quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Guarda tua Crítica

A crítica é tanto um termo quanto uma atitude que tem enganado a muitos, especialmente nas últimas duas décadas. Em algumas áreas do conhecimento ser crítico ou ter pensamento crítico parece ser o píncaro da glória ou fim a que todo ser pensante deveria alcançar. Consequentemente, quem não é crítico no mínimo não tem uma formação intelectual ou desenvolvimento cognitivo substancioso. Mas será que é isso mesmo? Não estão todos os que se agarram nas garras da crítica presos em uma grande ilusão? 

A palavra crítica vem do latim "critĭcus" que, dentre outras significações, quer dizer apreciação e julgamento. Apreciar é dar o devido valor, reconhecer o valor de alguma coisa, aquilo que ele tem de bom, de substantivo. Enquanto julgamento, o termo está se referindo não ao processo de condenar, de apontar as coisas ruins, mas justamente à capacidade de ver as coisas boas. É que sem a capacidade de julgar, as coisas boas não poderiam ser percebidas e, portanto, apreciadas.

E de onde vem, então, essa preocupação que os que se dizem praticar o pensamento crítico em ver apenas as partes ruins das coisas, das pessoas e do mundo? Da ignorância, simplesmente. Esse desconhecimento, naturalmente, é imperceptível por eles. Eles não desconfiam que têm limitações em conhecimento justamente porque se julgam além da capacidade daqueles que não denunciam como crime grave as falhas dos outros. E o que eles desconhecem? Simples também: que os fatos e fenômenos do mundo nunca têm apenas um lado, apenas uma perspectiva, ângulo ou ponto de vista.

Um amigo, apaixonado pela Revolta da Cabanagem, reuniu centenas de documentos sobre esse episódio histórico. Todas as vezes que ele me relatava uma nova descoberta, ele parecia estar em epifania, na maior das felicidades. O que ele relatava? As maiores atrocidades que eram cometidas durante o conflito. E eu perguntava: "não havia nenhuma pessoinha pelo menos um pouquinho bondosa nesse conflito? Ninguém, ninguém, ninguém?". E ele ficava sem ação. Logo depois ele explicava: a história é feita de tragédia. Ele se dizia um historiador crítico cujos textos só apontavam tragédias em forma de denúncia, consideradas por ele estudos científicos. Evidentemente que o método científico era completamente ignorado.

Tome outro caso, agora de alguém que explicava as subidas e descidas das águas dos rios amazônicos. Em duas ou três páginas havia relatos desse fenômeno natural, extremamente superficiais, e 15 outras denunciando praticamente todo o universo por supostos crimes cometidos contra uma comunidade indígena. Em todo o texto não havia sequer uma única virtude em ninguém que não fossem, naturalmente, os índios que, aliás, eram o oposto de todos os criminosos ali denunciados, ou seja, os índios não apresentavam nenhum vício ou imperfeição.

O entendimento de "Crítica" só é plenamente alcançado quando levada em consideração a palavra "Crise", uma vez que ambas vêm do mesmo verbo grego "krinein". Crise designa um lapso temporal entre dois instantes bem definidos, A e B. Em A, que é anterior a B, a realidade é percebida de um jeito, as pessoas praticam determinados esquemas lógicos para guiarem suas vidas. Em B, a realidade é muito diferente de A porque a realidade mudou como decorrência das mudanças nos esquemas lógicos e valores que sustentaram a realidade A. Tomemos o exemplo do mundo antes e depois da internet e das maravilhas tecnológicas que temos hoje. Praticamente tudo mudou, incluindo os valores familiares e a forma de pensar.

E o que é crise? Crise foi (e muito provavelmente ainda esteja acontecendo) aquele período em que os valores do momento A conviveram simultaneamente com os valores do momento B. Nessa convivência simultânea as pessoas não sabiam (e até hoje muitas não sabem) se baseavam seus pensamentos e ações nos valores do momento A (que ainda não tinha desaparecido) ou nos valores do momento B (que ainda não estava plenamente consolidado). Isso dá um nó na cabeça das pessoas, o que inclui os mais sábios. Crise é exatamente isso: a convivência simultânea de inúmeros valores, dos passados e dos futuros, que não se sabe ao certo aos quais seguir.

É justamente daí que vem a necessidade de se compreender a ideia e a prática de crítica. O indivíduo crítico é aquele que é capaz de avaliar as situações e julgar quais são as boas, aquelas que produzem ações benéficas, para que possa conduzir suas ações a partir delas. Diferentemente de um juiz (que em grego é dito "Krités") que julga as pessoas, o crítico (que em grego é dito "Kritikós") é o que é capaz de julgar não as pessoas, mas as coisas. O crítico não condena. Não condena por quê? Porque sua preocupação é com o bem, não com o mal. Ele sabe que a concentração no mal não leva ao bem. Apenas o bem gera o bem.

Daí vem a questão: existe crítica construtiva ou toda crítica é destrutiva? Sob o ponto de vista de quem se diz crítico ou diz praticar um pensamento crítico ou o que quer que o valha, não há possibilidade de haver crítica construtiva porque a própria forma como agem ou expõem seus pensamentos é destruidora. Não dialogam, acusam. Não pensam, condenam. Não há alguma nuance positiva no outro, apenas negação. Seus saberes e falas são perfeitas, puras expressões da verdade, contra a imperfeição e vícios criminosos dos outros.

O ideal grego de construir na terra a harmonia e a beleza que se via no céu noturno e na natureza foi completamente destruída pela subversão que se fez com a crítica. Não mais Areté, não mais paideia, não mais os mais sublimes ideais efetivamente buscados na prática da construção do bem. Em seu lugar se destaca o perverso, as coisas ruins, as falhas como origem de condenação. O kritikós se fez krités. A crítica se fez condenação sem julgamento.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Isanidade Geral

O ditado diz que de médico e louco todos temos um pouco. Mas, ao que tudo indica, a contemporaneidade parece ter exagerado nisso. Não da parte dos médicos, mas da dos loucos. Em nenhum momento histórico a loucura se fez tão plena e onipresente como agora. Isso não quer dizer, contudo, que ela não existira em profusão anteriormente. O que é inédito é que aquilo que era reservado, privado, delimitado se tornou aberto, público ilimitado. É como se nossa mente fosse atacada pela loucura geral, antes aprisionada nos seus recantos particulares, nos convidando ao bailado insano que tem no ódio a sua forma mais explícita (e imperceptível).

O que é a loucura, se não a ideia inquestionável de que estamos certos e todo o universo está errado? O indivíduo são, por exemplo, quando comete algum desatino fica a se perguntar se está louco. Esse tipo de reflexão é impensável ao insano. Se se questionar, certamente louco não está, diz tanto a psicologia quanto a psicanálise e a psiquiatria. A razão disso é que a autorreflexão (com o perdão do pleonasmo vicioso) é impossível no insano porque a insanidade é justamente esse revestimento da verdade. O louco veste a roupa da verdade. E isso quando ele não se considera a própria roupa e passa se comportar como a encarnação dela.

E a primeira consequência visível no insano é que só ele está certo. Todo o universo está errado. Se o louco vê um casal de namorados comprar uma caixa de cervejas, logo vê algum defeito inaceitável. Se compram camisas de cor laranja, o insano se enfeza porque é incorreto não comprar blusas de cor verde-limão-marciano. Quem compra camisas (e não blusas) cor de laranja certamente é algum alienado reacionário que precisa a ser revolucionário, ainda que seja à base de chicote ou baioneta. É por isso que o insano se vê no dever de mudar o mundo, consertá-lo, colocá-lo no caminho certo, por mais que não tenha ideia do que isso seja.

Mas ele não faz isso por outra razão que não seja o amor. Ah, como o insano é amoroso. Ele ama tanto que sofre demais, chora, perde o sono, se sacrifica. Tudo isso pelo bem do mundo. Sua mentalidade messiânica lhe faz um guerreiro solitário contra o universo conspirador cuja comprovação fascista é o fato de que cada indivíduo teima em ter sua própria individualidade (perdão novamente pelo pleonasmo). Se só ele é amor, porque é a verdade, todos os demais são ódio. E por isso precisam ser combatidos até a morte. A morte, afinal, é o que todos os que não pensam como ele pensa merecem. É preciso exterminar quem ousa pensar diferente para instaurar uma sociedade verdadeiramente democrata, onde todos pensam exatamente a mesma coisa da mesma forma.

Na sociedade mental em que vive, o insano vive efetivamente a democracia que deseja instaurar na realidade. Não suporta o autoritarismo individual, em que cada mente vê e interpreta o mundo a partir do estoque de conhecimentos e experiências que auferiu. Como as pessoas ousam não perceber que a democracia é a melhor coisa que existe, que a política é o caminho que leva àquela perfeição de mundo em que o insano vive e que a crítica sobre os adversários (que são todos os que pensam diferentes) é a principal arma de combate? Respeito à individualidade, tanto de pensamento quanto de ação, admissão de inúmeras formas de exercício da liberdade e necessidade de se pensar sobre qualquer coisa são crimes inaceitáveis à mentalidade verdadeiramente democrata do insano.

Quem pensa como ele ou diferente dele reaparece nos inúmeros adjetivos que o insano cria. Aliás, chega a inventar inúmeros outros significados para palavras já sedimentadas semanticamente. Isso o torna um fabricante inveterado, incontido, de ressignificações, ainda que não tenha ideia do que isso seja. Mas isso não importa porque somente ele sabe tudo e somente ele sabe a solução para tudo. Se o rio está poluído, há sempre um agente-inimigo certeiro da poluição. Se as cidades estão cheias de miseráveis, imediatamente consegue identificar quem são os criminosos. Se as nuvens do céu estão de cor alaranjadas e ele entende que aquilo é algo ruim, automaticamente consegue fazer um retrato falado dos autores reacionários.

Não é difícil imaginar que o insano não pode ser contestado. A contestação é a prova-crime incontestável de que é o outro que é louco. E loucura é algo inadmissível em uma mentalidade sadia, o que explica a necessidade de se alastrar para toda a humanidade a loucura que contagia, as ações que contaminam e os pensamentos que dilaceram. Por mínima que seja a diferença de ver as coisas, o máximo de precaução é necessária para que o mal não se alastre. A sanidade do insano produz a sociedade do medo, que se transforma em pavor, e que é creditado ao outro. O inferno é o outro, história contada e recontada que se transforma em verdade.

Mas talvez o que mais nos dá a garantia de estarmos diante de um insano é a necessidade que ele tem de debater, discutir, refletir, questionar, criticar, enfim, de falar. Sua necessidade de falar é tão grande que se tem a impressão de que se ele não for dono da palavra irá enlouquecer ao quadrado. E como fala o insano. Como fala demais, como é dominado pelas palavras, é incapaz de agir. O insano é aquele que não sabe fazer o que o seu discurso diz. A impressão que se tem é que os significantes vagabundos de que Lacan tanto falava entopem a garganta do insano e o impedem de agir.

Os alemães cunharam um termo que representa algo próximo à loucura e que é inadequadamente traduzida por alienação (Entfremdung). Não é que a palavra em português em si esteja errada, mas o seu significado está. O mais acertado, para efeito de equivalência semântica, pragmática e cultural, seria estranhamento. O insano está fora de si, como se seu corpo estivesse ali fazendo as coisas mas por vontade de outra entidade. Ele estranha o que o seu corpo e sua mente estão fazendo, mas não pode fazer nada. É esquisito, mas é mais ou menos isso. É como se o indivíduo estivesse assistindo às atrocidades (ou benesses) que seu corpo e mente estão fazendo, mas não pudesse fazer nada.

Nessa experiência esquisita que a palavra alienação toma há dois corpos e duas mentes separadas em planos diferentes. É exatamente isso o que quer dizer estranhamento. Não é alguém diferente que tomou de assalto o corpo e a mente do indivíduo insano, alienado. É o próprio corpo e a própria mente que ganharam autonomia para fazer aquilo que os "verdadeiros" corpo e mente não têm controle. É por isso que não se pode imputar responsabilidade civil ou legal ao insano. Seu eu sadio não consegue controlar seu eu doente.

Do ponto de vista da psicanálise, o insano é alguém controlado pelo seu inconsciente (id). Seu ego, que é o barramento que impede a invasão do id, foi completamente rompido. Não há processo civilizatório possível. É por isso que o discurso do louco é um discurso do todo. É sintético, sem capacidade efetiva de análise, de ver as partes e as inúmeras e impensáveis formas de as partes criarem e recriarem continuamente o todo. Por estar fora do mundo é que o insano consegue ver o mundo todo. Só não consegue ver a si mesmo. Por não conseguir ver a si mesmo, confunde-se com o mundo, e com a verdade e com a perfeição. O louco é perfeito no exato instante do seu discurso. Em seguida cai. E se torna o vazio.

Mas o que produz essa insanidade? A incapacidade de ser ver errado. O insano inventa mil narrativas (palavra que ele cria para ressignificar mentira) para contornar seu erro que todos veem, sem saber que para cada mentira inventada terá que inventar outras quando ela for descoberta. Engana-se quem acha que há insanos apenas de esquerda e de direita. Há-os também na ciência, na filosofia, na pederastia, na sodomia, na sonoplastia, nas harmonias, nas sacristias, nas astrologias, enfim, em tudo. A insanidade é universal e omnilateral. Está em tudo e em diferentes tonalidades. Está em todos nós.

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...