quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Incrementalmente

Nesta semana inventei um tempinho, achei um dentista disponível e extraí um molar. Ainda com os efeitos da anestesia, senti um conforto muito grande com o encaixe da mandíbula com o maxilar, os ossos de cima e de baixo da boca. Depois que a anestesia passou, a sensação de bem estar aumentou e se consolidou depois que as dores da picada da agulha cessaram. Uma sensação de leveza tão grande tomou conta de mim, como se eu tivesse me renovado completamente. As dores e desconfortos daquele dente deram lugar àquela felicidade que eu sentia novamente e que nem mais me lembrava que sentira antes.

O que me levou à extração foram os profundos desconfortos a que eu estava me submetendo ao seguir as recomendações de vários dentistas, para que eu me esforçasse ao máximo para manter o dente. A cada inflamação mais grave da gengiva eu recorria aos dentistas, pedia que o retirassem, mas me convencia do esforço para mantê-lo. Muitas vezes, quando a bochecha toda inflamava, eu saía de casa resoluto para extraí-lo, mas me deixava convencer novamente. E nisso se foram oito longos anos desde a primeira vez que o quis retirá-lo definitivamente.

Mas o que levou esse dente a gerar tamanho desconforto? Eu suspeito que foi a extração do ciso, décadas atrás. Pela minha explicação ignorante, quando tirei o ciso o molar teve sua proteção retirada também, de maneira que, mesmo com as adequadas escovações diárias, a perda óssea foi, muito lentamente, progredindo. Creio que tirei o ciso no início da década de 2000, provavelmente no ano 2002. Há 17 anos.

Meus registros dizem que a primeira vez que tive desconforto mais intenso com o molar foi em 2011, oito anos atrás. Então, durante nove anos tive, progressivamente, muito lentamente, a evolução do meu problema. A imagem que faço desse processo é de um progresso infinitesimal, microscópico, praticamente imperceptível. Todos os dias, então, toda semana, todos os meses durante todos esses anos, progressivamente, muito lentamente, o desconforto foi se implantando. E tudo terminou nesta semana.

Essa experiência me fez pensar nos sucessos e fracassos da vida. Cada grande sucesso é construído muito lentamente ao longo de muito tempo. Lembro dos casos de Pelé e Oscar Mão Santa, atletas de renome mundial. Ambos, todos os dias, ficavam muitas horas a mais treinando, sozinhos, detalhes dos procedimentos que realizavam depois, nos treinos e nos jogos. Pelé repetia centenas de vezes o mesmo chute, o mesmo drible, todos os dias; Oscar arremessava, todos os dias, milhares de vezes a bola à cesta.

Repetiam cada jogada porque erravam muito. Suas repetições visavam justamente a reduzir ao máximo possível os erros. Miravam ao acerto, mas estudavam seus erros. E repetiam, repetiam, incessantemente, incansavelmente. Como o meu dente. A cada tempo que eu provavelmente demorava ou fazia inadequadamente minha higiene, a perda óssea progredia. Ela não tinha pressa. Estava apenas atenta aos meus erros, à minha despreocupação comigo mesmo.

Não apenas Pelé e Oscar são exemplos da quase perfeição que os esforços contínuos, lentos, incrementais trazem. Zico é outro exemplo. Mas sua preocupação era apenas com a cobrança de faltas e dribles desconcertantes. Pelé e Oscar tinham múltiplos desafios em mente. Pelé, por exemplo, era tão bom goleiro quanto atacante.

Um grande amoroso amigo sonhava em estudar doutorado em economia na Unicamp. Durante 17 longos anos foi reprovado no processo seletivo, apesar de estudar todos os dias, a cada tempo que tinha disponível. Lentamente, muito incrementalmente, sua capacidade competitiva aumentava e seu conhecimento econômico se consolidava. E o resultado foi sua aprovação. O mesmo aconteceu com a senhora que tentou por 26 anos entrar para o curso de medicina. O esforço incremental um dia leva ao sucesso.

Alguns dos meus alunos querem escrever bem com algumas poucas tentativas. E chegam a se irritar quando eu os conserto, quando mostro onde erraram. Certo dia perguntei a dois deles quanto tempo por semana eles dedicam à musculação, à academia. Responderam duas horas diárias, muitas vezes até no domingo, nos últimos dez anos. E lhes mostrei que o corpo esculpido deles era a consequência dessa dedicação. A cada esforço os músculos respondiam, lentamente, moldando-se, esculpindo-se incrementalmente.

Os fracassos são incompletude dos esforços. Fracassamos quando paramos. Somos fracassados quando desistimos de alcançar aquilo que queremos. Pelé não seria o atleta do século, se não se dedicasse horas e horas além do horário de treino a praticar o que praticou, Oscar não seria o maior cestinha de toda a história, Zico não seria o melhor cobrador de faltas de todos os tempos e tampouco meu amigo teria realizado o seu sonho de ser doutor em economia pela Unicamp.

Sonhos não acontecem do dia para a noite. Isso é fantasia. Sonhos são construídos lentamente, devagar, ao longo de muito tempo. Muitas vezes as dores e o próprio sangue são requisitos sem os quais o sucesso não vem. Vejam os casos dos grandes guitarristas. É muito dolorido, no início, o corte que as cordas provocam nos dedos e o sangue chega a marcar e a manchar os instrumentos. Mas é preciso persistir com a dor e com o sangue, se não a crosta, espécie de calo que os cortes vão gerar, não se instala nos dedos. E essa dor se prolonga por meses e até anos, dependendo do grau de precisão e inovação sonora que se pretende obter.

Sei que, ao retirar o molar, outro dente ficou desprotegido. Isso quer dizer que novo processo lento, incremental, se iniciou, da perda óssea desse dente desprotegido. E muito provavelmente em mais ou menos tempo eu terei que lidar com as consequências dessa lei universal irrevogável. Mas essa é uma batalha que, agora, eu estou disposto a enfrentar, cujo objetivo é retardar ao máximo o desconforto e prolongar essa maravilhosa sensação de bem estar que voltei a sentir.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Remendos

Muitas vezes batemos os olhos em alguém e uma força maior do que nossa capacidade de controle toma conta da gente e nos faz fazer coisas terríveis. Não que tenhamos a sordidez de planejar o mal que inconscientemente produzimos. Mas o fato é que fazemos e apenas o longo passar do tempo, quando por diversas vezes tivermos passado de sujeito a objeto da maldade, poderá nos fazer reconhecer o mal que causamos.

Uma boa parte da minha infância foi de muitas necessidades. Tínhamos dificuldades, meu pai e eu, até de conseguir comida para sobreviver. Almas caridosas surgiram e aliviaram o fardo do meu pai para com a minha sobrevivência. Ganhei comida. Ganhei roupas e calçados usados.

Fiquei tão maravilhado com aquelas roupas novas, aqueles sapatos bonitos, que na minha cabeça eram todos novinhos em folha. Na verdade, nem passava pela minha cabeça sequer pensar no tempo que aquelas dádivas tinham.

Eu não tinha o que vestir. Lembro com muita nitidez de ter apenas dois calções, ambos com furos na parte traseira de tanto sentar no chão porque onde eu habitava não tinha cadeiras ou o que quer que seja para sentar. Eu usava as roupas com a parte de trás para a frente. É claro que eu sentia vergonha quando de vez em quando meu órgão genital ficava saliente, mas eu podia fazer o quê? Quando o rasgo aumentava, cometia o erro de colocar um calção por cima do outro. Como consequência, tinha dias que eu ficava pelado em casa, para que os dois calções pudessem secar.

Blusa? Só tinha uma. Não lembro uma única vez de ter usado blusas nessa época. Nem eu e nenhum dos moleques da minha vizinhança. Era comum, então, brincarmos nus nos quintais, nas ruas. Não por que quiséssemos, mas porque não tínhamos o que vestir. As roupas rasgadas, acreditem, eram uma espécie de roupa para sair, passear.

Quando eu vesti as roupas usadas que ganhei, meus vizinhos ficaram encantados. Todos me admiravam. Como eu estava bonito, diziam alguns. Como eu fiquei diferente, diziam outros. Fiquei até um homenzinho, diziam os mais velhos. E, claro, eu me vi feliz porque o ambiente daquelas pessoas miseráveis era de felicidade por mim.

Vesti a roupa e fui para a casa da família que as me deu. Eu passaria o dia lá, ajudando em pequenos afazeres, faria as refeições, teria aulas particulares e à tarde voltaria para casa, com uma penela de comida para o meu pai jantar. Muitas vezes era a única alimentação que ele faria.

As pessoas que não me conheciam pareciam conhecer tudo da minha roupa. Viam defeitos na bermuda, manchas na blusa e até um pequeno buraco na parte das axilas. E não se contentavam apenas em ver os defeitos da minha roupa. Queriam mostrar que aquilo era muito importante, infinitamente reprovável, inadmissivelmente aceitável, profundamente humilhante.

Acho que, se não fosse a felicidade tão grande que eu estava sentindo por estar naquelas roupas, talvez eu tivesse dado ouvidos para o que as pessoas que não me conheciam falavam. E mais ainda: as pessoas caridosas, que as me deram, estavam mais felizes do que eu.

Mas aquilo me chamou a atenção de alguma forma. Eu comecei a aprender com tão pouca idade que há pessoas que se incomodam demais com os remendos na roupa dos outros. Se preocupam tanto com os outros que se esquecem de cuidar de si mesmas.

Muitas e muitas vezes vi pessoas humilharem as outras porque eram pretas ou porque eram brancas demais. Mas as pessoas que humilhavam não percebiam que elas também tinham suas particularidades. Um menino magro demais, apelidado de palito (apelido que ele detestava), humilhava uma menina porque ela alta demais. O garoto muito rico humilhava os que não tinham dinheiro, mas não percebia que sua boca fedia demais quanto ele falava.

Mas o mais inacreditável é que todas essas pessoas tinham coisas maravilhosas. Seus defeitos, seus remendos eram tão pequenos em relação à enormidade de coisas boas que apresentavam que fica difícil de acreditar que ficávamos cegos para o bem e com super-visão para ver o mal.

O tempo passou, andei por muitos e muitos lugares e a mesma constatação: somos muito bons para ver os remendos dos outros, mas não conseguimos ver os nossos remendos e tampouco as coisas boas que os outros apresentam. E isso é tão sério que tem até corrente de sábios dedicados exclusivamente à detectação dos remendos dos outros. É tão sério que se consideram os caras mais avançados do planeta. Tão avançados que ridicularizam todos os que não se consideram especialistas em ver os remendos dos outros. Igual ao que acontecia na minha infância.

A vida que tenho agora me ensinou que as pessoas que vencem na vida, que são felizes de verdade, não estão nem aí para o remendo dos outros. Os olhos deles estão voltados para aquela enormidade de coisas boas que acho que todo mundo tem. Quem vive dos remendos dos outros não tem tempo para ser feliz. Felicidade é uma coisa que se conquista, que é construída dia a dia, hora a hora, segundo a segundo.

Hoje, olho para trás à procura de imagens do meu passado e me flagro sorrindo muitas vezes... São momentos de felicidades com as lembranças da pureza infantil que os remendos das minhas roupas nunca conseguiram tapar.

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...