segunda-feira, 22 de julho de 2019

Ordinários

Quase ninguém se dá conta de um fato corriqueiro nas nossas vidas: somos extremamente mal agradecidos com os que nos amam. Não que o façamos por crueldade, de forma planejada, deliberada. Não é isso. É nossa mentalidade que se acostuma com o bem que nos é feito de uma forma tal que, com o tempo, o bem nos parece tão corriqueiro e banal que cai no estágio que chamo de ordinário. Ordinário é isso: a normalidade, o corriqueiro, o comum. Mas essa atitude pode esconder profunda ingratidão.

Carmem foi uma garota muito formosa, muito cobiçada pelos moçoilos de seu bairro. Leitora das revistas de adolescentes, vivia a fantasiar o príncipe encantado que a desposaria e a faria feliz para sempre. Diferente dos adolescentes que conhecia, queria alguém que lhe fizesse vencedora, poderosa, uma verdadeira dama. Não importava sua aparência, se fosse preto ou azul, alto ou magro, deste ou de outro planeta. Queria apenas alguém que se importasse com ela.

Passou o tempo. E apareceu por aquelas redondezas um sujeito simpático, bastante culto, e que se encantou com a senhorita sonhadora. À primeira vista, não era o que desejava, mas o tempo foi mostrando que Aurélio se aproximava bastante da dedicação que a jovem sempre desejou. Apreciava a preocupação do jovem com seus estudos, com o cavalheirismo, com a dedicação que lhe tinha. E em pouco tempo se tornaram marido e esposa.

Passou o tempo. A esposa não percebeu que não respondia mais aos bom dia e boa noite do esposo, não notava o esforço do jovem em lhe preparar um almoço diferente e tampouco se a casa estava arrumada, coisa que a ex-adolescente já não fazia mais. Até o choro do filhinho era culpa do esposo, achava ela. Aurélio passou de cavalheiro a indivíduo sórdido, apesar de seus esforços em fazer o bem à sonhadora esposa.

Outro exemplo interessante foi o da instituição que contratou um professor diferente, como todos diziam. Gostava de ensinar. Gostava tanto que, ao invés de falar mal dos alunos nas rodas de conversa com os professores, relatava as experiências bem sucedidas que fazia. Gostava de pesquisar. Gostava tanto que todo ano publicava vários artigos e livros de sua área e de áreas correlatas. Gostava de ajudar. Gostava tanto que suas pesquisas quase sempre se transformavam em soluções para problemas de sua instituição e de organizações parceiras.

Logo no início, quase ninguém acreditava que alguém pudesse publicar alguma coisa por ali. As primeiras publicações encheram os colegas de incredulidade e satisfação. À medida que se avolumaram e se tornaram constantes, as publicações se transformaram em fontes de inveja e ciúmes. A cada nova publicação, praticamente nenhum entusiasmo. Pelo contrário, ironias e piadas de mau gosto denunciavam a mudança abissal do ambiente. Sábio, o professor contratado pediu para sair.

E não eram apenas as publicações o problema. Os alunos ficaram encantados com as formas diferentes de eles mesmos aprenderem que o novo professor lhes ensinou. E o interessante, diziam-se, é que todos estudavam sozinhos todo o conteúdo da disciplina e mais o que não estava previsto ali. O professor funcionava como um grande maestro, tirando de cada um mais do que podia dar, motivando e liderando aquela massa de jovens em direção ao pleno aprendizado. Ninguém queria fazer a disciplina com outro professor que não fosse aquele forasteiro. E mais conflitos e intrigas aconteceram. Era hora de sair. Intermediou a volta à normalidade. E saiu.

O que se vê nesses exemplos é a perda do encanto inicial. A jovem sempre sonhou com alguém que fosse cavalheiro, mas não conseguiu conviver com alguém assim. A instituição há muito desejou um exemplo de professor, mas não estava preparada para conviver com um deles. Temos sempre a horrível atitude de imaginar que esses anjos são nossos escravos quando eles resolvem fazer parte das nossas vidas. Perdemos a grande oportunidade de aprender com eles. Aprender a ser como eles.

Nossos olhos ainda não estão preparados para ver pessoas elevadas. Quem já se elevou moralmente não fica como acólito bajulando os outros. Não vieram para as nossas vidas para outra coisa que não seja nos ensinar a amar. E amar não é falar "eu te amo" todos os dias. Amar é cuidar. E é isso o que essas pessoas extraordinárias fazem. Cuidam da gente ao nos ensinar como deveríamos ser ou fazer as coisas.

A jovem não conseguia ver a poesia que estava por trás de um almoço feito com delicadeza e tampouco os versos que faziam parte de tudo o que o jovem lhe fazia. Da mesma forma, a instituição não conseguiu perceber a sinfonia que o professor forasteiro estava apresentando, a não ser os seus alunos e instituições que publicavam seus textos. De tão cegos, não conseguimos ainda ver o óbvio: o quão rasteiros somos para elevar nossos olhos para o alto e nos encantar com o luzir das estrelas que por alguns momentos iluminam nossos caminhos, tornando-os, de extraordinários, em ordinários.

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Duas Lições Primorosas

Tem sido muito comum, infelizmente, ler notícias de pessoas que, no passado distante ou recente, foram muito famosas e até mesmo poderosas nas mais profundas necessidades. É o jogador de futebol que, antes milionário, agora mora de favor nos fundos da casa de alguém; o artista de televisão que fora deixado de lado e esquecido pelos seus melhores amigos de outrora; o apresentador que dominava as tardes de domingo que agora quase ninguém mais conhece ou ouviu falar.

Evidentemente que qualquer um faz da sua vida o que bem entender. E é necessário que seja assim. É preciso que cada um cuide de si mesmo para que aprenda as suas limitações, da mesma forma que precisa conhecer os seus pontos fortes, suas fortalezas. Todos nós somos assim. Temos muitos pontos fracos, mas também temos algumas coisas boas, fortes. Nosso desafio é melhorar ainda mais os pontos fortes e tentar transformar em fortes aquilos que ainda nos são fracos.

É este o sentido da vida que, ao que tudo indica, não foi aprendido por esses irmãos que agora se veem fracassados. Ou não tiveram quem lhes ensinassem ou foram ensinados e as deixaram de lado. Por que alguém se torna famoso e poderoso? A resposta é simples: porque tem alguma coisa que as pessoas valorizam. Essa coisa só é valorizada porque as pessoas consideram um bem para elas. A habilidade fantástica do jogador de futebol é muito valorizada porque traz prazer para as pessoas que apreciam o jogo. E é muito mais valorizada quando o jogador habilidoso faz parte do time para o qual as pessoas torcem. Isso significa que famosos e poderosos têm, sim, alguma coisa considerada boa.

O problema, ao que tudo indica, é que enquanto estão no auge da fama esquecem ou não aprenderam outra grande lição: tudo passa. Da mesma forma que a infância miserável de muitos deles passou, também o auge da fama um dia vai passar. Apesar de muitos não acreditarem na possibilidade de um dia deixar de serem ricos e de verem vários casos de colegas que de rico ficaram pobres, acham que esse futuro jamais será a sua cruel realidade.

O que essas pessoas não percebem é que a triste realidade dos outros é uma forma de advertência, um chamamento de atenção para que não façam o que os outros fizeram. Está sendo mostrada ali a realidade nua e triste para que não sigam aquele caminho. Mas, quem se preocupa em aprender com as tristezas dos outros? Se esses irmãos compreendessem essas duas lições, mudariam suas atitudes imediatamente. E fariam pelo menos duas coisas urgentemente.

A primeira era cuidar dos irmãos infelizes. É que cuidar dos outros é consequência de quem realmente aprendeu a lição. Não cuidar é prova de que não aprendeu. A razão? Se nosso irmão hoje famoso e poderoso amanhã ficar na pior, gostaria muito de ter a ajuda dos outros para se levantar. Aquele que não cuidou dos outros pessoalmente quando era poderoso e famoso muito provavelmente não terá quem o ajude, caso ele caia na infelicidade de perder tudo o que tinha.

A segunda coisa é que, ao ajudar os outros, aprendemos a como evitar ficar naquela situação. Se cuido de viciados em álcool, aprendo como se viciar, como se tornar um viciado. E ao saber como se viciar fica mais facilitado não trilhar aquele caminho. Se nossos irmãos hoje miseráveis tivessem praticado a ajuda aos outros, muito provavelmente não teriam jogado fora tudo o que a fama e o poder lhes deram.

Tudo passa. Até a situação lamentável em que os ex-poderosos se encontram hoje também passará. Não há dor que seja eterna, da mesma forma que não há felicidade que dure para sempre neste planeta. E essa lição é universal. Também vale para mim. E para você.

Veja que dons e habilidades você tem e que as pessoas admiram. Veja maneiras de melhorá-los ainda mais, ter mais domínio sobre eles, de maneira que as pessoas aumentem ainda mais a admiração por eles. Procure conhecer pessoas que tinham esses dons e habilidades e fracassaram. Aprenda com elas ajudando-as a se levantar. Com o tempo você perceberá que a ajuda que você dispensou a elas lhe fez ainda mais primoroso nos dons e habilidades.

Não fique receoso de ensinar e tampouco dê ouvidos a quem lhe tenta impedir de fazer isso. Quem recebe a ajuda dos outros jamais esquece. Pode até não retribuir, mas não esquece. Mas, dentre inúmeros que a gente ajudar, alguns serão capazes de levar adiante a corrente da ajuda, replicando aquilo que você deu a eles. E, se um dia você cair (o que pode acontecer), quem sabe aquele que você ajudou não será aquele que lhe ajudará a se levantar?

sábado, 6 de julho de 2019

Primitivos e Civilizados

Conta-se que um executivo muito bem sucedido se desencantou com o enorme sucesso alcançado. De uma hora para outra, segundo os olhos da maioria, abandonou tudo e foi conviver com uma tribo indígena do alto Curuá, quase na fronteira com as Guianas. Ali chegando, muito comunicativo, ficou amigo de todos, principalmente dos caciques. Acostumado aos ambientes de alta liderança, se sentiu à vontade com a feliz situação de não se intrometer na vida da tribo.

Os primeiros dias lhe foram renovadores. Banhou-se nos inúmeros rios da região, aprendeu a caçar (sim, índio mata animais para comer), pescar, fazer ticujá para pegar pássaros. Com o passar dos anos, dominou a técnica da queimada das matas (sim, índio queima a mata também) para fazer as mesmas lavouras de sempre, principalmente o cultivo da mandioca.

O ex-administrador apenas observava. Livre das obrigatoriedades instintuais de anotações para compreender com profundidade cada processo, cada etapa de cada procedimento, cada componente de cada etapa de cada procedimento de cada processo, assistia à vida dos outros como se assiste a um filme. Mas os dias foram passando..

De uma hora para outra a caça pareceu se esgotar, os peixes sumiram, os pássaros já não mais sobrevoavam a comunidade e a terra pareceu se recusar a dar alimentos. Rompe Mato deve estar contrariado, pensava a maioria dos indígenas. Os chefes, aconselhados por um grupo de doze índios, tinham certeza disso.

O conselho era acionado nos períodos de crises semelhantes. Suas soluções consistiam no refazer e reaplicar as soluções que alguns aventureiros lhes recomendavam nas poucas vezes que algum deles aparecia por ali. Para validar as recomendações, consultavam os conselhos das duas tribos vizinhas, que adotavam o mesmo procedimento.

Chamou a atenção do forasteiro a adoção das mesmas medidas para problemas supostamente parecidos. A notoriedade de muitos conselheiros se devia justamente a isso: falar de cor cada detalhe da solução. O detalhamento era de ordem tão fantástica, que chegavam a se revezar por algumas semanas, segundo a segundo, minuto a minuto.

Quando faltavam peixes, alimentavam-se de outras fontes de proteína animal; se a terra se recusava a dar alimentos, a tribo se abstinha de seus frutos. Mas era a primeira vez que tudo faltava. Rompe Mato deveria realmente estar furioso. O que fazer? Não havia soluções para este problema nas memórias dos conselheiros.

Ainda não dominavam os esquemas de causa-efeito e tampouco a ideia de que as coisas têm uma lógica interna. Para cada problema que aparecia, consultavam seus vizinhos ou acolhiam as recomendações de forasteiros, muitos deles zombeteiros.

Diferentemente dos pagés, o conselho não se especializou em conselhos. Geralmente seus membros eram escolhidos dentre os voluntários. Como todo índio primitivo, quase sem contato com outras tribos e humanos, vivia para comer e comia para viver, como anotara o ex-executivo. Para que se preocupar com a gestão da tribo, se havia ali caciques, pagés e conselheiros?

Na prática, todo o futuro estava contido no passado, que se repetia continuamente todos os dias. O movimento circular, imperceptível até para o mais brilhante da tribo, parecia ser o máximo de felicidade e prosperidade que se poderia almejar. E todos os seus esforços eram direcionados justamente para que o passado se eternizasse na vivência do presente. Não sabiam disso. Suas ações é que eram a manifestação desse não saber.

Certa vez um forasteiro tentou lhes falar da "estupidez" desses procedimentos, mas foi violentamente repelido e obrigado a deixar a tribo, sob pena de ser esquartejado e comido (esses índios praticavam a antropofagia nestes casos, como forma de fazer desaparecer esse tipo de ameaça à normalidade tribal.). É que as soluções para os problemas (e todos os demais procedimentos) não deviam ser contestadas. Quando apresentadas, era para serem aplaudidas.

Depois de alguns anos, o citadino resolveu voltar para o seu habitat. O que aprendera lhe foi de uma riqueza imensurável e indizível para o retomar de suas atividades profissionais. Sua fortuna se avolumou magicamente em pouco tempo. De vez em quando ainda volta àquela tribo. Cada vez mais raramente...

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...