciência diz. Um conhecimento é válido quando essa diferença é pequena e, portanto, aceitável pelos outros cientistas. Aliás, são os cientistas que determinam se um conhecimento é ou não válido.

Por causa justamente da bendita diferença entre a realidade e o que a ciência fala, que chamamos de margem de erro, há inúmeras explicações para o comportamento da mesma coisa. É o caso das vacinas. Tanto é plausível (palavra que quer dizer possibilidade real) que uma vacina tenha 50% de eficácia (palavra que quer dizer alcançar um objetivo, que no caso das vacinas é a imunização) e outra 90%. Tanto é possível que um procedimento pedagógico consiga fazer quase todos os alunos de uma turma serem gênios quanto noutra turma provocar um efeito expressivamente menor). Dito de forma mais clara: a ciência tem inúmeras explicações para a mesma coisa. E essas explicações podem até ser aparentemente contraditórias.

Se as pessoas acreditam na ciência devido a alguma ideia de verdade, estão redondamente enganadas. Se é a verdade que as pessoas procuram o distanciamento da ciência é o ato mais recomendado. Como lida com conhecimentos centrados na ideia de erro, tudo o que a ciência fala é extremamente limitado (outra exigência das explicações científicas) e variado. Assim, se acreditam na ciência, devem abandonar a noção de verdade e abraçar a concepção de probabilidade. E, por extensão, parar com a infantilidade de achar que o que o cientista A fala é a única explicação da ciência, em detrimento do conhecimento produzido pelos cientistas B, C, D e E, que afirma o contrário do que fala o cientista A. No fundo, a contradição é apenas aparente. Fruto justamente daquilo que a ciência tem de mais humano: a imperfeição traduzida na ideia de erro. Mas, apesar dos pesares, ainda é o conhecimento mais confiável que existe.

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Guarda tua Crítica

A crítica é tanto um termo quanto uma atitude que tem enganado a muitos, especialmente nas últimas duas décadas. Em algumas áreas do conhecimento ser crítico ou ter pensamento crítico parece ser o píncaro da glória ou fim a que todo ser pensante deveria alcançar. Consequentemente, quem não é crítico no mínimo não tem uma formação intelectual ou desenvolvimento cognitivo substancioso. Mas será que é isso mesmo? Não estão todos os que se agarram nas garras da crítica presos em uma grande ilusão? 

A palavra crítica vem do latim "critĭcus" que, dentre outras significações, quer dizer apreciação e julgamento. Apreciar é dar o devido valor, reconhecer o valor de alguma coisa, aquilo que ele tem de bom, de substantivo. Enquanto julgamento, o termo está se referindo não ao processo de condenar, de apontar as coisas ruins, mas justamente à capacidade de ver as coisas boas. É que sem a capacidade de julgar, as coisas boas não poderiam ser percebidas e, portanto, apreciadas.

E de onde vem, então, essa preocupação que os que se dizem praticar o pensamento crítico em ver apenas as partes ruins das coisas, das pessoas e do mundo? Da ignorância, simplesmente. Esse desconhecimento, naturalmente, é imperceptível por eles. Eles não desconfiam que têm limitações em conhecimento justamente porque se julgam além da capacidade daqueles que não denunciam como crime grave as falhas dos outros. E o que eles desconhecem? Simples também: que os fatos e fenômenos do mundo nunca têm apenas um lado, apenas uma perspectiva, ângulo ou ponto de vista.

Um amigo, apaixonado pela Revolta da Cabanagem, reuniu centenas de documentos sobre esse episódio histórico. Todas as vezes que ele me relatava uma nova descoberta, ele parecia estar em epifania, na maior das felicidades. O que ele relatava? As maiores atrocidades que eram cometidas durante o conflito. E eu perguntava: "não havia nenhuma pessoinha pelo menos um pouquinho bondosa nesse conflito? Ninguém, ninguém, ninguém?". E ele ficava sem ação. Logo depois ele explicava: a história é feita de tragédia. Ele se dizia um historiador crítico cujos textos só apontavam tragédias em forma de denúncia, consideradas por ele estudos científicos. Evidentemente que o método científico era completamente ignorado.

Tome outro caso, agora de alguém que explicava as subidas e descidas das águas dos rios amazônicos. Em duas ou três páginas havia relatos desse fenômeno natural, extremamente superficiais, e 15 outras denunciando praticamente todo o universo por supostos crimes cometidos contra uma comunidade indígena. Em todo o texto não havia sequer uma única virtude em ninguém que não fossem, naturalmente, os índios que, aliás, eram o oposto de todos os criminosos ali denunciados, ou seja, os índios não apresentavam nenhum vício ou imperfeição.

O entendimento de "Crítica" só é plenamente alcançado quando levada em consideração a palavra "Crise", uma vez que ambas vêm do mesmo verbo grego "krinein". Crise designa um lapso temporal entre dois instantes bem definidos, A e B. Em A, que é anterior a B, a realidade é percebida de um jeito, as pessoas praticam determinados esquemas lógicos para guiarem suas vidas. Em B, a realidade é muito diferente de A porque a realidade mudou como decorrência das mudanças nos esquemas lógicos e valores que sustentaram a realidade A. Tomemos o exemplo do mundo antes e depois da internet e das maravilhas tecnológicas que temos hoje. Praticamente tudo mudou, incluindo os valores familiares e a forma de pensar.

E o que é crise? Crise foi (e muito provavelmente ainda esteja acontecendo) aquele período em que os valores do momento A conviveram simultaneamente com os valores do momento B. Nessa convivência simultânea as pessoas não sabiam (e até hoje muitas não sabem) se baseavam seus pensamentos e ações nos valores do momento A (que ainda não tinha desaparecido) ou nos valores do momento B (que ainda não estava plenamente consolidado). Isso dá um nó na cabeça das pessoas, o que inclui os mais sábios. Crise é exatamente isso: a convivência simultânea de inúmeros valores, dos passados e dos futuros, que não se sabe ao certo aos quais seguir.

É justamente daí que vem a necessidade de se compreender a ideia e a prática de crítica. O indivíduo crítico é aquele que é capaz de avaliar as situações e julgar quais são as boas, aquelas que produzem ações benéficas, para que possa conduzir suas ações a partir delas. Diferentemente de um juiz (que em grego é dito "Krités") que julga as pessoas, o crítico (que em grego é dito "Kritikós") é o que é capaz de julgar não as pessoas, mas as coisas. O crítico não condena. Não condena por quê? Porque sua preocupação é com o bem, não com o mal. Ele sabe que a concentração no mal não leva ao bem. Apenas o bem gera o bem.

Daí vem a questão: existe crítica construtiva ou toda crítica é destrutiva? Sob o ponto de vista de quem se diz crítico ou diz praticar um pensamento crítico ou o que quer que o valha, não há possibilidade de haver crítica construtiva porque a própria forma como agem ou expõem seus pensamentos é destruidora. Não dialogam, acusam. Não pensam, condenam. Não há alguma nuance positiva no outro, apenas negação. Seus saberes e falas são perfeitas, puras expressões da verdade, contra a imperfeição e vícios criminosos dos outros.

O ideal grego de construir na terra a harmonia e a beleza que se via no céu noturno e na natureza foi completamente destruída pela subversão que se fez com a crítica. Não mais Areté, não mais paideia, não mais os mais sublimes ideais efetivamente buscados na prática da construção do bem. Em seu lugar se destaca o perverso, as coisas ruins, as falhas como origem de condenação. O kritikós se fez krités. A crítica se fez condenação sem julgamento.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Isanidade Geral

O ditado diz que de médico e louco todos temos um pouco. Mas, ao que tudo indica, a contemporaneidade parece ter exagerado nisso. Não da parte dos médicos, mas da dos loucos. Em nenhum momento histórico a loucura se fez tão plena e onipresente como agora. Isso não quer dizer, contudo, que ela não existira em profusão anteriormente. O que é inédito é que aquilo que era reservado, privado, delimitado se tornou aberto, público ilimitado. É como se nossa mente fosse atacada pela loucura geral, antes aprisionada nos seus recantos particulares, nos convidando ao bailado insano que tem no ódio a sua forma mais explícita (e imperceptível).

O que é a loucura, se não a ideia inquestionável de que estamos certos e todo o universo está errado? O indivíduo são, por exemplo, quando comete algum desatino fica a se perguntar se está louco. Esse tipo de reflexão é impensável ao insano. Se se questionar, certamente louco não está, diz tanto a psicologia quanto a psicanálise e a psiquiatria. A razão disso é que a autorreflexão (com o perdão do pleonasmo vicioso) é impossível no insano porque a insanidade é justamente esse revestimento da verdade. O louco veste a roupa da verdade. E isso quando ele não se considera a própria roupa e passa se comportar como a encarnação dela.

E a primeira consequência visível no insano é que só ele está certo. Todo o universo está errado. Se o louco vê um casal de namorados comprar uma caixa de cervejas, logo vê algum defeito inaceitável. Se compram camisas de cor laranja, o insano se enfeza porque é incorreto não comprar blusas de cor verde-limão-marciano. Quem compra camisas (e não blusas) cor de laranja certamente é algum alienado reacionário que precisa a ser revolucionário, ainda que seja à base de chicote ou baioneta. É por isso que o insano se vê no dever de mudar o mundo, consertá-lo, colocá-lo no caminho certo, por mais que não tenha ideia do que isso seja.

Mas ele não faz isso por outra razão que não seja o amor. Ah, como o insano é amoroso. Ele ama tanto que sofre demais, chora, perde o sono, se sacrifica. Tudo isso pelo bem do mundo. Sua mentalidade messiânica lhe faz um guerreiro solitário contra o universo conspirador cuja comprovação fascista é o fato de que cada indivíduo teima em ter sua própria individualidade (perdão novamente pelo pleonasmo). Se só ele é amor, porque é a verdade, todos os demais são ódio. E por isso precisam ser combatidos até a morte. A morte, afinal, é o que todos os que não pensam como ele pensa merecem. É preciso exterminar quem ousa pensar diferente para instaurar uma sociedade verdadeiramente democrata, onde todos pensam exatamente a mesma coisa da mesma forma.

Na sociedade mental em que vive, o insano vive efetivamente a democracia que deseja instaurar na realidade. Não suporta o autoritarismo individual, em que cada mente vê e interpreta o mundo a partir do estoque de conhecimentos e experiências que auferiu. Como as pessoas ousam não perceber que a democracia é a melhor coisa que existe, que a política é o caminho que leva àquela perfeição de mundo em que o insano vive e que a crítica sobre os adversários (que são todos os que pensam diferentes) é a principal arma de combate? Respeito à individualidade, tanto de pensamento quanto de ação, admissão de inúmeras formas de exercício da liberdade e necessidade de se pensar sobre qualquer coisa são crimes inaceitáveis à mentalidade verdadeiramente democrata do insano.

Quem pensa como ele ou diferente dele reaparece nos inúmeros adjetivos que o insano cria. Aliás, chega a inventar inúmeros outros significados para palavras já sedimentadas semanticamente. Isso o torna um fabricante inveterado, incontido, de ressignificações, ainda que não tenha ideia do que isso seja. Mas isso não importa porque somente ele sabe tudo e somente ele sabe a solução para tudo. Se o rio está poluído, há sempre um agente-inimigo certeiro da poluição. Se as cidades estão cheias de miseráveis, imediatamente consegue identificar quem são os criminosos. Se as nuvens do céu estão de cor alaranjadas e ele entende que aquilo é algo ruim, automaticamente consegue fazer um retrato falado dos autores reacionários.

Não é difícil imaginar que o insano não pode ser contestado. A contestação é a prova-crime incontestável de que é o outro que é louco. E loucura é algo inadmissível em uma mentalidade sadia, o que explica a necessidade de se alastrar para toda a humanidade a loucura que contagia, as ações que contaminam e os pensamentos que dilaceram. Por mínima que seja a diferença de ver as coisas, o máximo de precaução é necessária para que o mal não se alastre. A sanidade do insano produz a sociedade do medo, que se transforma em pavor, e que é creditado ao outro. O inferno é o outro, história contada e recontada que se transforma em verdade.

Mas talvez o que mais nos dá a garantia de estarmos diante de um insano é a necessidade que ele tem de debater, discutir, refletir, questionar, criticar, enfim, de falar. Sua necessidade de falar é tão grande que se tem a impressão de que se ele não for dono da palavra irá enlouquecer ao quadrado. E como fala o insano. Como fala demais, como é dominado pelas palavras, é incapaz de agir. O insano é aquele que não sabe fazer o que o seu discurso diz. A impressão que se tem é que os significantes vagabundos de que Lacan tanto falava entopem a garganta do insano e o impedem de agir.

Os alemães cunharam um termo que representa algo próximo à loucura e que é inadequadamente traduzida por alienação (Entfremdung). Não é que a palavra em português em si esteja errada, mas o seu significado está. O mais acertado, para efeito de equivalência semântica, pragmática e cultural, seria estranhamento. O insano está fora de si, como se seu corpo estivesse ali fazendo as coisas mas por vontade de outra entidade. Ele estranha o que o seu corpo e sua mente estão fazendo, mas não pode fazer nada. É esquisito, mas é mais ou menos isso. É como se o indivíduo estivesse assistindo às atrocidades (ou benesses) que seu corpo e mente estão fazendo, mas não pudesse fazer nada.

Nessa experiência esquisita que a palavra alienação toma há dois corpos e duas mentes separadas em planos diferentes. É exatamente isso o que quer dizer estranhamento. Não é alguém diferente que tomou de assalto o corpo e a mente do indivíduo insano, alienado. É o próprio corpo e a própria mente que ganharam autonomia para fazer aquilo que os "verdadeiros" corpo e mente não têm controle. É por isso que não se pode imputar responsabilidade civil ou legal ao insano. Seu eu sadio não consegue controlar seu eu doente.

Do ponto de vista da psicanálise, o insano é alguém controlado pelo seu inconsciente (id). Seu ego, que é o barramento que impede a invasão do id, foi completamente rompido. Não há processo civilizatório possível. É por isso que o discurso do louco é um discurso do todo. É sintético, sem capacidade efetiva de análise, de ver as partes e as inúmeras e impensáveis formas de as partes criarem e recriarem continuamente o todo. Por estar fora do mundo é que o insano consegue ver o mundo todo. Só não consegue ver a si mesmo. Por não conseguir ver a si mesmo, confunde-se com o mundo, e com a verdade e com a perfeição. O louco é perfeito no exato instante do seu discurso. Em seguida cai. E se torna o vazio.

Mas o que produz essa insanidade? A incapacidade de ser ver errado. O insano inventa mil narrativas (palavra que ele cria para ressignificar mentira) para contornar seu erro que todos veem, sem saber que para cada mentira inventada terá que inventar outras quando ela for descoberta. Engana-se quem acha que há insanos apenas de esquerda e de direita. Há-os também na ciência, na filosofia, na pederastia, na sodomia, na sonoplastia, nas harmonias, nas sacristias, nas astrologias, enfim, em tudo. A insanidade é universal e omnilateral. Está em tudo e em diferentes tonalidades. Está em todos nós.

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...