segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Tu Te Irritas?

Não sei se é impressão, mas parece que as pessoas estão se irritando cada vez mais a cada dia. E três têm sido as demonstrações incontestáveis de que a irritação passou a habitar a mente e o coração delas: expressão facial fechada, agressão verbal e agressão física, nos casos extremos. É preciso combater urgentemente essa doença, que já alcança abrangência pandêmica, como mostram relatos diários de suas manifestações em todo o globo.

A primeira coisa é saber com relativa precisão o que é irritação. De forma geral, é a impaciência e intolerância com alguma coisa que incomoda. E conhecer esse incômodo é fundamental para que a impaciência e a intolerância seja extirpada com vida da pessoa. Se isso não for possível, pelo menos que possa conviver com ela sem grandes e nocivas consequências.

Tanto a impaciência quanto a intolerância são uma maneira consciente ou inconsciente de dizer "não aguento mais". A pessoa se irrita porque não aguenta mais aquilo que lhe causa incômodo. Muitas vezes o incômodo provoca dores horríveis, físicas, mentais ou espirituais. Por essa razão, todo mundo que convive com alguém que vive irritado ou que sofre desse mal precisa saber disso: a pessoa se irrita porque não aguenta mais alguma coisa. E é preciso descobrir o que a irrita e o porquê.

Disso resulta algumas descobertas óbvias, mas importantes. A primeira é que a pessoa se irrita porque não aguenta mais enfrentar a causa do seu incômodo. A primeira obviedade é que ela não tem mais controle físico ou emocional para enfrentar a situação e conviver com ela. Provavelmente já tentou inúmeras alternativas, mas fracassou. A irritação, portanto, é a forma mais eficiente encontrada para pelo menos reduzir o impacto do incômodo.

A segunda obviedade é que a causa do incômodo continua ali, perto dela, física, mental ou espiritualmente. Isso é óbvio porque, se a causa estivesse distante, provavelmente a irritação diminuiria sensivelmente ou diminuiria. Se estiver perto fisicamente, o simples distanciamento seria suficiente para eliminar a irritação. Contudo, muitas vezes as causas estão distantes fisicamente, mas como para a mente e para o espírito não há distância, além de estarem perto estão dentro do corpo (físico e espiritual) de quem sofre.

E a terceira obviedade é consequência das outras e que aponta para o tratamento: o doente não consegue se separar da causa que o incomoda. No fundo, e isso parece ser estarrecedor, é o próprio doente que cria a doença. Quase sempre ele está em processo simbiótico com a causa, alimentando e sendo alimentado por ela. Há, portanto, uma relação de codependência entre eles.

Luzia não suportava músicas "barulhentas". Todas as vezes que seus parentes aumentavam o volume do som, parecia que ela se transformava em uma leoa. Certa vez, inclusive, chegou a quebrar completamente o aparelho de som. Dizia que tinha a impressão de que o barulho estava dentro dela e que sua intensidade fazia ferver todos os seus órgãos internos. Desesperada, tinha que dar fim ao incômodo de alguma maneira.

Jujuca ficava possesso de raiva quando alguém espirrava perto dele. Achava um profundo desrespeito. Além disso, questionava, quem garantia que não houvesse o espalhamento de doenças em cada espirro dado? Tinha pavor, na verdade, de ser contaminado com alguma doença respiratória, coisa que desconhecia completamente, antes de ser curado.

Por incrível que isso possa parecer, a cura da irritação só se dá com o conhecimento. Aprender, novamente, parece funcionar com precisão em todos os casos de irritação. O que o irritado desconhece e que precisa aprender? Vejamos algumas delas.

a) O mundo é feito de relações. Isso significa que nada está isolado. Tudo contribui para a existência e dinâmica de outras coisas. Tudo o que fazemos beneficia a nós e/ou aos outros. Há uma relação da gente para com nós mesmos e outras relações da gente para com outras pessoas. As relações, portanto, são inevitáveis. Essa é a primeira coisa a ser aprendida.

b) Somos alvo do bem o tempo todo. Se a gente parar para observar, veremos que a maioria das coisas acontecem para nos beneficiar. Quando elas nos prejudicam, o próprio prejuízo tem sempre pelo menos um aspecto benéfico. Por exemplo, se entro e saio várias vezes de ambientes frios e quentes, posso pegar um resfriado. E, se isso me acontece, esse conhecimento é confirmado mais uma vez em minha experiência. Assim, estar resfriado (que é aparentemente um mal) se faz um bem (aquisição de conhecimento). E provavelmente vai reforçar em mim a necessidade de encontrar uma forma de evitá-lo, gerando  mais saber.

c) Aquilo que me irrita é apenas uma visão distorcida da realidade. A primeira distorção é decorrente do desconhecimento da lei das relações, em que é obrigatório que eu me relacione com o mundo, o que inclui aquilo que me causa irritação. A segunda é o desconhecimento de que aquilo que me deixa irritado também me traz pelo menos um benefício. Esse benefício é desconhecido ou sua origem.

d) Se a fonte da minha irritação é uma ação de outra pessoa, o problema não é meu. Entenda-se como problema a obrigatoriedade de corrigir a causa de alguma consequência ruim. Se alguém coloca o som em volume alto e eu considero isso um mal, por que me irritar, se não sou eu que estou causando o mal? Aquilo que os outros fazem é obrigação deles corrigir. E não compete a mim obrigá-los a isso.

e) Se o som alto da outra pessoa me causa irritação, o problema não é o som, mas o que há em mim. O autoconhecimento é fundamental em todas as situações de irritação. A experiência tem mostrado que a irritação é apenas a reverberação, o aumento de intensidade, daquilo que habita no indivíduo que se irrita. Pode ser inveja por não poder fazer o mesmo barulho, por exemplo.

O que queremos mostrar é que a irritação é a incapacidade do indivíduo de se autocontrolar. Ele não consegue separar as coisas de fora e de dentro dele. Por extensão, não consegue distinguir entre as coisas que ele pode e as que não pode controlar. O que o torna irritado, então, é o desconhecimento do fato de que pode controlar os efeitos das causas externos agindo sobre seus recursos internos.

Ricardinho não suportava a voz rouca da sua chefa temporária, que veio de outra cidade; resolveu o problema colocando um fone de ouvido com músicas de Beethoven em tons baixos. Mariinha não aguentava a presença de sua cunhada em sua casa nos finais de semana, mas a irritação foi eliminada quando começou a imaginar uma aura de luz em volta do corpo da irmã de seu marido. Jozito deixou completamente de se ofender com as ironias de Vivinho quando soube que elas eram expressões de profundas invejas.

O conhecimento de que a irritação não é originária dos outros mas do que há em nós leva, necessariamente, à invenção de alguma estratégia de uso dos recursos internos para pelo menos frear aquilo que nos irrita. Não é o que está fora que me causa a irritação, mas a forma como eu reajo. Não posso impedir que o céu deixe de ser azul, mas posso inventar uma forma de não deixar que isso me irrite. E o que fazer com as aparentes causas distantes?

Dimitriva era altamente preconceituosa com os homens que tinham cabelos escorridos até os olhos. Achava todos criminosos. Tinha certeza disso. Bastava ver alguém com cabelos escorridos até os olhos que o ódio se lhe tomava conta a ponto de poder cometer assassinato antes que o outro o fizesses. Seções de psicanálise apontaram a causa do problema. Na infância, Dimitriva assistiu a dois assassinatos cometidos por um vizinho que tinha cabelos escorridos até os olhos. A cena foi tão forte que fugiu completamente de sua memória, mas permaneceu intocada nas gavetas de seu inconsciente.

Ainda que as causas estejam distantes, é sempre o conhecimento que gera a cura de todas as irritações. De forma mais precisa, é necessário autoconhecimento para que as nossas estruturas emocionais sejam inabaláveis contra as tempestades exteriores, porque as causas são todas internas. Mas é necessário conhecimento relacional dos fatos e fenômenos do mundo, tanto para ver a beleza das coisas quanto fortalecer o amor que passaremos a ter para com nós mesmos. E quem se ama não se irrita.

2 comentários:

Diná Fernandes de Oliveira Souza Souza2 disse...

Olá caro confrade Daniel
Eu sou Diná Fernandes confreira efetiva e estou conhecendo o seu blog, tenho este blog onde divulgo trabalhos de Escritores e poetas, caso se interesse faça contato.
Gostei dessa rica matéria que acabo de ler sobre irritações, achei bem interessante e gostaria de divulgar, um trabalho que precisa ser conhecido, as pessoas desconhecem a resiliência, estão passando dos limites, perderam o controle da impulsividade e partem para a agressão verbal e física como se fosse uma brincadeira.
Feliz Natal.
Conheça o blog por favor.

Diná Fernandes de Oliveira Souza Souza2 disse...

Olá caro confrade Daniel
Eu sou Diná Fernandes confreira efetiva e estou conhecendo o seu blog, tenho este blog onde divulgo trabalhos de Escritores e poetas, caso se interesse faça contato.
Gostei dessa rica matéria que acabo de ler sobre irritações, achei bem interessante e gostaria de divulgar, um trabalho que precisa ser conhecido, as pessoas desconhecem a resiliência, estão passando dos limites, perderam o controle da impulsividade e partem para a agressão verbal e física como se fosse uma brincadeira.
Feliz Natal.
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