sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, para isso, não estabelecessem quaisquer princípios filosóficos. Paradoxalmente, experiências fundamentadas filosoficamente neste sentido foram as que geraram as maiores ditaduras e genocídios da história. Infelizmente, a igualdade parece só ser possível no campo do esforço individual com esse intuito. E nada mais.

Não é preciso muita capacidade cognitiva para que possamos perceber, de imediato, que absolutamente nada é igual na realidade. Um cachorro é diferente de todos os outros. Uma moeda de dez centavos também difere radicalmente de todas as outras. Um átomo é hidrogênio, o mais elementar, é quase que absolutamente distinto de todos os demais. Até uma equação matemática é diferente da outra. Por exemplo, f(x) = 2x + 1 é diferente de f(x) = 2x +1,00000000000000000001.

Tudo na realidade parece mostrar que os esforços de igualdade são pura ilusão. Outros até podem argumentar, com muita razão, que a busca por igualdade é esperteza. Se até dois gêmeos univitelinos são universos absolutamente distintos, que saída um indivíduo ou comunidades têm para promover a igualdade?

Parece que a questão precisa ser refeita. A impressão que se tem é que a questão deveria ser: "Por que procurar a igualdade entre os desiguais?". Meu amigo é tão diferente de mim e de todo mundo agora quanto com qualquer experiência de igualdade futura. A questão, portanto, está desfocada. O desafio, na verdade, é desenvolvermos compreensão e capacidade de convivência entre desiguais. Não posso forçar um pé tamanho 50 caber em um calçado de número 20. Inversamente, até que o pezinho entra no sapato, mas ficará tão desconfortável que talvez seja melhor ficar sem proteção nenhuma para os pés.

Isso pode parecer coisa sem importância. Mas vamos ampliar um pouco as coisas, para que possamos ver as consequências do pensamento distorcido. Quase todas as guerras e acontecimentos infames da humanidade foram feitos em nome da igualdade. Hitler queria uma sociedade sem os judeus porque os judeus eram desiguais. A igualdade racial exigia, portanto, o banimento semita. O que fez Davi, o grande nome do judaísmo, quando destroçou povos como os moabitas? Em nome de quê? Exatamente! A igualdade em cultuar o mesmo Deus.

A nossa incapacidade em conviver com as diferenças causa tantos males que não percebemos. É ela que explica o porquê de um juiz mande mandar prender aqueles que falam coisas que não batem com o que supostamente a lei não permite. Não havendo essa igualdade, essa sintonia, o juiz denuncia, processa, julga, condena e ainda fiscaliza o cumprimento da pena. Executa uma série de atos ilegais e imorais apenas para que haja igualdade entre o que se passa em sua mente e o que ele vê.

Nossas sociedades estão contaminadas com esse raciocínio e percepções venenosas. Alguém que não tenha um membro é considerado deficiente. Deficiente? Uma pessoa cega também. Cegos, surdos e mudos são apenas pessoas diferentes de nós. Se aplicássemos de forma inversa o venenoso raciocínio e percepção, quem não é cego seria deficiente porque não teria tanta habilidade nos dedos e olfativos quanto quem não vê desde seu nascimento.

E essa cegueira vai além e toma contornos muito dissimulados, quase imperceptíveis. O aluno que sabe pouco os assuntos da escola e aprende muito lentamente é considerado deficiente. E deficiência é justamente aquele descompasso entre o modelo mental de algum iluminado e o que o aluno efetivamente é. Estão pouco se lixando para todo o universo de saberes e sabedorias que ele traz, que talvez sejam mais importantes do que saber que uma oração é sindética ou assindética, que Sólon era grego ou que a Nigéria fica na África.

Não paramos para pensar, mas quase tudo o que a gente vê e que nos atormenta tem origem nessa ideia de se fazer igualdade com todos os desiguais. Um evangélico é tão belo na sua devoção a Deus, quanto um católico e um muçulmano. Um aleijado é tão maravilhoso nas suas formas de ver a vida quanto quem tem todos os seus membros funcionando perfeitamente. Quem tem a pele preta ou vermelha é tão digna de respeito e dignidade quanto quem tem a pele branca. Se há a possibilidade de alguma forma de igualdade é nisso: a prática da dignidade humana. E até nisso haverá sempre diferença, porque um fará a dignidade diferente de outro.

A maldade inconsciente por trás da igualdade é a causa de todas as formas de intolerância. Se meu irmão não pensa como eu, é autoritário; se não age como eu, é ditador; se não faz o que eu desejo, é genocida; se não sabe o que eu sei, é estúpido. Na mente doente é sempre o eu a referência, a base para o julgamento de tudo. Ela é a igualdade, o sinal de igual; a realidade é o que está do lado direito da equação. E não importa o que seja ela.

Ainda não conseguimos raciocinar retirando o sinal da igualdade da nossa mente. Talvez a vida e a realidade não sejam uma equação. Se não for, não tem sentido pensar de forma comparativa. Sim, pensar em igualdade é comparar. E toda forma de comparação vai encontrar, sempre, uma diferença. E exatamente por causa do que você acabou de perceber: somos todos diferentes. E quem pensa a partir da igualdade se reveste do dever, muitas vezes messiânico, de eliminar qualquer tipo de diferença. E a qualquer custo. É por isso que Napoleão fez o que fez. E é por isso que os políticos corruptos tomam de assalto o poder para ali se perpetuarem. No jogo da igualdade criminosa, vale tudo.

Ao longo da história, as atrocidades são tantas que o difícil é encontrar um momento em que elas não foram proeminentes. Em nome da única proposta para fazer emergir as diferenças para primeiro plano, institucionalizaram-se mundialmente os assassinatos e os genocídios. Em nome daquele que pregou a necessidade do respeito e dignidade a essa coisa que nos torna a todos parecidos (não iguais), ainda hoje criminalizam-se indivíduos e comunidades em inúmeras e diversificadas seitas. Se pudessem, retirariam a vida dos seus desiguais. 

Moda = a loucura de fazer todos serem iguais em alguma coisa

Forçar que todos tenham tudo em comum é forçar que sejamos iguais. Todas as tentativas fracassaram porque é forçosamente impossível que isso aconteça. 

Amar é com os desiguais, porque é cuidar e cuidar é carência, necessidade

Deus nos fez à sua imagem e semelhança = Deus é desigual = por isso é infinito = se fosse igual, seria um

Mostrar que apesar de todos os discursos contrários, o fato é que todos somos desiguais. Não há duas pessoas iguais

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Acreditas na Ciência?

A ciência é um fenômeno extremamente paradoxal. E esse paradoxo é percebido de uma forma um tanto quanto precisa, mas que permite cientistas e de não cientistas. Os cientistas veem a ciência de uma forma completamente diferente dos que a veem aqueles que não a têm como seu exercício profissional. Contudo, para que possamos compreender tal paradoxo, é necessário que algumas características científicas sejam compreendidas.

O que distingue a ciência de outros tipos de conhecimento é a aplicação do método científico. O método científico é uma série de etapas, cada qual com seus respectivos procedimentos, que precisam ser seguidas para que a comunidade científica possa aferir a validade daquilo que é "descoberto". Isso quer dizer que toda comunicação de descoberta científica precisa detalhar como o conhecimento foi gerado. Se a comunicação não contiver esse detalhamento, não é ciência.

O método científico é o que permite que os cientistas possam aferir se determinado conhecimento é válido ou não. Um conhecimento é válido quando os seus resultados podem ser reproduzidos nas mesmas circunstâncias em que ele foi gerado. Isso implica na necessidade de se conhecer como cada técnica, procedimento e condições ambientais interferem em cada resultado apresentado. Como essas as técnicas, procedimentos e condições não são universais, suas limitações precisam ser explicitadas para que se conheçam os limites daquela explicação (que chamamos de nível de análise).

O conhecimento científico é sempre limitado. Embora tenha pretensão universal, essa universalidade é limitada em alguns aspectos. Por exemplo, as explicações dos impactos dos investimento na educação sobre a criminalidade são limitados porque não se pode estudar todos os tipos de investimentos e os impactos de cada um desses tipos de investimentos sobre cada um de todos os tipos de criminalidade. Então há um limite daquilo que se pode estudar, assim como há limite na dimensão geográfica do estudo. Por exemplo, não é possível estudar o  impacto do investimento em educação de cada residência ou família sobre os diferentes tipos de crimes praticados pelos seus membros. Como essas, há inúmeras outras limitações em todo tipo de conhecimento científico.

Os conhecimentos científicos diferem entre si. As técnicas, procedimentos, condições ambientais, perspectivas, valores dos cientistas e inúmeras outras coisas interferem nas descobertas. É por esse motivo que uma vacina A funciona de forma limitada, da mesma forma que o que desmotiva psicologicamente algumas pessoas age como fonte motivadora para outras. Isso quer dizer que a ciência não tem e provavelmente nunca terá uma resposta consensual, única, para tudo. Aliás, no que dia que isso fosse possível, seria o fim da ciência. Essa falta de consenso é consequência dos erros que todo estudo científico apresenta, além de suas limitações.

Para ser ciência, há que haver erro. Um erro nada mais é do que a diferença entre a descoberta científica e aquilo que realmente acontece na realidade. A pretensão da ciência é chegar o mais próximo possível na retratação daquilo que acontece realmente, ainda que esteja convicta de que essa possibilidade é remota. Muitas vezes, o desafio é reduzir esse erro, como acontece com as vacinas e sua eficácia. Para que esse erro se minimize, portanto, é preciso refazer e até mesmo destruir o conhecimento existente, mas sempre com a responsabilidade e maturidade de colocar no seu lugar outro mais seguro.

A ciência é esse jogo interminável que se baseia na destruição. Destruir, aqui, não significa acabar, eliminar, fazer deixar de existir. Destruir é um ato e um compromisso de compreender com precisão o que já se sabe, identificar suas falhas e lacunas, e refazer a construção científica. Imagine uma casa com alguns cômodos em determinado espaço físico. Muitas vezes uma sala não está em harmonia com o conjunto, o que força sua reconstrução; noutras vezes se percebe que está faltando um lavabo na sala, que é construído; noutras vezes é necessário que novos ambientes sejam construídos, como uma piscina ou garagem inexistentes. É assim que funciona a ciência: para se melhorar ou se expandir, precisa destruir.

Perceba como agem os cientistas: eles não agem para dar continuidade ao que existe. Quase todos eles dedicam toda a sua vida para destruir o existente para colocar no seu lugar mais aperfeiçoado. E esse aperfeiçoamento leva em consideração todos os conhecimentos existentes sobre aquilo que estudam, com atenção especial para as dissonâncias, que quem não é cientista chama de contradição. Quando um conhecimento científico é dissonante, os cientistas sabem que ali há a carência de uma ponte, há uma lacuna que precisa ser preenchida, um vínculo que precisa ser construído. Se o conhecimento científico foi gerado com a utilização válida do método científico, seu resultado é confiável, não importando o quanto ele é conflituoso com os outros existentes.

Note que o foco da ciência é sempre a redução daquilo que ela fala com aquilo que ela está falando. Se falo sobre a potabilidade da água, aquilo que eu falo da potabilidade da água tem que haver o mínimo de erro em relação à potabilidade da água real, como acontece na realidade. Como os cientistas estão conscientes dessa atitude, precisam desenvolver uma elevada capacidade analítica, que significa ver os detalhes de cada coisa da realidade, e síntese, que quer dizer juntar os detalhes de cada coisa de um jeito que seja demonstrável. É a esse jogo de análise e síntese que faz com que os cientistas não ajam movidos pela crença popular. Os cientistas não creem, eles não têm crença no sentido de ter confiança sobre alguma coisa e acabou.

A ciência é movida pelo saber. Chamamos de saber àquilo que falamos e somos capazes de demonstrar ou fazer. Só sei cozinhar quando eu cozinho, ainda que não gostem da minha comida. Só sei andar de bicicleta quando consigo me locomover sem perigo por algum tempo ou alguma distância. Tudo aquilo que se fala e que não se pode demonstrar ou não se sabe fazer não é considerado científico. Nas comunicações científicas, a demonstração é dada pelo detalhamento do método a partir da descrição de como cada procedimento, técnica e condições ambientais que afetam os resultados. O saber é essa demonstração que outros podem reproduzir e confirmar.

Isso pode parecer desalentador e até mesmo frustrante para muita gente, mas os cientistas não acreditam na ciência. No máximo, eles acreditam desconfiando. Mas a palavra acreditar é muito forte e até mesmo exagerado para representar suas atitudes. O motivo disso é que eles sabem que todo discurso, tudo aquilo que é comunicado (como esse meu texto), é limitado. E a crença é uma instância psíquica que elimina a consideração da possibilidade de falhas e erros. E quando se tem essa atitude, todo e qualquer discurso é apenas mais uma tentativa de se aproximar da realidade, sem que, efetivamente, tenha esse sucesso.

Foi por essa razão que um dos grandes cientistas da atualidade disse que "a crença na ciência" é a atitude mais anticientífica que a humanidade jamais teve. Como a ciência é esse esforço incessante para levar a todas as mentes a compreensão de que as crenças impedem que o saber emerja, colocar em primeiro plano a crença em detrimento dos procedimentos da ciência é ser anticientista efetivamente. Aliás, essa é uma daquelas afirmativas típicas que não são passíveis de serem comprovadas cientificamente. É uma afirmativa de fora do campo científico. Provavelmente veio da filosofia, da religião ou do senso comum, conhecimentos que quase sempre ignoram o que se passa na arena científica.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Quando Começas?

A procrastinação é uma doença. Ela é o fato costumeiro de deixar tudo o que se pode e se deve fazer agora para depois. Procrastinar é adiar. Adiar uma ou outra vez, até que é algo normal na vida de qualquer pessoa. Ela se torna uma doença quando a gente se acostuma a adiar coisas fundamentais para a vida e que, por isso, compromete séria e decisivamente o nosso futuro. Mas por que que isso acontece?

Zizita tinha o hábito de não obedecer aos pais desde a mais tenra idade. Seus pais pediam que ela não deixasse suas roupas no chão, mas a garotinha não obedecia e os pais acabavam desfazendo a bagunça. Na adolescência, não gostava de estudar. Imaginava que quando fosse adulta tomaria rumo na vida. A vida adulta chegou e a garota se convenceu de que ainda era muito jovem para se preocupar com o futuro, e resolveu viver a vida. Viver a vida era se embriagar constantemente e passar dias nas farras. 

O tempo foi passando e agora senhora madura achava que um bom casamento viria, mais cedo ou mais tarde, dada a sua formosura. O tempo passou e Zizita adentrou o mundo da terceira idade esperando que as benesses da aposentadoria por idade, sem contribuição, poderia lhe sorrir, ainda que uns míseros reais lhe fossem dados todos os meses. Não contou com a mudança das regras, que lhe deu as costas. Morreu tal como viveu.

Nossa personagem fictícia não foi disciplinada. E disciplina sempre significa gerenciar a si mesmo. E gerenciar é o desafio de alcançar objetivos a partir do uso comedido e racionalizado daquilo que se tem. Alcançar objetivos é a palavra mágica, que significa ter no futuro aquilo que se deseja agora. Para que um objetivo seja alcançado, portanto, é preciso primeiro delineá-lo, desenhá-lo com exatidão para, em seguida, começar o esforço de concretização. Se o objetivo diário da criança era não deixar suas roupas espalhadas pelo chão, o esforço deveria ser dela, para que ela entendesse que aquele objetivo não seria alcançado sem o seu esforço. 

Mas os pais estragaram tudo ao convencê-la desde a primeira vez que eles poderiam fazer o que a ela foi atribuído, caso ela não o fizesse. E a cada vez que a recusa em obedecer se repetia e os pais faziam a atribuição, mais o cérebro e a mente da garota se convenciam de que bastava recusar que as coisas lhe cairiam do céu. É justamente nessa primeira fase que se instaura a personalidade do indivíduo, como a base sobre qual serão edificados os alicerces, as pilastras do caráter.

A fase da adolescência é a consolidação do que se edificou na infância. Infraestruturas de personalidades satisfatoriamente construídas não encontram muitas dificuldades nos grandes testes que a transição para a fase adulta faz. Se Zizinha estivesse convencida através de experimentos diários de que todos os seus objetivos poderiam ser alcançados pelos milagres de seus esforços, fatalmente perceberia que era possível casar o gozo de momentos alegres da adolescência com a consolidação das bases que lhe trariam tranquilidade na fase adulta.

A prática da disciplina nessas duas fases fariam com que a garota tivesse demonstrações diárias de que é possível fazer sucesso com os diferentes "amigos" e ser aceito por eles (que é o que caracteriza a adolescência) e alcançar sucessos maiores dali em diante. Se foi possível alcançar objetivos na adolescência, bastaria que esforços continuassem sendo enveredados para a construção de uma vida adulta de prosperidade. Estudar ou adquirir habilidades profundas sobre alguma coisa seria a constatação natural de que deveriam receber maiores esforços, maiores investimentos.

O sucesso duradouro e permanente existe. O sucesso passageiro, fugaz, também. O que diferencia um do outro é justamente o quanto foi investido em cada um. Não em forma de dinheiro, apenas. Mas fundamentalmente em forma de tempo. Investir na disciplina e autodisciplina na infância começa a produzir resultados ainda naquela fase, mais o sucesso maior só aparece depois, na adolescência e vida adulta. Se o investimento diário continuar, as fases posteriores inevitavelmente serão de glórias. E isso precisa ser entendido: o investimento é diário. Diariamente é preciso agir.

Zizinha, então, não teria feito investimentos? Não passou toda a sua vida investindo seu tempo? Por incrível que pareça a resposta é "sim". Porém, não investiu em disciplina, nos valores necessários ao sucesso. Não fez, portanto, os investimentos requeridos para alcançar os objetivos desejados. O valor investido (desobediência) levou ao resultado que ele obrigatoriamente vai trazer, que é o fracasso em forma de situações indesejadas. Se eu planto melancia, não posso, jamais, querer colher amendoim.

Mas o que não devemos desconsiderar é que a nossa personagem estava consciente de que deveria trilhar determinado trajeto. E esse trajeto era o de uma vida adulta boa, em que tivesse as benesses do dinheiro e tudo o que eles pode comprar, como bens luxuosos, casas confortáveis, viagens prazerosas e assim por diante. Era isso o que ela e toda a torcida do flamengo deseja. Só que não quis fazer os investimentos, principalmente em forma de tempo e esforço, para tal. Queria os bens, mas não queria ceder os vinténs. E por isso procrastinava. O seu cérebro estava convencido racionalmente da relação custo x benefício, mas a sua alma recusava a aceitar.

Por isso se tornou especialista em procrastinar. Viveu a vida toda se recusando a obedecer o que o cérebro lhe recomendava, mas a sua alma indomada se fechava a todas as recomendações. É que sua alma não aprendeu que é fazendo agora que o amanhã nos traz o que queremos. O cérebro estava pronto para o trabalho, mas sua alma ainda acreditava que a natureza poderia corromper todas as suas leis para atender aos seus caprichos, naquilo que os insensatos chamam de milagres (o que não quer dizer que milagres não existam).

Conheci um indivíduo que levou 18 anos tentando passar no doutorado em economia de uma renomada universidade brasileira. Conseguiu. Uma amiga maravilhosa tentou 25 anos entrar no curso de medicina de uma universidade não tanto famosa. Conseguiu. Outro tentou ser médico, sem sucesso, por 14 anos. Depois trabalhou com outra profissão por 30 anos até se aposentar. Novamente tentou o seu sonho por mais oito anos até conseguir. Esses exemplos mostram que o sucesso pode demorar, mas ele vem, se o esforço e os investimentos continuarem. 

Essas coisas da realidade, da vivência, os procrastinadores desconhecem porque lhes foi barrada a possibilidade de aprendizado na primeira infância. Não é por acaso que praticamente todas as terapias de recuperação deles tem início naquela fase da vida. E o que essas terapias ensinam, afinal? Três coisas.

A primeira é que grandes obras, resultados e sucessos são frutos de pequenos e constantes investimentos diários. São pequenos para que se possa acompanhar tanto a execução quanto o aprendizado que o pequeno resultado que se conquista. Aqui vem a constatação de que o grande sucesso é a somatória desses inúmeros pequenos sucessos ao longo da vida. Constante porque os investimentos não podem parar. Não basta eu saber calcular teorema de Pitágoras. É preciso que eu aprenda inúmeras formas de usá-lo para resolver os meus problemas práticos do dia a dia. E a cada vez que eu obtenho sucesso eu reforço as fundações da minha confiança, em mim e nos outros; a cada vez que eu fracasso sou obrigado a ver onde eu errei para que eu não erre mais. O procrastinador teme o fracasso, por isso não investe. Essa insegurança é consequência de sua desobediência infantil.

A segunda é que não há sucesso mágico que seja permanente. Alguém pode ganhar na loteria e ficar milionário de uma hora para a outra. Tudo bem. Mas ninguém consegue ser um líder admirado por todos da noite para o dia. É preciso anos e anos de investimentos em aprendizados e prática desses aprendizados até que muita gente ateste tanto a honestidade quanto a acurácia de suas decisões e orientações. Nenhum indivíduo pobre financeiramente consegue ser bilionário e assim permanecer sem muita força de vontade e determinação. É preciso fazer agora o que se pode deixar para amanhã. O procrastinador só vê o hoje. Afinal, amanhã ninguém garante que ele estará vivo, argumenta.

A terceira é que tudo tem um custo. Quanto maior for o custo, quanto maiores os valores dos investimentos, maiores tendem a ser os resultados, o sucesso almejado. O procrastinador não investe nos valores adequados que lhe tragam os resultados pretendidos. Como demente, quer ganhar na loteria sem jogar, quer ser um Neymar sem aprender a chutar uma bola, sonha em ser famoso sem ter nenhuma habilidade admirável, quer sucesso sem investimento.

E o que fazer para evitar a procrastinação. Duas estratégias. A Estratégia Alfa diz que aquilo que for difícil de ser feito tem que ser dividido em etapas. É preciso dividir tanto que cada etapa possa ser executada sem grandes dificuldades. A ]Estratégia Beta recomenda aprender todo dia. Aprender não é apenas ouvir falar, mas saber fazer. Aquele que aprende a fazer coisas interessantes todos os dias, de fato, está treinando não procrastinar e, mais do que isso, tendo exemplos concretos de que é o saber que permite fazer coisas interessantes. É justamente esse saber que é negado na primeira infância.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Estranho Amor

O que têm em comum as acusações de "Bolsonaro genocida" e "Luladrão", os desejos de ver alguém apodrecer na cadeia ou imaginar que o outro só ficou rico porque roubou ou faz tráfico de drogas? O que toda crítica, tanto as chamadas construtivas quanto as criminosamente destrutivas, todo ato invejoso, todas as atitudes de ciúmes e todas as fofocas comungam? Pode parecer estranho, mas são todas manifestações de amor. Sim, você não leu errado. Tudo isso são formas de amar. São maneiras estranhas, isso é incontestável, mas são atos de amor. Vejamos o porquê.

A primeira coisa que temos que fazer é saber o que é o amor. Para isso é necessário conhecer a sua fonte, que é o verbo amar. Muita gente acredita piamente que amar é um sentimento, algo que vem do coração. Pode até ser. Mas não é só isso. Quer dizer, amar é muito, mas muito mais do que isso. Talvez o sentimento seja apenas um reflexo tímido do que essa pequena palavra quer dizer e representar. A significação latina realmente diz que amar é um sentimento, mas línguas mais antigas vão além, como é o caso do hebraico e de outras línguas semitas.

Talvez a palavra portuguesa que mais represente com fidelidade o sentido do verbo amar é cuidar. É exatamente essa a significação, por exemplo, do pedido do Cristo para que amássemos ao nosso próximo, a nós e a Deus. Quando cuido de mim, aprendendo e agindo no bem, estou me amando. Quando cuido das pessoas que estão ao meu redor e outros mais além, também estou amando. Quando cuido de cada coisa que Deus fez, também estou amando o Criador. Então amar é fazer alguma coisa, agir, cuidar.

Quando estamos cuidando, estamos demonstrando amor. E quando esse cuidar é muito profundo, um sentimento de bem-estar nos invade e toma conta do nosso coração. É daí que vem a impressão de que o amor é um sentimento, quando, na verdade, é seu reflexo.

E o que seria a ausência do amor? Simples. Se amar é agir, cuidar, fazer alguma coisa, o não amor seria o não agir, o não cuidar, o não fazer alguma coisa, óbvio. Por essa razão, o contrário do amor é a indiferença. E ser indiferente quer dizer não se importar com o outro, não se importar consigo mesmo e nem com Deus. Ser indiferente é não fazer nada, absolutamente nada para nada e para ninguém. Essa é a segunda constatação que se tem que fazer. A primeira é que amar é agir.

Daí advém a conclusão de que o ódio, ciúme, inveja e toda forma de expressão maldosa contra nós mesmos, contra os outros e contra Deus não é desamor, não é indiferença. Quando estamos odiando, acusando, ofendendo, maltratando, enfim, fazendo maldade, não estamos sendo indiferentes. Estamos agindo. Estamos amando. Sim, isso é amor (lembre-se de que o contrário do amor é a indiferença). Só que é um amor enlouquecido, que perdeu a razão. É torpe, desditoso, sórdido. Mas é amor.

A ciência tradicional (como a psicologia e as neurociências) e as ciências espirituais mostram que a inveja é o desejo de ter o que o outro tem. E por essa razão é que odiamos quem tem o que eu não tenho e quero ter. O mesmo acontece com o ciumento, que tem medo de perder aquilo que ele imagina que é dele, como o milhão na sua conta bancária ou os prazeres de seu cônjuge. Em ambos os casos não há indiferença. Há ação. Ação desditosa, maldosa, sem dúvida, mas é ação.

O que acontece é que, na verdade, as pessoas odeiam não é quem tem aquilo que ela não tem, como no caso do ciumento, mas o que ela tem. Eu não odeio o João, que tem um milhão de reais em sua conta bancária. Eu odeio não ter um milhão na minha conta. José não sofre por causa de Maria. Seu sofrimento é motivado pela possibilidade (quase sempre fantasiosa) de perder a esposa. Ele tem medo da possibilidade, não de Maria.

É o que acontece com os que acusam Bolsonaro e Lula. Eles não odeiam Bolsonaro ou Lula. Eles odeiam não fazer e não ter o que esses dois irmãos têm. Se eles tivessem, não odiariam. A acusação de um e de outro é apenas subterfúgio do cérebro em busca de um culpado para aquilo que eu gostaria de ter, ser, fazer, enfim, praticar. É isso, na verdade, o que eles amam ou gostariam de amar.

Todo ódio, toda maldade, realizada ou manifesta em formas de acusações é sempre uma manifestação de desejo, como diz a psicanálise. É um amor que enlouqueceu porque quem odeia coloca essa possibilidade de amar (de ser presidente, de falar incivilidades como um é acusado, de roubar, conforme as acusações contra o outro) na ordem do impossível. Se fosse possível, procuraria um caminho para materializar a possibilidade. Como se vê incapaz, acusa, grita, ladra.

Alguém poderia perguntar, com toda razão, se é lícito deixar o maldoso impune, já que toda acusação é uma forma estranha, esquisita de amar. A resposta também é simples: esse é uma competência exclusiva da justiça, ainda que ela seja uma iniciativa sua. Outra coisa que pode ser feito é agir sempre, em todas as situações, de uma forma impecável, irrepreensível, dentro da lei e de forma amorosamente louvável. Mas, feito o seu papel ditosamente amoroso, continuar a esbravejar é manifestar seu amor sordidamente enlouquecido.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Acreditas na Ciência?

Parece haver uma grande contradição em um fato que tem se tornado corriqueiro: pessoas desesperadas querendo se apegar à verdade da ciência. Isso faz emergir da mente dos cientistas pelo menos duas indagações. A primeira é relativa à possibilidade de se acreditar em alguém ou algo que não se conhece. A segunda é ainda mais desoladora: como buscar a verdade em algo que não a pode garantir? Aqui vamos esclarecer essas duas indagações para que se possa decidir ou não acerca da possibilidade (ou não) de se acreditar na ciência.

Vejamos a possibilidade de se acreditar naquilo que não se conhece. Conhecer é explicar. Um conhecimento é uma explicação qualquer sobre alguém ou sobre alguma coisa. Quando digo que João é uma pessoa maravilhosa porque está sempre disposto a ajudar as pessoas, estou dando uma explicação da maravilha de João, que reside em sua disposição à generosidade. E quanto mais explicações eu consigo sobre as maravilhas de João e outros aspectos de sua vida, mais conhecimentos eu tenho sobre ele.

Mas não bastam apenas as quantidades de explicações. É preciso que elas tenham qualidade. João está sempre disposto a ajudar a carregar as compras, lavar o carro, limpar a calçada, lavar a casa e lavar as louças. Mas quando ele carrega as compras, quebra os produtos mais frágeis; quando lava o carro, molha os bancos de uma tal forma que eles ficam com cheiro insuportável; quando limpa a calçada, gasta material de higiene demais; e quando lava as louças, quebra a maior parte. Veja: a qualidade da ajuda de João é baixa.

Diante disso, volto novamente à questão: é possível confiar em algo que desconhecemos? É possível confiar na ciência, se não sei como ela funciona, não sei o que ela produz, não sei quem a produz, não sei como ter acesso a ela? Em termos comparativos: é possível confiar em um avião feito de papel, se não sei como ele funciona e nem quem vai pilotá-lo?

A ciência está em todo lugar. Está na política, na gestão pública, nas estrelas, no corpo humano, nas águas, nas árvores, enfim, em praticamente tudo. Quando eu digo que acredito na ciência, estou dizendo que sei como a ciência funciona em todos esses setores das vidas. Por exemplo, a ciência da Administração mostra que eleição não é a forma mais adequada de escolher gestores de organizações. Se as pessoas realmente acreditassem na ciência, não aceitariam as eleições para essa finalidade. 

Disso advém que as pessoas não acreditam ou acreditam na ciência. As pessoas simplesmente a aceitam ou a rejeitam, duas coisas muito diferentes. Acreditar ou não exige conhecimento. E não qualquer conhecimento, naturalmente, mas com a quantidade e a qualidade necessária para estabelecerem um juízo de fato, não de valor. Aceitar é menos oneroso porque é um ato que reflete um querer, vontade. Se eu quero comer laranja, eu aceito comê-la.

A segunda questão é desoladora. A ciência não consegue dar conta da verdade. Melhor ainda: a ciência não tem a mínima preocupação em dizer a verdade porque ela não consegue alcançar a verdade. A razão disso é muito simples: a verdade é uma condição de impossibilidade de erro. A verdade é sempre a perfeição. A explicação perfeita, o conhecimento infalível. E isso a ciência não consegue e não pode dar.

Tanto é assim que, para que um conhecimento possa ser considerado científico, tem que apresentar erro. É isso mesmo. O erro é uma das exigências de todo conhecimento científico porque permite que os outros cientistas (e não as pessoas que não são cientistas) afiram, confirmem ou não, a sua validade. O erro é sempre a diferença entre a realidade e o que supomos que ela seja. Dito de forma um pouco exagerada, é a diferença entre a verdade e o que a ciência diz. Um conhecimento é válido quando essa diferença é pequena e, portanto, aceitável pelos outros cientistas. Aliás, são os cientistas que determinam se um conhecimento é ou não válido.

Por causa justamente da bendita diferença entre a realidade e o que a ciência fala, que chamamos de margem de erro, há inúmeras explicações para o comportamento da mesma coisa. É o caso das vacinas. Tanto é plausível (palavra que quer dizer possibilidade real) que uma vacina tenha 50% de eficácia (palavra que quer dizer alcançar um objetivo, que no caso das vacinas é a imunização) e outra 90%. Tanto é possível que um procedimento pedagógico consiga fazer quase todos os alunos de uma turma serem gênios quanto noutra turma provocar um efeito expressivamente menor). Dito de forma mais clara: a ciência tem inúmeras explicações para a mesma coisa. E essas explicações podem até ser aparentemente contraditórias.

Se as pessoas acreditam na ciência devido a alguma ideia de verdade, estão redondamente enganadas. Se é a verdade que as pessoas procuram o distanciamento da ciência é o ato mais recomendado. Como lida com conhecimentos centrados na ideia de erro, tudo o que a ciência fala é extremamente limitado (outra exigência das explicações científicas) e variado. Assim, se acreditam na ciência, devem abandonar a noção de verdade e abraçar a concepção de probabilidade. E, por extensão, parar com a infantilidade de achar que o que o cientista A fala é a única explicação da ciência, em detrimento do conhecimento produzido pelos cientistas B, C, D e E, que afirma o contrário do que fala o cientista A. No fundo, a contradição é apenas aparente. Fruto justamente daquilo que a ciência tem de mais humano: a imperfeição traduzida na ideia de erro. Mas, apesar dos pesares, ainda é o conhecimento mais confiável que existe.

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Guarda tua Crítica

A crítica é tanto um termo quanto uma atitude que tem enganado a muitos, especialmente nas últimas duas décadas. Em algumas áreas do conhecimento ser crítico ou ter pensamento crítico parece ser o píncaro da glória ou fim a que todo ser pensante deveria alcançar. Consequentemente, quem não é crítico no mínimo não tem uma formação intelectual ou desenvolvimento cognitivo substancioso. Mas será que é isso mesmo? Não estão todos os que se agarram nas garras da crítica presos em uma grande ilusão? 

A palavra crítica vem do latim "critĭcus" que, dentre outras significações, quer dizer apreciação e julgamento. Apreciar é dar o devido valor, reconhecer o valor de alguma coisa, aquilo que ele tem de bom, de substantivo. Enquanto julgamento, o termo está se referindo não ao processo de condenar, de apontar as coisas ruins, mas justamente à capacidade de ver as coisas boas. É que sem a capacidade de julgar, as coisas boas não poderiam ser percebidas e, portanto, apreciadas.

E de onde vem, então, essa preocupação que os que se dizem praticar o pensamento crítico em ver apenas as partes ruins das coisas, das pessoas e do mundo? Da ignorância, simplesmente. Esse desconhecimento, naturalmente, é imperceptível por eles. Eles não desconfiam que têm limitações em conhecimento justamente porque se julgam além da capacidade daqueles que não denunciam como crime grave as falhas dos outros. E o que eles desconhecem? Simples também: que os fatos e fenômenos do mundo nunca têm apenas um lado, apenas uma perspectiva, ângulo ou ponto de vista.

Um amigo, apaixonado pela Revolta da Cabanagem, reuniu centenas de documentos sobre esse episódio histórico. Todas as vezes que ele me relatava uma nova descoberta, ele parecia estar em epifania, na maior das felicidades. O que ele relatava? As maiores atrocidades que eram cometidas durante o conflito. E eu perguntava: "não havia nenhuma pessoinha pelo menos um pouquinho bondosa nesse conflito? Ninguém, ninguém, ninguém?". E ele ficava sem ação. Logo depois ele explicava: a história é feita de tragédia. Ele se dizia um historiador crítico cujos textos só apontavam tragédias em forma de denúncia, consideradas por ele estudos científicos. Evidentemente que o método científico era completamente ignorado.

Tome outro caso, agora de alguém que explicava as subidas e descidas das águas dos rios amazônicos. Em duas ou três páginas havia relatos desse fenômeno natural, extremamente superficiais, e 15 outras denunciando praticamente todo o universo por supostos crimes cometidos contra uma comunidade indígena. Em todo o texto não havia sequer uma única virtude em ninguém que não fossem, naturalmente, os índios que, aliás, eram o oposto de todos os criminosos ali denunciados, ou seja, os índios não apresentavam nenhum vício ou imperfeição.

O entendimento de "Crítica" só é plenamente alcançado quando levada em consideração a palavra "Crise", uma vez que ambas vêm do mesmo verbo grego "krinein". Crise designa um lapso temporal entre dois instantes bem definidos, A e B. Em A, que é anterior a B, a realidade é percebida de um jeito, as pessoas praticam determinados esquemas lógicos para guiarem suas vidas. Em B, a realidade é muito diferente de A porque a realidade mudou como decorrência das mudanças nos esquemas lógicos e valores que sustentaram a realidade A. Tomemos o exemplo do mundo antes e depois da internet e das maravilhas tecnológicas que temos hoje. Praticamente tudo mudou, incluindo os valores familiares e a forma de pensar.

E o que é crise? Crise foi (e muito provavelmente ainda esteja acontecendo) aquele período em que os valores do momento A conviveram simultaneamente com os valores do momento B. Nessa convivência simultânea as pessoas não sabiam (e até hoje muitas não sabem) se baseavam seus pensamentos e ações nos valores do momento A (que ainda não tinha desaparecido) ou nos valores do momento B (que ainda não estava plenamente consolidado). Isso dá um nó na cabeça das pessoas, o que inclui os mais sábios. Crise é exatamente isso: a convivência simultânea de inúmeros valores, dos passados e dos futuros, que não se sabe ao certo aos quais seguir.

É justamente daí que vem a necessidade de se compreender a ideia e a prática de crítica. O indivíduo crítico é aquele que é capaz de avaliar as situações e julgar quais são as boas, aquelas que produzem ações benéficas, para que possa conduzir suas ações a partir delas. Diferentemente de um juiz (que em grego é dito "Krités") que julga as pessoas, o crítico (que em grego é dito "Kritikós") é o que é capaz de julgar não as pessoas, mas as coisas. O crítico não condena. Não condena por quê? Porque sua preocupação é com o bem, não com o mal. Ele sabe que a concentração no mal não leva ao bem. Apenas o bem gera o bem.

Daí vem a questão: existe crítica construtiva ou toda crítica é destrutiva? Sob o ponto de vista de quem se diz crítico ou diz praticar um pensamento crítico ou o que quer que o valha, não há possibilidade de haver crítica construtiva porque a própria forma como agem ou expõem seus pensamentos é destruidora. Não dialogam, acusam. Não pensam, condenam. Não há alguma nuance positiva no outro, apenas negação. Seus saberes e falas são perfeitas, puras expressões da verdade, contra a imperfeição e vícios criminosos dos outros.

O ideal grego de construir na terra a harmonia e a beleza que se via no céu noturno e na natureza foi completamente destruída pela subversão que se fez com a crítica. Não mais Areté, não mais paideia, não mais os mais sublimes ideais efetivamente buscados na prática da construção do bem. Em seu lugar se destaca o perverso, as coisas ruins, as falhas como origem de condenação. O kritikós se fez krités. A crítica se fez condenação sem julgamento.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Isanidade Geral

O ditado diz que de médico e louco todos temos um pouco. Mas, ao que tudo indica, a contemporaneidade parece ter exagerado nisso. Não da parte dos médicos, mas da dos loucos. Em nenhum momento histórico a loucura se fez tão plena e onipresente como agora. Isso não quer dizer, contudo, que ela não existira em profusão anteriormente. O que é inédito é que aquilo que era reservado, privado, delimitado se tornou aberto, público ilimitado. É como se nossa mente fosse atacada pela loucura geral, antes aprisionada nos seus recantos particulares, nos convidando ao bailado insano que tem no ódio a sua forma mais explícita (e imperceptível).

O que é a loucura, se não a ideia inquestionável de que estamos certos e todo o universo está errado? O indivíduo são, por exemplo, quando comete algum desatino fica a se perguntar se está louco. Esse tipo de reflexão é impensável ao insano. Se se questionar, certamente louco não está, diz tanto a psicologia quanto a psicanálise e a psiquiatria. A razão disso é que a autorreflexão (com o perdão do pleonasmo vicioso) é impossível no insano porque a insanidade é justamente esse revestimento da verdade. O louco veste a roupa da verdade. E isso quando ele não se considera a própria roupa e passa se comportar como a encarnação dela.

E a primeira consequência visível no insano é que só ele está certo. Todo o universo está errado. Se o louco vê um casal de namorados comprar uma caixa de cervejas, logo vê algum defeito inaceitável. Se compram camisas de cor laranja, o insano se enfeza porque é incorreto não comprar blusas de cor verde-limão-marciano. Quem compra camisas (e não blusas) cor de laranja certamente é algum alienado reacionário que precisa a ser revolucionário, ainda que seja à base de chicote ou baioneta. É por isso que o insano se vê no dever de mudar o mundo, consertá-lo, colocá-lo no caminho certo, por mais que não tenha ideia do que isso seja.

Mas ele não faz isso por outra razão que não seja o amor. Ah, como o insano é amoroso. Ele ama tanto que sofre demais, chora, perde o sono, se sacrifica. Tudo isso pelo bem do mundo. Sua mentalidade messiânica lhe faz um guerreiro solitário contra o universo conspirador cuja comprovação fascista é o fato de que cada indivíduo teima em ter sua própria individualidade (perdão novamente pelo pleonasmo). Se só ele é amor, porque é a verdade, todos os demais são ódio. E por isso precisam ser combatidos até a morte. A morte, afinal, é o que todos os que não pensam como ele pensa merecem. É preciso exterminar quem ousa pensar diferente para instaurar uma sociedade verdadeiramente democrata, onde todos pensam exatamente a mesma coisa da mesma forma.

Na sociedade mental em que vive, o insano vive efetivamente a democracia que deseja instaurar na realidade. Não suporta o autoritarismo individual, em que cada mente vê e interpreta o mundo a partir do estoque de conhecimentos e experiências que auferiu. Como as pessoas ousam não perceber que a democracia é a melhor coisa que existe, que a política é o caminho que leva àquela perfeição de mundo em que o insano vive e que a crítica sobre os adversários (que são todos os que pensam diferentes) é a principal arma de combate? Respeito à individualidade, tanto de pensamento quanto de ação, admissão de inúmeras formas de exercício da liberdade e necessidade de se pensar sobre qualquer coisa são crimes inaceitáveis à mentalidade verdadeiramente democrata do insano.

Quem pensa como ele ou diferente dele reaparece nos inúmeros adjetivos que o insano cria. Aliás, chega a inventar inúmeros outros significados para palavras já sedimentadas semanticamente. Isso o torna um fabricante inveterado, incontido, de ressignificações, ainda que não tenha ideia do que isso seja. Mas isso não importa porque somente ele sabe tudo e somente ele sabe a solução para tudo. Se o rio está poluído, há sempre um agente-inimigo certeiro da poluição. Se as cidades estão cheias de miseráveis, imediatamente consegue identificar quem são os criminosos. Se as nuvens do céu estão de cor alaranjadas e ele entende que aquilo é algo ruim, automaticamente consegue fazer um retrato falado dos autores reacionários.

Não é difícil imaginar que o insano não pode ser contestado. A contestação é a prova-crime incontestável de que é o outro que é louco. E loucura é algo inadmissível em uma mentalidade sadia, o que explica a necessidade de se alastrar para toda a humanidade a loucura que contagia, as ações que contaminam e os pensamentos que dilaceram. Por mínima que seja a diferença de ver as coisas, o máximo de precaução é necessária para que o mal não se alastre. A sanidade do insano produz a sociedade do medo, que se transforma em pavor, e que é creditado ao outro. O inferno é o outro, história contada e recontada que se transforma em verdade.

Mas talvez o que mais nos dá a garantia de estarmos diante de um insano é a necessidade que ele tem de debater, discutir, refletir, questionar, criticar, enfim, de falar. Sua necessidade de falar é tão grande que se tem a impressão de que se ele não for dono da palavra irá enlouquecer ao quadrado. E como fala o insano. Como fala demais, como é dominado pelas palavras, é incapaz de agir. O insano é aquele que não sabe fazer o que o seu discurso diz. A impressão que se tem é que os significantes vagabundos de que Lacan tanto falava entopem a garganta do insano e o impedem de agir.

Os alemães cunharam um termo que representa algo próximo à loucura e que é inadequadamente traduzida por alienação (Entfremdung). Não é que a palavra em português em si esteja errada, mas o seu significado está. O mais acertado, para efeito de equivalência semântica, pragmática e cultural, seria estranhamento. O insano está fora de si, como se seu corpo estivesse ali fazendo as coisas mas por vontade de outra entidade. Ele estranha o que o seu corpo e sua mente estão fazendo, mas não pode fazer nada. É esquisito, mas é mais ou menos isso. É como se o indivíduo estivesse assistindo às atrocidades (ou benesses) que seu corpo e mente estão fazendo, mas não pudesse fazer nada.

Nessa experiência esquisita que a palavra alienação toma há dois corpos e duas mentes separadas em planos diferentes. É exatamente isso o que quer dizer estranhamento. Não é alguém diferente que tomou de assalto o corpo e a mente do indivíduo insano, alienado. É o próprio corpo e a própria mente que ganharam autonomia para fazer aquilo que os "verdadeiros" corpo e mente não têm controle. É por isso que não se pode imputar responsabilidade civil ou legal ao insano. Seu eu sadio não consegue controlar seu eu doente.

Do ponto de vista da psicanálise, o insano é alguém controlado pelo seu inconsciente (id). Seu ego, que é o barramento que impede a invasão do id, foi completamente rompido. Não há processo civilizatório possível. É por isso que o discurso do louco é um discurso do todo. É sintético, sem capacidade efetiva de análise, de ver as partes e as inúmeras e impensáveis formas de as partes criarem e recriarem continuamente o todo. Por estar fora do mundo é que o insano consegue ver o mundo todo. Só não consegue ver a si mesmo. Por não conseguir ver a si mesmo, confunde-se com o mundo, e com a verdade e com a perfeição. O louco é perfeito no exato instante do seu discurso. Em seguida cai. E se torna o vazio.

Mas o que produz essa insanidade? A incapacidade de ser ver errado. O insano inventa mil narrativas (palavra que ele cria para ressignificar mentira) para contornar seu erro que todos veem, sem saber que para cada mentira inventada terá que inventar outras quando ela for descoberta. Engana-se quem acha que há insanos apenas de esquerda e de direita. Há-os também na ciência, na filosofia, na pederastia, na sodomia, na sonoplastia, nas harmonias, nas sacristias, nas astrologias, enfim, em tudo. A insanidade é universal e omnilateral. Está em tudo e em diferentes tonalidades. Está em todos nós.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

É Só Um Minutinho

Meu vizinho colocou o carro dele na saída da minha garagem. Ele o fez com tanta naturalidade, que me deu a sensação de que nem pensou no que fez. Parece que os ventos da razão não lhe sopraram a possibilidade de que algum carro que estivesse no interior da minha residência precisasse sair e tampouco as luzes da sua consciência puderam iluminar as sombras de sua visão de seu automóvel impedindo a saída. E o incrível é que todo o espaço da frente de sua casa estava limpo e aberto a qualquer estacionamento. Se eu não o conhecesse com certa profundidade, teria todos os motivos para imaginar que ele tivesse feito isso justamente para impedir a minha saída de casa para buscar as crianças na escola.

 E por falar em escola, um segundo exemplo vem de lá. A escola dos meus filhos fica em uma rua isolada de um conjunto habitacional periférico de um bairro da periferia. A rua é tão estreita que dois carros conseguem passar um pelo outro sem tocar apenas com muito cuidado. Assim, dois automóveis não podem ficar estacionados próximos uns dos outros em ambos os lados da rua. A escola fica do lado direito da rua, cuja única saída é para a esquerda com a distância de cerca de quarenta metros da entrada. O perímetro que vai da esquina à saída da rua, à esquerda, deve ter uns 50 metros, que comporta cerca de 12 automóveis para estacionamento temporário. E é aí que está o problema.

A impressão que se tem é que a maioria dos pais de alunos não consegue ver aquele espaço todo para estacionamento temporário. E o que eles fazem? Simplesmente param o carro na frente da entrada da escola e ficam esperando os filhos saírem. Enquanto isso, outros automóveis vão parando e esperando a sua vez de ficar na frente da entrada para que seus filhos possam sair e entrar na escola.

Sabendo disso, chego antes de abrir a escola e coloco o carro próximo à saída da rua, à esquerda. Assim que o portão abre, entrego as crianças e vou embora, antes que o furdunço tenha início. Mas certa vez, para obter dados para saciar minha sede de compreensão dessas coisas bizarras, resolvi deixar o carro na rua principal, bem longe das confusões, e assistir ao que se passava.

Descobri que cada carro ficava obstruindo a passagem da rua por mais ou menos trinta segundos. Como os carros chegavam quase simultaneamente, a fila chegava facilmente aos trezentos metros. E os conflitos pouco a pouco iam surgindo. Festivais de palavrões e ameaças, inclusive com o disparo de arma de fogo.

Você deve estar se perguntando: mas, sim, o que isso quer dizer? Simples: essa é uma demonstração de até onde pode chegar o orgulho humano. O orgulhoso é movido por uma força, muitas vezes inconsciente, de que é superior aos outros, que é mais importante, que tem mais direitos e assim por diante. É preciso que nos concentremos a isso com mais detalhes.

Há orgulhosos que têm consciência do seu orgulho. Têm consciência de que exigem mais poder que os outros, como é o caso de muitos juízes que mesmo fora do horário do expediente querem ser tratados como se em expediente estivessem. Quando há a consciência, o orgulho se torna um indivíduo sórdido, vil, cuja intenção deliberada é prejudicar os outros para que o seu orgulho não seja ferido. É esse orgulho vi, por exemplo, que leva muitos homens a cometer assassinatos de mulheres por ego ferido.

Os dois exemplos que detalhei aqui são atitudes orgulhosas inconscientes. E esse é um problema sério porque tudo o que está armazenado no inconsciente é extremamente difícil de reconhecer. O orgulhoso sórdido sabe, tem consciência de sua sordidez, mas o vizinho e os colegas que nos aviltam a vida com seus orgulhos não percebem o aviltamento.

Quando eu falei ao meu vizinho que ele me fez chegar atrasado à escola por causa do seu carro na saída da minha garagem ele apenas riu e disse que "foi só um minutinho". Ele não tem consciência de que todos os minutos têm exatamente 60 segundos, de maneira que não há minutos maiores e menores. Disse a ele que eu fiquei por exatos 5 minutos batendo na sua porta, depois ele levou exatos 3 minutos para me atender e mais exatos 4 minutos para vestir sua roupa e exatos 3 minutos para tirar o carro, totalizando 15 minutos. Ele ouviu atentamente, sempre sorrindo, sem levar a sério o que eu dizia. Os 15 minutos de vida que ele me tirou não têm a mínima importância. O que tem importância para o orgulhoso é sempre ele, os interesses dele, os objetivos dele, as coisas dele. Os outros e o mundo, que se lixe.

Esse comportamento sórdido é encontrado em todos os lugares onde a vida não tem o mínimo valor, como é o caso do Norte do Brasil. Em lugares onde a lei impera, essas ocorrências são mínimas. E já se contam às centenas as cidades e comunidades em que o respeito predomina sobre o desrespeito. Mas por aqui pelas bandas equatoriais ainda predomina essa tristeza.

Certa vez o cadeirante foi retirado do seu automóvel a pontapés por um orgulhoso porque o irmão com dificuldades de locomoção teria furado a fila e estacionado na vez dele. O orgulhoso viu que ali as vagas eram reservadas, viu o cartão de identificação que atestava a qualificação do cadeirante para estacionar ali mas, ainda assim, achou que aquela vaga era dele, sem nenhuma dificuldade de se locomover, na altura de seus trinta e poucos anos. Seu argumento? Ele iria estacionar ali só um minutinho para pegar a esposa.

Todas as vezes que ouço essa bendita frase me vem uma curiosidade enorme que eu não consigo controlar, que é a de olhar o rosto de quem a pronuncia. "Vou deixar aqui só um minutinho, tá? Já volto". Quando esse aviltamento é realizado com automóveis, geralmente o aviltador deixa o pisca-alerta ligado. Esse aviltador já deu um passo em direção à consciência de seu ato vil. A sinalização é a materialização de que sua consciência já começou a dar sinal de existência.

Outra vez o dono de um minimercado resolveu colocar um vagão de lixo na rampa de acesso da rua para a calçada. Isso impedia que portadores de necessidades e idosos conseguissem andar na calçada, dada a altura da calçada para a rua. Mostrei para ele a dificuldade de uma senhora idosa. Ele sorriu (sempre esse bendito sorriso de sordidez e descaso) e me disse: "é só um minutinho, professor". Daí eu disse que a lei não distingue minutinho de minutão. É proibido e ponto. Aquele vagão ficou lá por mais de oito longos meses.

Não é fácil lidar com o orgulhoso. Tanto é assim que quase todos preferem ignorar essas ocorrências, deixar para lá. Talvez estejam corretos porque mais cedo ou mais tarde cada qual terá a colheita que semeia. Conheci um que encontrou um orgulhoso ainda maior, aquele consciente. Teve o crânio penetrado por seis tiros. Mas eu tenho mania de professor. E professor, também inconsciente ou conscientemente, tem a mania de esclarecer o que supõe não estar claro. E todos esses casos se tornam momentos propícios para levar o esclarecimento aos aviltadores. Talvez essa minha atitude também seja outra forma do orgulho se manifestar.

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Ou Apenas Crês?

 A crença parece ser algo essencialmente humano. Em maior ou menor grau, todos os homens e mulheres viventes ou que já passaram por aqui viveram seus cotidianos baseados em crenças. Alguns creram nos poderes divinos dos trovões e dos fenômenos da natureza, enquanto outros ainda hoje juram de pés juntos que comer pirarucu ou camarão quando se está doente é certeza de agravamento da doença, que pode redundar até em morte. Na Amazônia essa crença chega a englobar todos os peixes sem escama, os chamados peixes-lisos. Note que as crenças não nos impedem de viver. Mas elas precisam ser vencidas para que possamos avançar na nossa intimidade com as coisas do mundo.

Fé e crença são duas coisas diferentes, mas interligadas. A fé é um termo que está vinculado à palavra grega pistis (πιστις), que é também a palavra que dá origem ao conceito episteme. E aqui está o segredo da palavra e da afirmativa do Cristo quando dizia "povo de pouca fé". Esses termos são utilizados para representar um tipo de conhecimento que vem do esforço do indivíduo em saber. Não é algo dado por Deus. É fruto do esforço humano. Tanto é assim que a palavra episteme significa o conhecimento científico, que é aquele confiável porque pode ser demonstrado.

Epistemologia, por extensão, significa o estudo dos conhecimentos que mais se aproximam da realidade. Os conhecimentos científicos são objeto de estudo da epistemologia, que busca apontar seus limites, profundidades, métodos e principalmente as suas lacunas, que são os buracos no tecido científico que ainda não foram tapados, preenchidos. Contudo, originalmente, episteme estava vinculada à ideia de aleteia.

Aleteia designa a ideia de verdade. A verdade seria o fim último a que todo conhecimento busca. Cada episteme é uma tentativa de falar a verdade, de dizer a verdade. Assim, a fé enquanto episteme é um tipo de explicação que muito se aproximaria da verdade, da aleteia. É diferente, então, de um outro tipo de conhecimento, que não é fruto do esforço humano. A razão é simples: ele é herdado.

Esse conhecimento é representado na mentalidade grega pelo doxa. A palavra portuguesa que mais se aproxima do entendimento de doxa é opinião. Opinião é qualquer fala que a gente faz sem se preocupar se ela é verdadeira ou falsa. O doxa não tem compromisso com a verdade. Se tivesse, não seria doxa. Vamos ver uns exemplos.

Quando uma comunidade diz que é remoso comer peixe liso quando a gente está doente, esse é um tipo de conhecimento porque é uma explicação sobre a realidade. Nessa explicação há uma relação de causa-efeito: se comer peixe liso, a doença vai agravar e o doente pode morrer. E essa explicação não é apenas das comunidades primitivas da Amazônia: muitos médicos e dentistas amazônicos, por exemplo, fazem essa recomendação explicitamente, por escrito. Mas os médicos que habitam regiões distantes da Amazônia e do Brasil não fazem isso. Por quê?

Muitos ribeirinhos amazônicos olham o céu de manhã e dizem se vai ou não chover à tarde. A explicação é que a coloração das nuvens têm a ver com a chuva, dizem eles. Não conseguem explicar além disso. Se alguém atento acompanhar os resultados verá que haverá muitos acertos e muitos erros nas previsões. E não adianta qualquer argumento em sentido contrário a essa mentalidade. Dificilmente algum deles acreditará.

Esses são dois exemplos típicos do que se chama doxa. Opinião é todo tipo de explicação que não tem uma forma de comprovação, de demonstração a partir do que chamamos padrões válidos. A gente simplesmente acredita naquilo que falamos porque é o costume, a tradição, enfim, a mentalidade com a qual convivemos que diz e confiamos. É a isso que chamamos de crença: acreditar. Acreditamos simplesmente porque nem percebemos aquilo que dizemos.

É essa a grande matriz da confiança, das crenças: a tradição, o costume, a cultura de um povo. A crença não é algo ruim. Acreditar que existe a mãe do mato não faz mal a ninguém, da mesma forma que admitir a existência do saci-pererê. Mas existem certas crenças que podem trazer consequências danosas. Um exemplo é negar a eficácia de determinados medicamentos, da mesma forma que a crença que diz que se deve pagar sempre na mesma moeda: se recebemos o mal, devemos fazer o mal.

O fato é que ninguém consegue sobreviver sem eliminar o doxa, a opinião, a crença pura. Uma das razões é que a ciência, principal fonte da episteme, só consegue explicar (às vezes de forma muito rudimentar) uma pequena parte da realidade. Quase tudo está ainda por explicar, ainda carece de explicação confiável. E como a gente precisa viver, a gente vai confiando nas nossas intuições, nos conselhos dos pais e amigos, nas recomendações de profissionais (que quase sempre também são movidos mais por crenças do que por episteme), enfim, no que a nossa comunidade considera o certo e o errado.

Há um grande contingente de pessoas, contudo, que tenta submeter boa parte da realidade ao crivo da episteme. Eles não se contentam apenas com as opiniões, porque são falhas. Tentam se guiar mais pela fé, que é a opinião racionalizada, passada pelo crivo da razão, do que pelo instinto bruto, que chamamos de crença. Quando a crença tem uma base sólida, o bem é o que emerge, mas quando não é traz problema.

Cristo disse muitas vezes "Crede em mim". Essa frase foi solicitada porque o Messias sabia que a mente daquele povo não conseguiria entender a explicação real, a episteme, sofre a realidade da qual queriam explicação. Por exemplo, não entendiam como ele curou o cego de nascença. Evidentemente que alguma ciência houve naquele procedimento, Cristo usou alguma episteme. As pessoas queriam saber, mas não havia capacidade cognitiva para tal. Por esse motivo o seu pedido significa o seguinte "se eu explicar, vocês não vão entender. Mas acredita em mim, faz o que eu peço, que vocês vão se dar bem". Aqui está o sentido perfeito das crenças: a gente confia porque alguém que tem o conhecimento sobre aquilo que estamos repetindo falou ou nos disse. E como tem autoridade ou é alguém importante, não tem erro ou problema eu repetir. Ler um ou dois textos comentando um assunto não te dá episteme. Tens que ler tudo o que já foi escrito e conduzir teus próprios experimentos. É preciso muito esforço para que se fuja das crenças.

Aquelas pessoas que apenas creem são como as folhas ao vento e pequenos corpos nas ondas do mar. Podem cair em lugar agradável, mas quase sempre o que lhes reserva é dor e sofrimento. Não é por acaso que a maior parte dos que sofrem são os que têm poucos saberes, pouca episteme. E ter saber não é e jamais será ter anos e anos de escola. É, simplesmente, usar a sua capacidade de compreender as coisas, encontrar lógica e razão no comportamento da realidade. Há iletrados sábios e letrados estúpidos.

Os sábios não se deixam conduzir pelas frases bonitas dos outros, e muito menos concordam com baboseiras só porque foi alguém famoso que disse. Respeitosos, eles ouvem a todos com carinho e atenção, mas tudo submetem ao crivo da razão. Não é porque todo mundo está gritando "Viva o SUS" que ele vai gritar também. Ele vai constatar, por exemplo, que praticamente todo mundo que está gritando isso ficou calado quando o SUS estava sendo desmontado. Ele vai perceber que todo comportamento de crença cega é irracional e gera mais sofrimentos.

Um deles certo dia viu um grupo de pessoas que se consideravam antifascistas gritarem brados a um grupo minoritário. Alguns pedestres que assistiam à manifestação se uniram aos manifestantes. O sábio apenas assistiu, sem desrespeito àquilo tudo. Viu que aquelas pessoas faziam exatamente o que acusavam, inclusive com o punho direito erguido acima da cabeça. É isso o que acontece a todos os que apenas creem: se tornam escravos de seus instintos mais primitivos.

domingo, 23 de maio de 2021

Tens Fé?

 Às vezes eu paro para pensar nas pessoas que se dizem cheias de fé. Recentemente foram alvos das minhas reflexões as que dizem aos quatro cantos do mundo que têm fé na ciência. Estas são aquelas que amiúde postam qualquer coisa e acrescentam "Viva a Ciência". Antigamente eram meus alvos os membros de igrejas. Minha preocupação não era exatamente a pessoa em si, o indivíduo, mas o seu entendimento de fé. Mas o que eu via, os fatos que eu coletava, contradizia abissalmente os discursos que eu lia. Dito de outra forma, o que as pessoas postavam era um verdadeiro contrassenso, algo como "A ciência é uma grande mentira" junto com a assinatura "Viva a ciência". Vejamos isso de perto.

Fé vem do latim fide. Essa também é a origem da palavra fidelidade e fiel. Como o transcurso histórico alterou a significação de fide, quer dizer, multiplicou-a, é possível fazer uma reconstrução reversa do termo para compreender com precisão o que essa palavra significa hoje. Atualmente, fé é confiar, e fidelidade é não trair, não contrariar a confiança de alguém. Guardemos essas duas significações.

A origem latina de fé designa um tipo muito especial de confiança. Essa especialidade é decorrente do fato de que fide é algo incondicional. Quem confia, confia absolutamente. A confiança é de uma ordem tal que pode ser facilmente considerada sinônima de verdade. Isso quer dizer que quem confia incondicionalmente tem fé de uma certa maneira que tudo aquilo que emana da fonte da confiança é considerado verdadeiro. E tudo o que é verdadeiro é inquestionável. Resumindo: quem tem fé não pode desconfiar, apenas executar o conteúdo da confiança.

A fé no sentido moral, que é aquela que se aplica em relação ao outro, tem essa mesma conotação: a verdade. Eu sou fiel e pratico a fidelidade porque seus princípios são incontestáveis. Um desses princípios pode ser o fato de que não traindo obrigo o meu parceiro ou parceira a não trair. Se eu traio, não sou fiel, não consigo aplicar em mim aquilo que eu sustento como fé, como uma atitude verdadeira, digna de confiança.

Vejamos o que acontece, na realidade, fora dos âmbitos compreensivos dos conceitos. É possível ter fé naquilo que não conhecemos? É possível confiar em uma pessoa que não conhecemos? É possível ser fiel a algo ou alguém de que não temos a mínima ideia do que seja? Os resultados das minhas reflexões e análises me levaram a concluir que a resposta a todas essas questões é um grande Não.

O segredo desse mistério não está na língua latina, mas na grega. E vem de um termo maravilhoso: Aleteia. Este termo está presente na afirmativa de Cristo de que ele é o caminho, a verdade e a vida. Essa verdade de que fala Jesus é Aleteia, que significa o que é verdade, que não está escondido, aquilo que é exatamente como a realidade mostra.

Não é difícil compreender, então, que apenas poucas pessoas são capazes de entender os fatos e fenômenos do mundo de forma aproximada de como eles verdadeiramente são. Exemplo. Muitas pessoas acham que a gravidade é uma força que atrai os corpos para o centro da terra. A "verdade" é que a gravidade é a queda das coisas em direção a um corpo mais pesado. A maçã cai da árvore em direção à terra, que é mais pesada. O planeta terra cai em direção ao sol, que é mais pesado, da mesma forma que a lua cai em direção à terra a todo instante. A consequência da queda em direção ao sol são as estações do ano, enquanto as marés e fases da lua são o resultado da queda em direção à terra.

Aleteia é isso: saber o porquê das coisas, desvendar, tirar as vendas dos olhos, ver as coisas do jeito que elas são e não da forma como elas aparecem para nós. Quando a ciência mostrou que seres invisíveis (vírus e bactérias) eram a causa de muitas doenças, muita gente se revoltou. Quando a ciência mostrou a possibilidade de vacinas conterem epidemias, muita gente também se revoltou. Aleteia é sempre uma revolução aos olhos de quem não a compreende.

Quando Cristo disse "Gente de pouca fé" ele estava dizendo que as pessoas tinham pouco conhecimento. Traduzindo para uma linguagem comum, Jesus disse que as pessoas não sabiam como as coisas do mundo acontece e por isso não entendiam o que ele fazia. E quando ele pediu que tivéssemos fé no que ele dizia não estava pedindo para a gente crer nas palavras dele, mas que deveríamos, por nossos próprios esforços, usar a nossa razão e a nossa determinação em conhecer a verdade, em saber tudo de Aleteia. E o que fizemos? As palavras do rabi entrou por um ouvido e saiu pelo outro de quase todos os seres viventes da Terra.

É difícil de acreditar (depois explicarei o que é crença), mas os cientistas são os indivíduos que mais praticam a fé. São os únicos seres capazes de explicar e demonstrar aquilo de que falam. Quando dizem que a terra cai em direção ao sol produzindo a sensação de gravidade, eles mostram o fenômeno tanto matematicamente quanto fisicamente. São capazes de reproduzir o fenômeno para que todos o compreendam (jamais para convencer alguém; cientista não busca convencer ninguém, se não, não teriam fé). E têm fé por causa de duas coisas. Primeiro, porque amam aprender; segundo, porque fazem qualquer coisa para continuar aprendendo.

E o que faz a maior parte da população do planeta? Crê. E por isso são alvos fáceis de qualquer discurso. Qualquer pessoa que fala bonitinho arrasta diversas multidões. Quando alguém fala "Viva a ciência" não está sendo desonesta, mas explicitando apenas a ignorância dela sobre esse área de ação humana. Se ela soubesse que a ciência tem inúmeras explicações válidas para o mesmo fenômeno, não diria isso. E o que ela faria? Ela agiria. E o agir da ciência é sempre o mesmo: estudar, compreender e agir bem. Se gritar por aí, está demonstrando que não entende a ciência.

Mas tem uma coisa a favor do grito. Os cientistas só têm fé na sua ciência. Por exemplo, pouquíssimos, raríssimo, são os cientistas da área médica (e muitos poucos médicos são cientistas) não dão ouvidos para os cientistas da contabilidade e da administração no Brasil, para ficar em apenas duas ciências diferentes. Isso explica em grande parte o caos da saúde no Brasil. Como não sabem lidar construir o futuro agora (coisas de gestores) e tampouco determinar com precisão as entradas e saídas de todos os tipos de recursos de agora para algumas décadas (coisa de contabilidade), acham irrelevante o que essas ciências sabem. Noutras palavras: os cientistas também são serem crentes. Eles só têm fé na ciência que fazem. Noutra oportunidade vou mostrar que lógica, matemática e estatística são os instrumentos com as quais construímos em nós a fé.

Voltando à nossa questão de origem, todos nós somos crentes. Quase ninguém tem fé. E os poucos que têm fé são fiéis apenas àquilo de que se ocupam. Poucos são os cientistas em relação ao total da população do planeta. Poucos são os que seguem fielmente o pedido do Cristo, de aprender e melhorar sempre suas condutas.

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Elevação Moral

Todos nós já temos percorrido algum tanto na escala evolutiva. Alguns estão bem no início, enquanto outros estão um pouco mais avançados. A maioria, pelo que se pode perceber nas ações cotidianas, está nos seus primeiros momentos de aprendizado. Há também um número significativo que já fez alguns percursos. Afinal, como visualizar essa escala evolutiva? Em que altura eu estou hoje?

Certa vez um senhor distinto, calmo, se sentiu ofendido porque uma senhora lhe disse algo constrangedor: que ele precisava tomar um banho devido ao cheiro que estava exalando naquele determinado momento. Com a mesma frieza que lhe era característico, foi até sua casa e voltou minutos depois para se encontrar com a mulher. Sem que ela esperasse, desferiu naquela jovem senhora mais de uma dezena de perfurações com uma faca pontuda. Algo que ela jamais imaginou ofensivo foi o motivo de sua morte.

Esse é um caso extremo de baixa elevação moral. A elevação é tão baixa que o bem mais preciso da vida de alguém, que é a sua própria vida, de nada tem valor. Uma observação factual foi tomada como uma agressão tão grave que não havia outra forma de ser sanada, revista, que não fosse com o fim da existência da agressora. Nesses indivíduos não há distinção entre julgamento de valor de julgamento de valor. O valor é o próprio fato.

Casos menos graves como esses acontecem o tempo todo todos os dias. A diferença é que a reação não é a morte. Pelo menos não se mata mais todas as vezes que isso acontece. Certa vez um aluno estava falando algumas bobagens imaginando estar filosofando e seu colega lhe disse que citar alguém famoso não vale como argumento. Não é porque Pelé ou Ronaldinho Gaúcho indicam determinado creme dental que eu devo confiar neles e comprar o produto. Isso vale para ideias também. 

O aluno se sentiu agredido e reagiu com agressão. Iludido na forma como se expressava passou a criticar o seu colega. Ele não percebeu que dizer que seu colega é feio e pobre não retira o fato de que o que ele tinha falado antes eram bobagens. Se Fulano diz que uma porta é amarela e Beltrano não gostar, ainda que Beltrano diga que Fulano é feio e tenha olhos azuis não retira o fato de que a porta é amarela. Da mesma forma, recorrer a uma autoridade é tão falso argumento ou comprovação quanto recorrer a críticas a alguém e não ao fato.

A mais baixa elevação moral tem isso: o melindre, o se sentir ofendido, agredido por coisas que nada tem a ver com ele. Como se consideram ofendidos, exigem reparações, geralmente em forma de perdão e seu complemento financeiro. Para essas pessoas, dizer que "seu corpo está exalando mau cheiro" ou que "argumentos falaciosos não são válidos" é a mesma coisa que dizer que elas são malcheirosas e falaciosas. Elas tomam aquele fato particular, episódico, como sinônimo delas. Tomam o fato como se fossem elas.

Um estágio mais elevado age diferente porque ele já sabe que a observação não é sobre ele, mas a determinada situação ou fato. Nos nossos exemplos, um indivíduo com esta elevação tomaria a observação da jovem senhora como um fato simples. Em seguida, poderia até confirmar o fato, cheirando-se, para ver se está cheirando mal realmente. Se estivesse, procuraria se lavar, sem qualquer problema. Além disso, os mais elevados desse estágio intermediário, até agradeceriam o alerta daquela bondosa senhora.

No caso do nosso estudante, alguém com mais elevação tomaria a observação como um fato. Ele saberia que o seu colega não estaria lhe fazendo uma acusação, mas uma importante observação sobre os falsos argumentos. Por essa razão, analisaria o que tinha falado para se certificar do alerta do colega. Se não soubesse o que são falácias, procuraria, antes, estudar e aprender sobre elas. Se confirmasse que seu argumento era falacioso, consertá-lo-ia e também agradeceria ao colega, se tivesse mais elevação moral; se não, deixaria tudo como está.

Quem já evoluiu um pouco moralmente não se ofende mais com as observações sobre os fatos do mundo que os outros lhe façam, ainda que esses fatos estejam muito próximo deles, como estar com mal cheiro. Eles podem até ficar constrangidos por estarem naquela situação, mas não ficam agressivos porque não se ofendem. Há uma grande diferença entre estar envergonhado e estar ofendido. Envergonhado é característica de quem já tem elevação; ofensa o é de quem está nos estágios iniciais.

Mas há um estágio em que a elevação moral já é muito significativa. Indivíduos neste estágio não se ofendem e também não se ofendem com as observações que lhes fazem. Reagem imediatamente com um pedido de perdão e procuram sanar ou superar a situação. No nosso primeiro caso, um indivíduo com essa elevação pediria perdão e iria quase que imediatamente se lavar, fazer sua higiene, para que o mal cheiro desaparecesse. Ele sabe que, no fundo, a senhora estava fazendo um pedido com a sua observação. O mesmo procedimento o aluno prepotente teria se tivesse esta elevação: pediria perdão ao seu colega e imediatamente retificaria os seus argumentos. Ele interpretaria a observação como uma solicitação.

Qual é o segredo da elevação moral? Simples: conhecimento aplicado. Os indivíduos com pouco conhecimento sobre a vida e as coisas do mundo têm também dificuldade em agir em conformidade com o que sabem. Confundem informação com conhecimento. Sabem de cor muitos trechos de autores famosos, por exemplo, mas não os utilizam para agirem com nobreza, com beleza, gentileza. Mas, como suas mentes são entidades rigorosas, sabem que essas pessoas, de fato, não sabem o que dizem saber. E quando alguém percebe que elas não sabem o que pensam saber e demonstram isso, reagem desesperadas, agredindo. Confundem o saber sobre alguma coisa com o ser aquele saber.

Pode fazer o teste. Veja algo que você sabe muito. Pode ser cozinhar, nadar, andar de bicicleta, qualquer coisa. Se alguém disser que a comida que você fez não tem sal, você não vai se ofender. Também não vai se ofender se lhe disserem que nada devagar ou deixa o pescoço duro quando anda de bicicleta. Sua mente sabe que estão falando de coisas, não de você. E, mais do que isso, não se ofenderia, caso considerasse uma bobagem o que estão lhe dizendo. E quanto mais você souber sobre essas três coisas, mais imediatamente você vai pedir desculpas e corrigir o que está lhe sendo solicitado. Tudo sem ofensas.

Por isso, uma recomendação. Veja como você reage quando falam para você das coisas do mundo, ainda que seja algo que esteja em você, como a forma de seu raciocínio. Se você se ofende, tem baixa elevação moral; se procura se certificar sobre a veracidade da informação para decidir se conserta ou não, média elevação; se pede perdão pelo infortúnio e corrige imediatamente, alta elevação.

Desculpas

Desculpa é uma palavra que tem ganhado muitos significados ultimamente. Isso é decorrente da enormidade de situações em que ela é empregada. Esse leque de situações varia desde o agressivo "Desculpaí", em tom de ironia, até a mais nobre atitude de reconhecimento de erro e consequente esforço em repará-lo. Duas situações estão centradas no outro e uma no próprio sujeito. Um olhar panorâmico permite ver um continuum no uso desse termo.

Certa vez a um funcionário de uma empresa foi solicitado que procurasse ver se estava tudo bem com o processo de produção de determinado produto muito importante para o seu faturamento. O funcionário voltou, dias depois, e disse verbalmente ao seu superior que estava tudo bem, mas que havia a falta de polietileno. Ficou visível a todos os que estavam na ampla sala da chefia o descontentamento do gerente.

-- Arnaldo, disse ele a um dos seus subordinados, vá à linha de produção e veja se está tudo bem.

Sob o olhar surpreso do funcionário a que a missão tinha sido dada, Arnaldo imediatamente saiu e voltou em poucos minutos. Pedindo permissão, sacou seu smartphone e começou a projetar na parede algumas fotos e vídeos que acabara de fazer sobre a linha de produção. Seu relato, que durou cerca de 15 minutos, apontou oito pontos de excelência do processo de produção, três questões graves sobre relacionamento entre os servidores e uma sobre o estoque de materiais, além de duas recomendações feitas pelo pessoal da área para melhorar o ambiente e o clima organizacionais.

-- Desculpaí, chefe, não pensei que você queria tantos detalhes assim, disser o servidor descomprometido. Aquele foi seu último dia de trabalho na organização.

Esse exemplo mostra o pedido de desculpa no sentido oposto do termo, que tem a finalidade ridicularizar quem descobriu alguma falha sobre seu comportamento. É uma atitude parecida com o que tem aquele que, mesmo sabendo que provocou algum problema, culpa o outro. É o que acontece nos acidentes de trânsito, quando alguém bate a traseira do veículo que lhe está na frente. A intenção é sempre culpar o outro porque "freou bruscamente", mesmo sabendo que a própria lei descreve essa situação como de responsabilidade por quem faz a batida por trás.  Como no caso da ironia, esta situação de culpa direta tem a finalidade de transferir para o outro a carga psíquica pela sua falha ou seu erro.

Essa atitude infantil é decorrente justamente disso: os indivíduos ainda estão nas fases preliminares de seu desenvolvimento moral. Entenda-se a moralidade como as atitudes de ações responsáveis orientadas para não ferir o outro ou lhe provocar dano. Ao culpar os outros pelos seus comportamentos essas atitudes têm o mesmo valor moral do que encontrar argumentos não nobres acerca do que fez imoralmente ou deixou de fazer algo moralmente.

-- Não pude fazer a tarefa de casa porque estava chovendo, professora, diz o aluno que teve dois meses para realizar a avaliação. Desculpa, infantil desculpa.

Encontram-se aqui todos aqueles que acusam os outros sobre os males do mundo. Todos os ativistas se encontram nessa situação. A causa da destruição da floresta é dos outros, assim como apenas os outros são intolerantes (não percebem que essa acusação é atitude intolerante). Isso não quer dizer que essas atitudes sejam ruins ou más, apenas que indivíduos plenamente maduros não agem assim.

O início da maturidade se dá quanto o indivíduo começa a cumprir com suas responsabilidades. Diferente do estágio anterior, aqui a intenção é fazer aquilo que foi prometido. E o que foi prometido é sempre algo digno, que não fere o outro. É um bem.

É um indivíduo maduro porque calcula, planeja deliberadamente aquilo que vai fazer. E quando não consegue cumprir o prometido, analisa o motivo de sua falta e busca evitá-lo. Com base nessa análise, presta contas com quem deveria receber o resultado do seu trabalho e se compromete a retificar o erro e a evitar que volte a acontecer. E cumpre efetivamente esse comprometimento.

-- Chefe, não consegui fazer a tradução do texto porque descobri que não sei lidar com termos específicos da área da medicina. Mas já me matriculei em um curso de tradução de termos médicos e dentro de um mês estarei preparado para enfrentar e superar o desafio de tradução nessa área, disse Marina, diante do fracasso da missão que lhe foi confiada. 

É assim que age alguém que já adentrou essa segunda etapa do desenvolvimento moral. Ele não dá desculpas. Ele explica o motivo que lhe levou a fracassar e aponta uma forma de anulação daquele motivo sob a forma de um projeto. Esse projeto representa a efetiva responsabilidade de agir sempre no sentido de cumprir o que promete.

A terceira fase é a plenitude da maturidade. Aqui, o indivíduo reconhece que o mal que causamos é consequência da nossa imaturidade e que toda imaturidade é a forma através da qual a nossa ignorância se manifesta. Entenda-se ignorância não como estupidez ou sordidez, mas como desconhecimento, falta de saber sobre determinada coisa ou relação de causa-efeito.

Na mente desses indivíduos está marcado que todo efeito tem pelo menos uma causa e toda causa tem pelo menos um efeito. Sua mente é logicamente ordenada e seu espírito é dirigido pela bondade. A bondade é consequência da confirmação empírica de que se um indivíduo sabe agir em conformidade com os princípios da bondade, jamais utilizará princípios da maldade, que é o que provoca sofrimento e dor. Ninguém quer sofrer. E por isso procura diminuir os riscos de sofrer.

A ação desses indivíduo não é o de julgar e condenar o outro pela sua falha, mas pela compreensão de que, se houve falha, houve também algum erro no equacionamento das causas com o resultado pretendido. E se houve falha na intenção deliberada de fazer o bem, não cabe a ideia de culpa e, consequentemente, a condenação. Ao invés disso, esses indivíduos plenamente maduro buscam encontrar uma forma de instruir quem falhou para que não falhe mais. 

Quem é plenamente desenvolvido moralmente pode até agir dessa forma por motivo egoísta. Afinal, se o outro só faz o mal por ignorância, ao instruir-lhe sobre como corrigir suas falhas corre-se menos riscos de sofrer as consequências danosas que os atos falhos podem causar. E o egoísmo se manifesta justamente no interesse individual, particular, egóico, de não querer ser prejudicado pelo outro. Mas esses são casos raros de quem chegou até aqui.

Na prática, quem se desenvolveu moralmente passou a amar as pessoas de fato. Amar não é um sentimento. Amar é ajudar. Amar é a prática efetiva de fazer o bem. Ao instruir o outro, está amando. E está amando também todas as vezes que vir alguém fazendo o mal e não o condenar porque essa atitude compreensiva é a manifestação expressa do seu conhecimento, de que o mal só é produzido pela mente e coração ignorantes. Para esse mal só há um remédio: conhecer. Conhecer e agir.


quarta-feira, 31 de março de 2021

Perspectivas e Percepções

Perspectivas e percepções são duas coisas que comandam a vida das pessoas, mas que são praticamente desconhecidas. Na verdade, são as duas causas primárias de todos os tipos de conflitos domésticos, relacionais e trabalhistas. É urgente, portanto, que se lance alguma luz sobre elas para que possamos dar um passo além na nossa capacidade de convivência e passar a ver nas dissonâncias grandes oportunidades de aprendizado.

Da mesma forma que comportamento gera comportamento, as nossas perspectivas influenciam sobremaneira as nossas percepções. Uma perspectiva é uma posição a partir da qual a gente observa alguma coisa. É como se fosse uma visada, como dizem os topógrafos. Se olho um automóvel a partir do seu lado esquerdo, percebo algumas coisas; como eu não consigo ver nada do que está na frente, atrás e do lado direito, nenhuma percepção eu consigo desenvolver. 

Perceber é ver, enxergar. Mas ver é diferente de olhar. Uma pessoa pode olhar uma figura inúmeras vezes, mas não consegue enxergar um gato cinza por entre as sombras das árvores. Um cientista iniciante pode olhar diversas vezes a mesma massa de dados e não conseguir enxergar praticamente nada ali.

Dependendo da perspectiva, a mesma cena pode ser vista de diferentes formas. Tomemos o caso de uma fotografia de uma casa de campo. Um biólogo vai enxergar com muita clareza coisas sobre os diversos tipos de vidas e ecossistemas que tem ali; o poeta vai ver inúmeras coisas apenas traduzíveis, muito distantemente, em poesias; um profissional de turismo perceberá naquele lugar um possível atrativo turístico. Cada um olha a mesma cena, mas tem diferentes percepções. Elas diferem justamente devido às perspectivas de cada um.

Mas vejamos agora algumas cenas muito comuns nos nossos cotidianos. O primeiro é o de uma bela família que tem um casal de filhos. Ela é muito sonhadora, no sentido exato do termo: sonha, como se estivesse dormindo, mesmo estando acordada. Certo dia, depois que ficou de férias, olhou seriamente para o esposo, e disse "Bem que a gente podia tirar pelo menos dez dias de férias e viajar, né?". O marido, já acostumado com aqueles momentos de delírios da esposa, apenas assentiu com a cabeça e continuou a trabalhar.

Como a esposa via as coisas? Qual era a sua perspectiva? Na sua mente deslizavam suavemente as belas praias e dunas de um lugar paradisíaco. Não fazia parte desse mundo mental um hotel de luxo, apenas um lugar decente e com alguns luxos singelos, se é que isso existe. Imaginava-se em restaurantes legais, com comidas saborosas e, se as crianças deixassem, alguns momentos em alguma boate interessante. Para as crianças pensava em passear nos parques temáticos e aproveitar momentos de descontração em algum shopping center. Evidentemente que algumas comprinhas não deveriam deixar de serem feitas. Nada além disso fazia parte da perspectiva daquela digna senhora. Depois de tanto estudar, era praticamente regra descansar e desfrutar.

Como o marido percebia a proposta da esposa? À medida que ela ia falando, vinha-lhe à tela mental as dificuldades de fechar as contas mensais. Em alguns dias o seu salário (o único da casa) não conseguia cobrir os gastos, quando precisava recorrer às economias que conseguia fazer, principalmente nos meses de recebimento do décimo terceiro salário e um terço de férias. Depois sua mente se concentrava no preço das passagens e hospedagens para quatro pessoas, mais as refeições, custos com passeios e compras. Se ela me ajudasse a economizar um pouco, ou, quem sabe, se encontrasse alguma forma de renda, pensava.

O conflito era inevitável porque o marido não conseguia ver as coisas da perspectiva da mulher, e muito menos a mulher do ponto de vista do marido. A esposa jamais imaginava que aquilo que ela queria custava pelo menos dois meses de salário líquido do marido. Para ela, bastaria entrar na internet e comprar as coisas, como se dinheiro caísse do céu. Aliás, dinheiro era algo que jamais fizera parte de sua tela mental quando deslizavam aquelas maravilhas de lugar onde queria estar. O marido, por sua vez, não conseguia entender como alguém é incapaz de não levar em consideração o custo daquilo que quer.

Mas os conflitos são fenômenos que estão em todos os lugares. E, quase sempre, as causas são as percepções e perspectivas dissonantes. João era o proprietário de uma pequena mercearia em uma periferia de capital amazônica. Como os trabalhos aumentaram, contratou um auxiliar, para ficar responsável pela estocagem e reposição de produtos. Luiz vivia com a cabeça na lua, reclamava João. O tempo todo precisava ser chamado a atenção porque alguma coisa fizera errado. Além do mais, chegava quase sempre exatamente na hora de abrir o comércio e queria sempre sair antes do horário.

João via em Luiz alguém que, no futuro, poderia ser um bom sócio. O jovem possuía o maior valor que o pequeno empresário sempre estimou, que é a honestidade. Sua perspectiva mostrava que em alguns anos o comércio ia crescer bastante e seria necessária a abertura de várias filiais na cidade. E quem mais poderia ser seu sócio no empreendimento que alguém honesto? Por isso percebia em Luiz aquele que o ajudaria a concretizar seu sonho.

Luiz, por outro lado, efetivamente era honesto. Sabia disso. Mas aceitou o emprego na mercearia porque precisava de dinheiro para o que mais gostava de fazer: treinar em academia e se mostrar para as mulheres. Se dependesse dele, jamais acordaria às seis da manhã, passar mais de uma hora dentro de um ônibus e ficar o dia inteiro em pé carregando produtos, todo suado e fedido. Estava ali por alguns momentos, dizia.

As pessoas maduras buscam entender a perspectiva do outro para entender as percepções que ele tem, mas sem pretender alterá-las. É algo mais ou menos assim: como você vê isso ou aquilo? Uma perspectiva ou percepção nada tem de certo ou errado. É apenas uma percepção e uma perspectiva que se relacionam. Nada mais do que isso. Se a mulher é sonhadora, paciência. Se o marido raciocina a partir da viabilidade financeira da diversão, também precisa ser compreendido. É a perspectiva deles com suas respectivas percepções.

Ninguém consegue mudar a percepção de ninguém. Apenas a própria pessoa consegue mudar a forma de ver as coisas ao mudar o seu ângulo de visão, a sua visada, a sua perspectiva. E todas as vezes que se faz isso, deixa-se de ver no outro um crápula ou criminoso. E deixa-se de lado o pedantismo de imaginar que a perspectiva do outro é limitada ou coisa assim, muito comum hoje em dia.

Aliás, todos os regimes totalitários, por exemplo, só aceitam uma única perspectiva e, portanto, uma única percepção. E regime totalitário não diz respeito apenas a governos, a países, mas também a relações entre marido e mulher e mãe e filhos. Regime vem do verbo reger, o que significa que o totalitarismo é regido por uma única visão do mundo. É o que acontece com os feministas, machistas, hedonistas, comunistas, capitalistas, fascistas, antifascistas e todo mundo que vê no outro, no que é diferente dele, a imagem do mal.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Pavio Curto

Ter pavio curto parece ser a característica de muita gente por aí. Mas a experiência tem mostrado que grande parte disso é fruto apenas da imaginação de quem não conhece de forma mais apurada quem tem seu pavio reduzido. Em tempo, pavio curto é como são denominados os indivíduos que se descontrolam com muita facilidade. O descontrole lhes é tão instantâneo que se tem a impressão de que é o próprio corpo que lhes domina. Palavrões e agressões físicas são as formas mais visíveis de reconhecer um pavio curto. Mas será que é sempre assim?

Nos meus tempos de infância, havia um certo senhor, lá pelas alturas dos seus sessenta e poucos anos, que no final da tarde passava pela parte de trás da sede do Aningal. Ali os moleques se reuniam para jogar futebol. Era aquela cerimônia: primeiro os mais novos, a partir das três da tarde; depois os mais velhos, em torno das quatro e meia. Próximo das cinco horas, quando os mais novos ainda não tinham ido para suas casas e os mais velhos já estavam se preparando para jogar, aquele senhor aparecia.

Ele tinha cerca de um metro e meio de altura. Não era pardo, como a maioria dos amazônidas, e se vestia com calças compridas e camisas mangas curtas sóbrias, discretas. Para se proteger do sol inclemente amazônico, mesmo e principalmente naquela hora da tarde, portava pequeno chapéu de palha, já um pouco surrado pelo tempo, protegendo-lhe sua pequena cabeça, harmonizada com seu corpo físico reduzido.

Quando era visto, a molecada toda se assanhava e cada um tomava o seu lugar. Uns ficavam por trás e outros, pela frente, com distância maior que dez metros, aproximadamente. E logo alguém perguntava, alto, em tom de deboche:

- Quer vender o chapéu?

Enquanto outro moleque da posição diferente, completava:

- Quanto quer no chapéu?

Aquele senhor, ao ouvir a primeira pergunta, se enchia de furor e partia para cima dos moleques, que corriam se divertindo. Logo que ouvia a segunda pergunta, o velhinho deixava se voltava para os outros. E ficavam nessa sordidez por algum tempo, até que algum adulto interviesse ou o velhinho se cansasse, prosseguindo seu caminho.

Há o caso também de uma senhora de idade que se enfurecia com os moleques. Ela tinha uma fisionomia de amargura, olhar triste. Andava cabisbaixa por causa de algum problema de coluna que a idade certamente tinha produzido, ou pelo menos ajudado a intensificar. Provavelmente também era sexagenária. E andava com um pedaço de madeira, parecendo um cabo de vassoura, que muitas vezes usava como apoio. Seus amigos e familiares a chamavam de Maroca. Não sei se era esse o seu nome ou uma forma amorosa de Maria.

Quando passava e os moleques a viam, gritavam:

- Ei, saiúda!!!

A pobre senhora se descontrolava imediatamente. Manuseava o pedaço de madeira como se fosse uma arma, um tacape, tentando acertar algum moleque. Provavelmente seria capaz de machucar alguém, mas nunca a vi fazer. Ainda é vívida na minha lembrança o seu rosto enfurecido, como se uma arma poderosa lhe tivesse acertado a alma. Seu corpo apenas parecia reagir àquela dor profunda que aquelas palavras provocavam.

Esses dois seriam típicos exemplos de pavios curtos. Mas será que são realmente? Será que existem pessoas que possam ser assim denominados? Ou será que o pavio curto não é característica de quase toda a população do planeta, incluindo você?

O homem do chapéu, para a família dele, era a pessoa mais doce do mundo. Nunca machucou ninguém, nunca espancou nenhum de seus filhos, coisa bastante habitual na educação familiar amazônica. Jamais chamou palavrão para ninguém. Sempre fôra uma pessoa solícita, disposta a ajudar quem dele precisasse, sem nada cobrar por isso. Sua vida foi de agricultor e se mudou para a cidade quando a economia baseada na juta se desfez em Alenquer. 

Mas de onde vinha o seu enfurecimento, o seu pavio curto? Vinha do fato de não aceitar a falta de respeito que era achincalhar alguém de idade. Sua trajetória moral sempre foi de respeito aos mais velhos. O irmão mais novo respeitando o mais velho, que respeitava os pais, que respeitava os avós, assim em cadeia. Um vivia em favor outro, como sempre praticou. Sua base moral era tão forte que o fazia se descontrolar.

No caso da Maroca, algo muito parecido acontecia. Quando ela estava junto dos seus, sempre foi muito doce, cativante, carente de atenção e carinho. Sempre foi muito respeitadora e humilde. Tão humilde que muitas vezes falava com os outros de cabeça abaixada, em sinal de profundo respeito. É como se o interlocutor fosse uma pessoa muito importante para ela, uma autoridade. Novamente, aqui, merecia respeito todas as pessoas, principalmente aquelas que lhe davam atenção, carinho e respeito. Novamente, aqui, era a força moral que induzia o seu comportamento.

Uma coisa acendia o pavio, o desrespeito. Mas outra coisa é surpreendente: o tempo que levou para que o pavio fosse aceso. O homem do chapéu não ficou furioso do dia para a noite, e muito menos Maroca, ao ser chamada de saiúda. Levou tempo. Foi somente depois de muita insistência, de inúmeras cenas de falta de respeito, que ambos começaram a se enfurecer. É a velha máxima: água mole em pedra dura, tanto bate até que o pavio encurtece.

Mas isso não aconteceu apenas com o senhor do chapéu e com a Maroca. Acontece com todo mundo. Conheço muita gente que se separou do marido e da mulher porque não aguentava tanta lamentação todas as horas do dia. Um dia o pavio encurtece. Sei de muita gente dócil que cometeu assassinato porque não suportou tanta infernização por parte do assassinado. Já vi gente amorosa se descontrolar porque não aguentou tantas agressões físicas. Ser pavio curto, ao que tudo indica, é sinal de ser humano na integralidade de suas imperfeições. Alguns demoram para explodir. Outros explodem de forma suave. Mas quase todos explodem.

Recentemente tivemos uma comprovação escancarada dessa humanidade, cometida por uma alta autoridade. Isso apenas prova que o pavio curto é característica que não escolhe cor, sexo, idade, escolaridade, posição social e outras características que não sejam espirituais (não confundir com religiosidade, por favor). Aliás, os governantes brasileiros são tão achincalhados pelos seus adversários, principalmente através das mídias e imprensa, que é raro não explodirem. E isso vale para quem se diz de direita, esquerda, centro, alto, baixo ou qualquer posição do espectro e planos políticos. Só para lembrar, que isso levou Getúlio Vargas e centenas de outros políticos ao suicídio, coisas que almejam os achincalhadores.

Mas há pessoas que, simplesmente, não têm pavio. São seres muito evoluídos. São tão evoluídos que respondem toda agressão, qualquer que seja ela, com atos de amor. Amor mesmo, de verdade, sem fingimento. Mas esse é um caso para outra postagem, assim como outros indivíduos ainda mais raros e superiores em amorosidade, que são os angelicais.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

O Imperativo da Gestão

Esse período de pandemia talvez seja o mais rico em novos aprendizados que já tivemos em toda a história. A maior delas, infelizmente, apenas é percebida pelos grandes cientistas, que é a necessidade de se começar o pensamento e o conhecimento dos procedimentos científicos na primeira infância. Esse será um esforço de não tentar mais barrar o desenvolvimento natural das habilidades genéticas que a maioria de nós traz, que é o de procurar explicações e soluções para o que não compreendemos. O segundo é o imperativo da gestão. Explico.

A ideia de imperativo é a combinação da obrigatoriedade com a necessidade. Contudo, para que essas duas palavras esquisitas sejam entendidas, é mais recomendável que comecemos explicando o que é gestão. Começaremos com exemplos, explorando seus diversos matizes compreensivos.

Certo dia, em uma de minhas aulas para alunos calouros de medicina, perguntei a cada um deles, dentre outras coisas importantes para o planejamento da disciplina, por que tinham escolhido aquele curso. Mais da metade deles responderam algo como "quero ser dono de hospital", "pretendo ser um grande dirigente na área da saúde pública" ou "quero ter meu próprio consultório". Os outros alunos falaram coisas voltadas para a prática da medicina, como "curar as pessoas", "encontrar cura para determinadas doenças" e assim por diante. Eu já tinha recebido muitas respostas similares com alunos de engenharia e direito, por exemplo.

O que essas respostas têm, digamos, de incomuns é o fato de que aqueles alunos talvez estivessem no curso errado. Quem quer ser dono de hospital, ter seu próprio negócio ou dirigir instituições deveria cursar administração. Ou então cursar medicina, engenharia, direito ou qualquer curso de sua vocação, mais administração. A administração serve, nesses casos particulares, para que o futuro profissional seja capaz de gerenciar sua própria vocação, sua vida e seu destino.

Certamente aqueles alunos e futuros profissionais não sabiam que precisavam de conhecimentos gerenciais para que pudessem saber como agir no exercício de suas profissões. Provavelmente estivessem desconfiados de que administração lida, em primeiro lugar, com alcançar objetivos, em saber para onde se está caminhando, onde se quer chegar. Mas jamais imaginariam que há inúmeras formas e procedimentos técnicos para escolher o objetivo mais adequado para determinadas situações. E aprender isso demanda anos, muito tempo. Não cabe em uma disciplina de 80 horas, como tentam fazer crer certas instituições.

Em inúmeras ocasiões, ex-alunos de outros campos me procuram com a mesma preocupação. Foram nomeados ou eleitos dirigentes de alguma coisa. O que fazer? Qual é a primeira coisa que um gerente de loja tem que fazer? O que um prefeito tem que fazer em primeiro lugar? Não sabem, certamente. Não foram treinados para isso. Foram formados para advogar, analisar instalações elétricas ou cuidar de idosos. Mas manusear recursos para alcançar objetivos que não existem, como no caso da maior parte dos municípios amazônicos, jamais. Nem sabem o que é isso. Confundem recursos com dinheiro.

Vamos esclarecer as coisas. Gerenciar é um conjunto de etapas que precisam ser seguidas para que os recursos disponíveis possam ser transformados em objetivos. Primeira tradução: administração não se faz de uma hora para outra, é feita em etapas. Essas etapas são: planejamento, organização, direção e controle. Segunda tradução: administração lida com recursos, que são tudo aquilo que o gestor precisa para fazer alguma coisa. Se é preciso fazer merenda escolar, os recursos são pão, queijo, presunto, suco, copos, pratos, talheres, fogão, gás e toda uma enormidade de coisas. Veja que não falamos em dinheiro. A razão disso é que dinheiro, em última análise, não é recurso (Dinheiro é meio de troca. Mas deixemos isso para lá). Terceira tradução: objetivos são as coisas que queremos realizar, os produtos que queremos produzir.

Depois de organizado os recursos, é hora de lidar com o mais difícil dos recursos, que é a força de trabalho. É preciso saber lidar com as pessoas para que elas transformem os recursos naquilo que se pretende realizar. Se queremos merenda, sem os esforços das pessoas nenhuma merenda vai sair. E não adianta pensar em robôs. Ainda com eles é necessário que haja pelo menos uma pessoa para cuidar dele. E isso se faz com motivação (a pilha das pessoas descarrega, às vezes muito rápido), liderança (e não mandar, como quase todo mundo pensa) e comunicação (todo bom gestor é um mestre do diálogo, como sempre demonstrou meu amado irmão e líder Antônio Venâncio Castelo Branco, saudoso reitor do Instituto Federal do Amazonas). É preciso esquematizar com as pessoas como vamos trabalhar para gerar os resultados pretendidos.

A última etapa do processo gerencial, na verdade, não é um término, mas um constante retorno: controle. Controlar nada tem a ver com mandar nas pessoas e tampouco controlar a vida delas. Os gestores controlam recursos, resultados e processos. É preciso controlar os recursos porque eles são raros, e se não forem controlados, não vão produzir os resultados desejados. Sem alcançar resultados, não há gestão. Gestão é a arte de fazer coisas, gerar resultados. E processos são as etapas que a gente percorre para fazer alguma coisa. Quanto mais etapas, mais longo o processo e mais caro, por exemplo.

O controle é feito em quatro etapas. A primeira é a padronização: precisamos saber como queremos os resultados, como vamos fazer as coisas e com que quantidade de recursos. A segunda é a mensuração: precisamos contar quantas coisas foram feitas para que o total pretendido não seja ultrapassado e nem tampouco a qualidade seja inferior à definida. A terceira é a avaliação, que é a comparação do que foi produzido com o que foi planejado. E a quarta é o replanejamento, que nada mais é do que consertar aquilo que saiu errado através do replanejamento do processo de produção, do processo de gestão.

Por incrível que pareça, eu tentei ser o mais sucinto possível e usei a linguagem mais popular existente, para que eu pudesse ser compreendido. Mas sei que dificilmente alguém entendeu bem. Isso é normal. Os administradores levam pelo menos 4 anos para compreender essa lógica e pelo menos igual período para aprenderem a colocá-la em prática. E aprendem diferentes formas de fazer isso. Por exemplo, esse esquema geral é aplicado a finanças (gestão financeira), materiais (gestão de materiais), pessoas (gestão de pessoas), meio ambiente (gestão ambiental) e centenas de outros campos, se não milhares deles. E cada um tem suas peculiaridades, suas distinções.

Agora eu te pergunto: você acha que teu prefeito, sem formação gerencial, é realmente capaz de gerenciar sua cidade? Que o diretor da sua escola, que é formado em pedagogia, tem conhecimentos de estratégias organizacionais (que exige raciocínio simultâneo de dezenas de áreas diferentes) suficientes para fazer de tua escola uma das melhores do país? Que o dono do hospital, que é médico, é capaz de te oferecer um serviço da qualidade que um gestor faria?

Mas o fato é que são essas pessoas que estão dirigindo grupos, instituições e organizações nos municípios e estados mais atrasados do País. Não que isso não aconteça em outros países. Acontece, sim, até nos mais ricos. Mas a concorrência de lá age rápido destruindo a organização que eles dirigem, colocando tudo nos devidos lugares. Mas já que eles estão dirigindo, e tendem a continuar por alguns anos mais, é necessário que comecemos já a preparar esses futuros dirigentes.

Imperativo significa que "não tem jeito": gente estranha à área de gestão vai continuar querendo gerenciar. E não queremos que as pessoas sob o comando dela se prejudiquem. Então é preciso começar a ensinar gestão a elas desde crianças, em doses homeopáticas. Podemos começar com a tendência natural que as crianças têm de fazer o bem e ensinar que esse deve ser o grande e maior objetivo de suas vidas. Gerenciar é alcançar objetivos. E todo objetivo tem que ser sempre um bem.

Ao longo do ensino fundamental podemos ensinar a ideia de recursos. São necessários recursos para tudo, principalmente para fazer o bem. Uma oração é um bem e a disposição e vontade de orar são os recursos. Nessa fase a finalidade é fazer com que as pessoas descubram a infinidade de recursos que estão à sua disposição e que não são usados. Tempo é recurso, fraternidade também; um sorriso é um recurso incalculável, assim como ouvir com atenção.

No ensino médio poderão ser ensinadas diferentes formas de escolher o bem a ser produzido e a forma mais adequada de uso de recursos. Principalmente para criar o novo necessário. Um novo cenário onde dormimos, um novo ambiente onde convivemos, um novo tipo de relacionamento mais cordial, uma nova forma de esperança e inúmeras maneiras inusitadas de amar.

Todos deveriam entrar no ensino superior apenas quando tivessem aprendido a amar. E nada mais interessante para fazer a seleção desses novos universitários do que um portfólio de suas grandes realizações desde a mais tenra idade. Todos os que soubessem amar teriam que ser admitidos. O amor não ocupa espaço porque é infinito. Sua missão na universidade seria única: inventar novas formas de amar. Nada de disciplinas isoladas e sem sentido. Na verdade, haveria apenas uma: superar desafios.

Quando falamos "necessidade" queremos dizer justamente isso: é necessário dar sentido à vida, ao viver, à vivência associada. E a vida só tem sentido quando dirigida ao bem do outro. A vida é alteridade. O outro é fundamental não para eu me exibir ou fazer ostentação, mas para o exercício da solidariedade e da caridade. São esses os tesouros dos novos tempos, que as sociedades tanto almejam, que as pessoas clamam enlouquecidas, mas que não sabem como produzi-los.

Como a pandemia tem mostrado, a gestão é fundamental. Sem ela não há futuro, o presente se desfaz e as esperanças se transformam em flagelos. E o primeiro alvo de todo o processo de gestão é a própria vida de quem deseja ser feliz de verdade. A vida do gestor é a grande embarcação que ele precisa aprender a comandar ante os mares enfurecidos do tempo presente rumo à segurança do cais do futuro que todos desejamos.

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...