quinta-feira, 29 de abril de 2021

Desculpas

Desculpa é uma palavra que tem ganhado muitos significados ultimamente. Isso é decorrente da enormidade de situações em que ela é empregada. Esse leque de situações varia desde o agressivo "Desculpaí", em tom de ironia, até a mais nobre atitude de reconhecimento de erro e consequente esforço em repará-lo. Duas situações estão centradas no outro e uma no próprio sujeito. Um olhar panorâmico permite ver um continuum no uso desse termo.

Certa vez a um funcionário de uma empresa foi solicitado que procurasse ver se estava tudo bem com o processo de produção de determinado produto muito importante para o seu faturamento. O funcionário voltou, dias depois, e disse verbalmente ao seu superior que estava tudo bem, mas que havia a falta de polietileno. Ficou visível a todos os que estavam na ampla sala da chefia o descontentamento do gerente.

-- Arnaldo, disse ele a um dos seus subordinados, vá à linha de produção e veja se está tudo bem.

Sob o olhar surpreso do funcionário a que a missão tinha sido dada, Arnaldo imediatamente saiu e voltou em poucos minutos. Pedindo permissão, sacou seu smartphone e começou a projetar na parede algumas fotos e vídeos que acabara de fazer sobre a linha de produção. Seu relato, que durou cerca de 15 minutos, apontou oito pontos de excelência do processo de produção, três questões graves sobre relacionamento entre os servidores e uma sobre o estoque de materiais, além de duas recomendações feitas pelo pessoal da área para melhorar o ambiente e o clima organizacionais.

-- Desculpaí, chefe, não pensei que você queria tantos detalhes assim, disser o servidor descomprometido. Aquele foi seu último dia de trabalho na organização.

Esse exemplo mostra o pedido de desculpa no sentido oposto do termo, que tem a finalidade ridicularizar quem descobriu alguma falha sobre seu comportamento. É uma atitude parecida com o que tem aquele que, mesmo sabendo que provocou algum problema, culpa o outro. É o que acontece nos acidentes de trânsito, quando alguém bate a traseira do veículo que lhe está na frente. A intenção é sempre culpar o outro porque "freou bruscamente", mesmo sabendo que a própria lei descreve essa situação como de responsabilidade por quem faz a batida por trás.  Como no caso da ironia, esta situação de culpa direta tem a finalidade de transferir para o outro a carga psíquica pela sua falha ou seu erro.

Essa atitude infantil é decorrente justamente disso: os indivíduos ainda estão nas fases preliminares de seu desenvolvimento moral. Entenda-se a moralidade como as atitudes de ações responsáveis orientadas para não ferir o outro ou lhe provocar dano. Ao culpar os outros pelos seus comportamentos essas atitudes têm o mesmo valor moral do que encontrar argumentos não nobres acerca do que fez imoralmente ou deixou de fazer algo moralmente.

-- Não pude fazer a tarefa de casa porque estava chovendo, professora, diz o aluno que teve dois meses para realizar a avaliação. Desculpa, infantil desculpa.

Encontram-se aqui todos aqueles que acusam os outros sobre os males do mundo. Todos os ativistas se encontram nessa situação. A causa da destruição da floresta é dos outros, assim como apenas os outros são intolerantes (não percebem que essa acusação é atitude intolerante). Isso não quer dizer que essas atitudes sejam ruins ou más, apenas que indivíduos plenamente maduros não agem assim.

O início da maturidade se dá quanto o indivíduo começa a cumprir com suas responsabilidades. Diferente do estágio anterior, aqui a intenção é fazer aquilo que foi prometido. E o que foi prometido é sempre algo digno, que não fere o outro. É um bem.

É um indivíduo maduro porque calcula, planeja deliberadamente aquilo que vai fazer. E quando não consegue cumprir o prometido, analisa o motivo de sua falta e busca evitá-lo. Com base nessa análise, presta contas com quem deveria receber o resultado do seu trabalho e se compromete a retificar o erro e a evitar que volte a acontecer. E cumpre efetivamente esse comprometimento.

-- Chefe, não consegui fazer a tradução do texto porque descobri que não sei lidar com termos específicos da área da medicina. Mas já me matriculei em um curso de tradução de termos médicos e dentro de um mês estarei preparado para enfrentar e superar o desafio de tradução nessa área, disse Marina, diante do fracasso da missão que lhe foi confiada. 

É assim que age alguém que já adentrou essa segunda etapa do desenvolvimento moral. Ele não dá desculpas. Ele explica o motivo que lhe levou a fracassar e aponta uma forma de anulação daquele motivo sob a forma de um projeto. Esse projeto representa a efetiva responsabilidade de agir sempre no sentido de cumprir o que promete.

A terceira fase é a plenitude da maturidade. Aqui, o indivíduo reconhece que o mal que causamos é consequência da nossa imaturidade e que toda imaturidade é a forma através da qual a nossa ignorância se manifesta. Entenda-se ignorância não como estupidez ou sordidez, mas como desconhecimento, falta de saber sobre determinada coisa ou relação de causa-efeito.

Na mente desses indivíduos está marcado que todo efeito tem pelo menos uma causa e toda causa tem pelo menos um efeito. Sua mente é logicamente ordenada e seu espírito é dirigido pela bondade. A bondade é consequência da confirmação empírica de que se um indivíduo sabe agir em conformidade com os princípios da bondade, jamais utilizará princípios da maldade, que é o que provoca sofrimento e dor. Ninguém quer sofrer. E por isso procura diminuir os riscos de sofrer.

A ação desses indivíduo não é o de julgar e condenar o outro pela sua falha, mas pela compreensão de que, se houve falha, houve também algum erro no equacionamento das causas com o resultado pretendido. E se houve falha na intenção deliberada de fazer o bem, não cabe a ideia de culpa e, consequentemente, a condenação. Ao invés disso, esses indivíduos plenamente maduro buscam encontrar uma forma de instruir quem falhou para que não falhe mais. 

Quem é plenamente desenvolvido moralmente pode até agir dessa forma por motivo egoísta. Afinal, se o outro só faz o mal por ignorância, ao instruir-lhe sobre como corrigir suas falhas corre-se menos riscos de sofrer as consequências danosas que os atos falhos podem causar. E o egoísmo se manifesta justamente no interesse individual, particular, egóico, de não querer ser prejudicado pelo outro. Mas esses são casos raros de quem chegou até aqui.

Na prática, quem se desenvolveu moralmente passou a amar as pessoas de fato. Amar não é um sentimento. Amar é ajudar. Amar é a prática efetiva de fazer o bem. Ao instruir o outro, está amando. E está amando também todas as vezes que vir alguém fazendo o mal e não o condenar porque essa atitude compreensiva é a manifestação expressa do seu conhecimento, de que o mal só é produzido pela mente e coração ignorantes. Para esse mal só há um remédio: conhecer. Conhecer e agir.


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Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...