sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, para isso, não estabelecessem quaisquer princípios filosóficos. Paradoxalmente, experiências fundamentadas filosoficamente neste sentido foram as que geraram as maiores ditaduras e genocídios da história. Infelizmente, a igualdade parece só ser possível no campo do esforço individual com esse intuito. E nada mais.

Não é preciso muita capacidade cognitiva para que possamos perceber, de imediato, que absolutamente nada é igual na realidade. Um cachorro é diferente de todos os outros. Uma moeda de dez centavos também difere radicalmente de todas as outras. Um átomo é hidrogênio, o mais elementar, é quase que absolutamente distinto de todos os demais. Até uma equação matemática é diferente da outra. Por exemplo, f(x) = 2x + 1 é diferente de f(x) = 2x +1,00000000000000000001.

Tudo na realidade parece mostrar que os esforços de igualdade são pura ilusão. Outros até podem argumentar, com muita razão, que a busca por igualdade é esperteza. Se até dois gêmeos univitelinos são universos absolutamente distintos, que saída um indivíduo ou comunidades têm para promover a igualdade?

Parece que a questão precisa ser refeita. A impressão que se tem é que a questão deveria ser: "Por que procurar a igualdade entre os desiguais?". Meu amigo é tão diferente de mim e de todo mundo agora quanto com qualquer experiência de igualdade futura. A questão, portanto, está desfocada. O desafio, na verdade, é desenvolvermos compreensão e capacidade de convivência entre desiguais. Não posso forçar um pé tamanho 50 caber em um calçado de número 20. Inversamente, até que o pezinho entra no sapato, mas ficará tão desconfortável que talvez seja melhor ficar sem proteção nenhuma para os pés.

Isso pode parecer coisa sem importância. Mas vamos ampliar um pouco as coisas, para que possamos ver as consequências do pensamento distorcido. Quase todas as guerras e acontecimentos infames da humanidade foram feitos em nome da igualdade. Hitler queria uma sociedade sem os judeus porque os judeus eram desiguais. A igualdade racial exigia, portanto, o banimento semita. O que fez Davi, o grande nome do judaísmo, quando destroçou povos como os moabitas? Em nome de quê? Exatamente! A igualdade em cultuar o mesmo Deus.

A nossa incapacidade em conviver com as diferenças causa tantos males que não percebemos. É ela que explica o porquê de um juiz mande mandar prender aqueles que falam coisas que não batem com o que supostamente a lei não permite. Não havendo essa igualdade, essa sintonia, o juiz denuncia, processa, julga, condena e ainda fiscaliza o cumprimento da pena. Executa uma série de atos ilegais e imorais apenas para que haja igualdade entre o que se passa em sua mente e o que ele vê.

Nossas sociedades estão contaminadas com esse raciocínio e percepções venenosas. Alguém que não tenha um membro é considerado deficiente. Deficiente? Uma pessoa cega também. Cegos, surdos e mudos são apenas pessoas diferentes de nós. Se aplicássemos de forma inversa o venenoso raciocínio e percepção, quem não é cego seria deficiente porque não teria tanta habilidade nos dedos e olfativos quanto quem não vê desde seu nascimento.

E essa cegueira vai além e toma contornos muito dissimulados, quase imperceptíveis. O aluno que sabe pouco os assuntos da escola e aprende muito lentamente é considerado deficiente. E deficiência é justamente aquele descompasso entre o modelo mental de algum iluminado e o que o aluno efetivamente é. Estão pouco se lixando para todo o universo de saberes e sabedorias que ele traz, que talvez sejam mais importantes do que saber que uma oração é sindética ou assindética, que Sólon era grego ou que a Nigéria fica na África.

Não paramos para pensar, mas quase tudo o que a gente vê e que nos atormenta tem origem nessa ideia de se fazer igualdade com todos os desiguais. Um evangélico é tão belo na sua devoção a Deus, quanto um católico e um muçulmano. Um aleijado é tão maravilhoso nas suas formas de ver a vida quanto quem tem todos os seus membros funcionando perfeitamente. Quem tem a pele preta ou vermelha é tão digna de respeito e dignidade quanto quem tem a pele branca. Se há a possibilidade de alguma forma de igualdade é nisso: a prática da dignidade humana. E até nisso haverá sempre diferença, porque um fará a dignidade diferente de outro.

A maldade inconsciente por trás da igualdade é a causa de todas as formas de intolerância. Se meu irmão não pensa como eu, é autoritário; se não age como eu, é ditador; se não faz o que eu desejo, é genocida; se não sabe o que eu sei, é estúpido. Na mente doente é sempre o eu a referência, a base para o julgamento de tudo. Ela é a igualdade, o sinal de igual; a realidade é o que está do lado direito da equação. E não importa o que seja ela.

Ainda não conseguimos raciocinar retirando o sinal da igualdade da nossa mente. Talvez a vida e a realidade não sejam uma equação. Se não for, não tem sentido pensar de forma comparativa. Sim, pensar em igualdade é comparar. E toda forma de comparação vai encontrar, sempre, uma diferença. E exatamente por causa do que você acabou de perceber: somos todos diferentes. E quem pensa a partir da igualdade se reveste do dever, muitas vezes messiânico, de eliminar qualquer tipo de diferença. E a qualquer custo. É por isso que Napoleão fez o que fez. E é por isso que os políticos corruptos tomam de assalto o poder para ali se perpetuarem. No jogo da igualdade criminosa, vale tudo.

Ao longo da história, as atrocidades são tantas que o difícil é encontrar um momento em que elas não foram proeminentes. Em nome da única proposta para fazer emergir as diferenças para primeiro plano, institucionalizaram-se mundialmente os assassinatos e os genocídios. Em nome daquele que pregou a necessidade do respeito e dignidade a essa coisa que nos torna a todos parecidos (não iguais), ainda hoje criminalizam-se indivíduos e comunidades em inúmeras e diversificadas seitas. Se pudessem, retirariam a vida dos seus desiguais. 

Moda = a loucura de fazer todos serem iguais em alguma coisa

Forçar que todos tenham tudo em comum é forçar que sejamos iguais. Todas as tentativas fracassaram porque é forçosamente impossível que isso aconteça. 

Amar é com os desiguais, porque é cuidar e cuidar é carência, necessidade

Deus nos fez à sua imagem e semelhança = Deus é desigual = por isso é infinito = se fosse igual, seria um

Mostrar que apesar de todos os discursos contrários, o fato é que todos somos desiguais. Não há duas pessoas iguais

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