sexta-feira, 31 de julho de 2020

Sabes Pedir?

Pode até parecer algo estranho, mas é muito difícil encontram alguém que saiba pedir aquilo que deseja. E isso inclui desde aquele comprador que quer comprar determinado produto até aquele que, por necessidade de caridade, precisa encarecidamente de alguma coisa. Quando essas pessoas fazem os seus pedidos a impressão que se tem é que se está diante de algum tirano. Do lado extremo estão os ingênuos, indivíduos com comportamentos marcadamente infantis, que parecem imaginar que aqueles a quem fazem suas solicitações são seus empregados ou, o que é tão grave quanto, seus servos.

Certa vez um grupo de dez estudantes de Administração (e eu no meio) procurou um deputado estadual para pedir colaboração para que pudessem participar de um encontro nacional de estudantes em Salvador, na Bahia. O deputado nos recebeu, muito solícito, ouviu com atenção as palavras de cada um de nós. Depois que falamos, ele perguntou: "quanto custa as passagens e as estadias de todos vocês?".

Aquela pergunta me atingiu mortalmente. Quanto custa cada passagem? Quando custa a diária de um hotel sem estrela? Nós não sabíamos. Na verdade, não fazíamos ideia de que precisávamos ter essas informações. E não só essas, descobri depois. Eu precisava saber o preço das passagens rodoviárias e aéreas, se poderia pagar a prazo ou apenas à vista, com quanto tempo de antecedência deveria ser feita a reserva, no caso de orçamentação de órgãos públicos e mais uma série de outras questões que estavam por trás de um simples pedido de ajuda.

Outro dia recebi um pedido singular. Uma senhora na rua me parou e pediu dinheiro para comprar um remédio para suas dores nas costas. E eu perguntei: quanto custa? Ela olhou para mim, surpresa, baixou a cabeça e disse "não sei". Como estávamos próximos a uma farmácia, perguntei novamente "qual é o nome do remédio?". Aquela senhora parecia ter sido atingida mortalmente, tal qual eu fui há décadas, diante daquele deputado. A senhora não sabia. 

Mas, diferente do deputado, que nos pediu para fazer esse levantamento e depois voltar, me dispus a ir até a farmácia consultar o farmacêutico. E assim fizemos. Comprei o remédio indicado e entreguei a ela, que apenas olhou para mim, meio indiferente, e foi embora, sem agradecer.

Durante meu tempo de quartel, tinha um sargento odiado por todos. Sempre que podia, aquele militar maltratava demais seus subordinados. Certo dia ele chegou muito atrasado para o almoço. Tentou forçar ser servido fora do horário, sem sucesso, pelos soldados que estavam terminando de lavar o refeitório. Diante da ameaça de insubordinação, um dos soldados pediu que ele se sentasse na mesa ao lado da entrada do cassino dos subtenentes e sargentos, que ele iria fazer e servir o almoço, mesmo fora do horário, mesmo correndo o risco de transgressão militar por desobedecer ordem do tenente comandante daquela unidade.

De onde estava, o sargento não viu como seu almoço foi feito. Um dos soldados pegou um bife bem robusto e jogou no chão como se joga pedra na superfície de lagos, para que ela quique várias vezes até afundar. Só que o bife deslizou naquela água suja misturada com sabão e desinfetante do piso da cozinha. Outro soldado pegou o bife com, com o rodo, jogou para cima e o chutou, enquanto o outro o aparava no peito, como se fosse um jogo de futebol.

Outro soldado disse que a carne estava dura e precisava ser amassada. Pisoteou-a no chão com seu coturno várias vezes. Outros passavam os acompanhamentos nos seus órgãos genitais, enquanto outro passava os tomates em sua grande ferida na altura do joelho. Como colocaram muito molho de saladas, o cheio e o sabor ficaram disfarçados. O bife ficou bastante queimado, quase crocante. O aspecto estava agradável e deixou o militar satisfeito.

O que essas pessoas não percebem é que todo pedido é uma solicitação de favor. Não é obrigação. E, como favor, a outra pessoa faz se quiser. O outro atende o pedido se quiser. E ponto final. Isso vale em casa, no trânsito, no trabalho e qualquer lugar do universo. A pessoa solicitada pode simplesmente não querer atender. Ela está no direito dela. Ainda que moralmente possa ser condenável, legalmente nada a obriga a fazer aquilo que a lei não o faz.

Outro dia uma mãe pediu que sua filha lhe trouxesse um copo de água. A filha se recusou. A amiga da mãe reagiu nervosa, condenando a atitude da filha. A mãe, compreensiva e conhecedora da arte de pedir, simplesmente pediu que a amiga deixasse para lá. A filha estava no direito legal de recusar atender o pedido, ainda que, moral e fraternalmente, a atitude tenha sido grosseira.

No trânsito, por exemplo, quando se quer mudar de pista de rolamento há que se sinalizar com o pisca-alerta. Aquela sinalização é um pedido, um "por favor, você me deixa passar na sua frente na sua faixa de rolamento?". Muitos atendem ao pedido reduzindo a velocidade, mas outros não o fazem. A atitude civilizada de quem atende é louvável, mas as atitudes grosseiras dos outros não podem ser condenadas. É preciso compreender isso.

Essa, portanto, é a primeira lição do ato de pedir: quem recebe o pedido, atende se quiser. Se não quiser, quem faz o pedido não tem o mínimo direito de se contrariar e muito menos reagir com agressão ou se deprimir. A segunda é relativa ao tempo: quem quer ser ajudado precisa esperar a disponibilidade do outro para ter seu pedido atendido. 

Nada, portanto, de ficar pressionando, procurando saber quando o pedido vai ser realizado. Evidentemente que o indivíduo que se dispôs a ajudar pode esquecer do compromisso assumido. E isso é natural. Daí quem deseja a ajuda tem que ter habilidade para lembrá-lo. Há quem diga "Não estou querendo lhe incomodar ou pressionar, mas não esqueça do meu pedido, querido amigo". E basta. E essa lembrança tem que ser feita apenas uma vez. Se o indivíduo esquecer novamente é porque não quis atender. Simples assim.

A terceira grande lição da arte de pedir é o modo de ser atendido. Muitas vezes criamos expectativas sobre como queremos que as coisas saiam, como aquilo que queremos tem que ser e assim por diante. Tire isso de sua cabeça definitivamente. Faça o pedido e ponto. A forma como o outro vai atender não interessa, se não não é pedido.

Certa vez uma vizinha pediu ao vizinho que limpasse o telhado de sua casa. O vizinho demorou para atender. Quando o fez, utilizou um produto químico de que a vizinha não gostava. A vizinha ficou uma fera e passou a falar mal do outro para a comunidade dizendo que o vizinho a queria envenenar porque tinha colocado aquele produto no seu telhado. Omitiu o fato de que o vizinho tinha atendido um pedido e desconhecia o "desgosto" da outra em relação ao produto utilizado, que ele mesmo comprou, diga-se de passagem, e que sempre utilizava para deixar o telhado de sua casa tão belo quanto queria a vizinha.

Se essas três regras forem obedecidas, dificilmente teremos consequências desastrosas com os pedidos de ajuda que fazemos aos outros. Saber que não atender é um direito do outro, que o tempo e o modo de atendimento são determinados por quem vai atender o pedido é uma forma superior de civilização que todos deveriam conhecer e praticar.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

A Conquista da Independência

Acho que todo mundo quer ser independente. Não lembro de ter conhecido alguém que tenha me dito, convictamente, que gostaria de permanecer a vida toda dependendo dos outros. É provável que a dependência seja antinatural. Tudo parece convergir para a conquista da autonomia. Mas o que é isso e como se pode fazê-lo?

A palavra autonomia vem do grego αὐτόνομος (pronunciado autonomos), junção de αὐτο (pronúncia auto), que quer dizer "de si mesmo", com νόμος (pronúncia nomos), que quer dizer lei, norma, regra. Por extensão, autonomia quer dizer criação de leis para si mesmo, que é a exata tradução da frase "aquele que cria suas próprias leis". Vejamos isso mais de perto.

Nunca é demais dizer que uma lei é criada para ser obedecida. Se não o for, para que serve? Daí vem a primeira desilusão de muita gente, que imagina que a pessoa independente é aquela que faz o que quer, o que bem entender, o que vem na telha. Aquele que é independente cria suas próprias leis para segui-las. E as segue com tanta dedicação quanto segue todas as outras. Se isso é irracional, vamos explicar a lógica da independência.

A falta de autonomia é chamada de anomia, palavra que vem novamente do grego e significa falta de lei, norma, regra. Aqui o indivíduo é quase que absolutamente dependente dos outros (com o perdão do pleonasmo, uma vez que quem é dependente só pode depender dos outros ou de alguma coisa). É o caso dos bebês recém-nascidos, que precisam de ajuda para quase tudo. Para eles não há regras porque eles simplesmente não conseguem segui-las porque não as conseguem entender. Veja que entendimento e autonomia são mutuamente dependentes, estão sempre presentes juntas. Quanto mais saber, mais independente o indivíduo será.

O estágio seguinte ao da anomia é o de heteronomia. Heteros, também do grego, quer dizer outros. Neste estágio já há lei. Mas todas elas são dos outros. Uma criança de cinco ano não consegue fazer suas próprias leis e segui-las. Ela precisa dos outros para criar as leis que elas precisam aprender a obedecer. Se ela quiser colocar os dedos na tomada, alguém precisa proibi-la, para que ela não se machuque ou venha até mesmo a morrer. Essa proibição é que é a lei. Daí vem a segunda constatação: a lei é feita para proteger as pessoas. Quanto maior nossa capacidade de seguir a lei, mais em segurança estaremos. Consequentemente, mais livres seremos, porque nada poderá barrar a nossa ação.

Os pais e familiares são os grandes ensinadores das leis neste estágio, assim como os professores. É preciso que o indivíduo comece a aprender a obedecer aqui, para que não haja problemas nos estágios seguintes. Nem pensar em pular, deixando que a criança faça o que bem entender, a não ser que se queira um tirano em casa e na vida.

O terceiro estágio é o de socionomia. Socio é um termo que vem do latim socius e quer dizer amigo, companheiro, outro indivíduo. Aqui o indivíduo aprende que a escola tem regras diferentes das de sua família e dos seus amigos. Aliás, dentro da própria família há regras diferentes nas casas dos tios, dos avós e assim por diante. E ele vai aprender a terceira coisa que quase ninguém ensina, mas que é fundamental para viver bem: é preciso respeitar todas as leis para que sejamos queridos.

Ele vê na escola e no clube que Mariazinha é amada por todo mundo, mas ninguém suporta o Juquinha. A razão? Simples: Mariazinha não desrespeita as regras dos grupos de que ela participa, diferente de Juquinha, que está quase sempre esperando uma oportunidade para desrespeitá-las por concordar só com as que lhe convém. Além disso, Mariazinha é solícita para com todos, enquanto o amigo é muito egoísta. Alteridade e obediência são os segredos do bem querer.

É só depois de conquistar os aprendizados dessas etapas que o indivíduo consegue adentrar o estágio da autonomia. Ser autônomo é obedecer a todas as leis, em primeiro lugar. Daí ele verá que ainda assim, obedecendo a todas elas, ainda é necessário criar outras que as leis não preveem. E assim ele faz. Só que suas leis não conflitam com nenhuma outra lei existente. Se conflitar, sabe que tem sua liberdade reduzida pela possibilidade de arcar com as consequências legais e/ou morais da infração.

Mas tem uma consequência prática que evidencia a autonomia como vinculada ao entendimento e que marca a independência. Quanto mais coisas o indivíduo conhecer e souber fazer, menor a sua dependência dos outros. Se sabe lavar roupas, não precisará de quem as lave para ele. Se sabe cozinhar, provavelmente não passará fome por falta dessa habilidade. Se sabe falar chinês, certamente não se verá em apuros em nenhuma cidade chinesa de que conheça a língua.

Dai vem que as primeiras habilidades (assim como o entendimento) tem que vir com o auxílio dos pais. Ir ao banheiro fazer xixi, por exemplo, é uma das primeiras habilidades. Mas não se pode parar apenas no básico. É preciso ensinar a arrumar a cama, guardar os brinquedos, colocar as roupas sujas no lugar e assim por diante, à medida que o indivíduo vai crescendo. O motivo desse procedimento é que a habilidade é que vai julgar, consciente ou inconscientemente, o valor do entendimento. Quanto mais coisas o indivíduo souber fazer, maior e mais complexo poderá ser o entendimento que ele é capaz de obter. Essa é a quarta lição que quase ninguém ensina porque não a conhece.

A grande meta de todo o esforço de autonomia e independência é que o indivíduo consiga sobreviver sozinho o mais breve possível. E quando se fala em brevidade, é brevidade de tempo mesmo. Se conseguir aos 15 anos, maravilhoso; se apenas aos 21, menos pior. O que não pode é o indivíduo se transformar em um figurão empenado que suga as energias de todos durante a vida toda. Esse continua a ser quase que absolutamente incapaz que apenas uma mudança drástica provocará por força das necessidades o início do aprendizado que deveria começar na primeira infância e que provavelmente será feito agora com dor.

Então, quer ser autônomo e independente? Aprenda a fazer tudo na vida. Desde lavar privadas até o mais complexo cálculo matemático. Desde olhar para alguém e saber que ela está triste até dominar diversas técnicas de multiplicar dinheiro legalmente. Estamos na vida para aprender tudo o que for possível. Nada, absolutamente nada, deverá ficar de fora do nosso campo de preocupação de aprendizagem. Não podemos perder tempo. Até quando descansamos devemos aprender. O descanso bem usufruído também é demonstração de liberdade que apenas a autonomia e a independência podem proporcionar com adequação.

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...