sábado, 12 de dezembro de 2020

Uma Dor muito Profunda

 Há pessoas que carregam dentro de si uma dor tão profunda que um olhar mais cuidadoso é capaz de percebê-la e até senti-la facilmente. Muitas vezes apresentam um olhar ferido em um rosto quase sempre franzido, como se olhassem o mundo e a vida com desgosto ou desdém. Quase não sorriem, a não ser para exteriorizar uma parte de sua dor em forma de sarcasmo ou cinismo. Têm muitas dificuldades em elogiar. Quando elogiam o fazem para aliciar ou puxar o saco. Não têm amor próprio. São profundamente doentes de um orgulho que exala de todos os seus poros físicos, mentais e espirituais.

João é uma pessoa bem sucedida. Conhecida no mundo todo por sua obra em várias áreas, resolveu incentivar a cultura de sua pequena cidade do interior amazônico. Convidou a todos para uma coletânea de textos. Não importava o tipo de texto. Por mais de três meses percorreu todas as redes sociais convidando possíveis autores para promover suas obras. Com muita dificuldade conseguiu completar a obra e a publicou.

Os poucos autores que atenderam ao convite ficaram muito felizes pela oportunidade. As milhares de pessoas da cidade e de outras comunidades se maravilharam com o talento daqueles conterrâneos. Muitas delas decidiram participar de uma segunda empreitada, caso ela ocorresse. E a obra começou a ser compartilhada para regiões mais distantes, elevando o conhecimento de sua existência e importância para o resgate da literatura daquela região brasileira.

Zezeco, em uma conversa a sós com João, demonstrou toda a sua fúria com a publicação de textos de autores desqualificados, plagiadores, vermes, nas suas palavras. O motivo da fúria? A obra não citou, em nenhum momento, o nome Zezeco. Aliás, toda a obra deveria estar voltada apenas para o nome dele. E ele não entendia por que João, uma pessoa considerada culta e muito importante em vários lugares do mundo, cometera um erro tão estúpido desse.

Noutra ocasião, um grupo de amigos resolveu coletar donativos de roupas e alimentos para que, mensalmente, pudesse aliviar a fome dos moradores de uma comunidade miserável amazônica e substituir os trapos que vestiam por vestimentas mais dignas. E assim fizeram. No primeiro mês, a felicidade daquela comunidade foi quase geral. Quase. 

Fulustreca, uma senhora de aparência repulsiva, ficou indignada com a marca do macarrão que estava sendo distribuído. Havia, argumentava a moradora, marcas mais famosas na cidade. Por que não estavam ali? Além disso, por que não davam mais roupas novas do que usadas? Por que ela teria que aceitar aquelas doações de última categoria, nas palavras dela?

Tanto o caso de Zezeco quanto o de Fulustreca, se vistos de forma superficial, podem ser tomados por atitudes normais. Mas não o são. O normal é agradecer a todo tipo de doação feita com intenção de bondade. Toda atitude centrada no bem, voltada para o bem, realizada para trazer alegria e contentamento precisa ser louvada. O que essas atitudes estranhas mostram, na verdade, é um descontentamento profundo que essas pessoas têm com elas mesmas.

A atitude de Zezeco é translúcida: ele queria ser o centro das atenções do livro de que ele não fez parte. Todos os textos deveriam falar dele, dos seus feitos, para que lhe pudessem trazer um pouco de contentamento - ou pelo menos não despertar seu descontentamento e sua fúria. Mas por que todos os textos do livro não falaram dele? Simplesmente porque nosso irmão é uma figura insignificante para ser retratada em um livro. Diante da realidade da insignificância e da fantasia de que ele é a pessoa mais importante do mundo surge uma lacuna abissal difícil de ser preenchida. A não ser, evidentemente, com ódio.

É essa mesma evidência que há em Fulustreca. Sua mente diz com nitidez que ela gosta de produtos de marcas famosas. Por quê? Talvez porque ela assim se veja intimamente ou porque se considere digna das coisas mais distintas e exclusivas do mundo, ainda que o mundo seja o universo daquela pequena cidade que habita. Noutras palavras, aquela moradora se vê como o centro do mundo e assim exige que seja tratada, ainda que inconscientemente, mas materializado nas suas atitudes.

A origem de tudo isso é o orgulho. Um orgulho tão profundo que não permite que as pessoas distinga a realidade de suas fantasias. Como o tempo todo suas fantasias estão sendo confrontadas com a realidade, o tempo todo estão se frustrando e o tempo todo estão demonstrando o seu descontentamento com aquilo que a realidade lhes mostra. É por isso que têm o rosto fechado, franzido, os olhos tristes, aquele ar raivoso e os sorrisos maquiavélicos.

As pessoas com orgulho profundo se veem como o centro de tudo, do mundo. Veem-se como os melhores escritores, mesmo sem escreverem uma frase sequer; como os melhores fotógrafos do planeta, ainda que suas fotografias tenham alguma qualidade; os melhores oradores do universo, mesmo que não consiga prender a atenção de ninguém; os raciocínios mais geniais da eternidade, ainda que os expressem com palavras chulas. Há sempre o confronto das suas fantasias com a realidade, em que suas ilusões são desfeitas, mas eles não veem. Na mente doente deles, quem está errado é o mundo e tudo o que nele existe.

E gente com orgulho profundo é o que não falta na face da terra. Eles não gostam de entrar nas filas, procuram um jeito de burlar a paciência dos demais; nas lojas, se algum problema acontece, querem logo falar com o dono da loja porque nenhum funcionário está à altura de ouvir suas vozes; nos grupos sociais são os que exigem mais visibilidade e puxassaquismo; no trabalho são os que querem ser promovidos sem mérito; e até nas suas relações com Deus, exigem uma mansão com inúmeros empregados, aqui e na outra vida.

Todas as vezes que o EU aparecer antes do NÓS, ali há alguém com dor profunda. EU tenho que ser servido primeiro, EU sou o único merecedor daquele prêmio, todos têm que ME obedecer, o MEU trabalho é o melhor. O orgulhoso doentio é o centro do mundo porque foi convencido por suas ilusões. Nele não há alteridade, essa desconfiança de que não somos melhores nem piores do que os outros, mas apenas diferentes. 

O orgulhoso profundamente doente vive em um mundo de fantasias. Felizmente para ele, a realidade trata de colocar as coisas nos seus devidos lugares o tempo todo. Consequentemente, o tempo todo eles estão descontentes, raivosos. Chegará o dia em que as ilusões darão lugar à realidade. Mas, até lá, muito sofrimento ainda haverá de haver.

Um comentário:

Unknown disse...

Orgulho e egoísmo, origem de todos os males de nossas vidas. Parabéns pelo belo texto.

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