segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Isanidade Geral

O ditado diz que de médico e louco todos temos um pouco. Mas, ao que tudo indica, a contemporaneidade parece ter exagerado nisso. Não da parte dos médicos, mas da dos loucos. Em nenhum momento histórico a loucura se fez tão plena e onipresente como agora. Isso não quer dizer, contudo, que ela não existira em profusão anteriormente. O que é inédito é que aquilo que era reservado, privado, delimitado se tornou aberto, público ilimitado. É como se nossa mente fosse atacada pela loucura geral, antes aprisionada nos seus recantos particulares, nos convidando ao bailado insano que tem no ódio a sua forma mais explícita (e imperceptível).

O que é a loucura, se não a ideia inquestionável de que estamos certos e todo o universo está errado? O indivíduo são, por exemplo, quando comete algum desatino fica a se perguntar se está louco. Esse tipo de reflexão é impensável ao insano. Se se questionar, certamente louco não está, diz tanto a psicologia quanto a psicanálise e a psiquiatria. A razão disso é que a autorreflexão (com o perdão do pleonasmo vicioso) é impossível no insano porque a insanidade é justamente esse revestimento da verdade. O louco veste a roupa da verdade. E isso quando ele não se considera a própria roupa e passa se comportar como a encarnação dela.

E a primeira consequência visível no insano é que só ele está certo. Todo o universo está errado. Se o louco vê um casal de namorados comprar uma caixa de cervejas, logo vê algum defeito inaceitável. Se compram camisas de cor laranja, o insano se enfeza porque é incorreto não comprar blusas de cor verde-limão-marciano. Quem compra camisas (e não blusas) cor de laranja certamente é algum alienado reacionário que precisa a ser revolucionário, ainda que seja à base de chicote ou baioneta. É por isso que o insano se vê no dever de mudar o mundo, consertá-lo, colocá-lo no caminho certo, por mais que não tenha ideia do que isso seja.

Mas ele não faz isso por outra razão que não seja o amor. Ah, como o insano é amoroso. Ele ama tanto que sofre demais, chora, perde o sono, se sacrifica. Tudo isso pelo bem do mundo. Sua mentalidade messiânica lhe faz um guerreiro solitário contra o universo conspirador cuja comprovação fascista é o fato de que cada indivíduo teima em ter sua própria individualidade (perdão novamente pelo pleonasmo). Se só ele é amor, porque é a verdade, todos os demais são ódio. E por isso precisam ser combatidos até a morte. A morte, afinal, é o que todos os que não pensam como ele pensa merecem. É preciso exterminar quem ousa pensar diferente para instaurar uma sociedade verdadeiramente democrata, onde todos pensam exatamente a mesma coisa da mesma forma.

Na sociedade mental em que vive, o insano vive efetivamente a democracia que deseja instaurar na realidade. Não suporta o autoritarismo individual, em que cada mente vê e interpreta o mundo a partir do estoque de conhecimentos e experiências que auferiu. Como as pessoas ousam não perceber que a democracia é a melhor coisa que existe, que a política é o caminho que leva àquela perfeição de mundo em que o insano vive e que a crítica sobre os adversários (que são todos os que pensam diferentes) é a principal arma de combate? Respeito à individualidade, tanto de pensamento quanto de ação, admissão de inúmeras formas de exercício da liberdade e necessidade de se pensar sobre qualquer coisa são crimes inaceitáveis à mentalidade verdadeiramente democrata do insano.

Quem pensa como ele ou diferente dele reaparece nos inúmeros adjetivos que o insano cria. Aliás, chega a inventar inúmeros outros significados para palavras já sedimentadas semanticamente. Isso o torna um fabricante inveterado, incontido, de ressignificações, ainda que não tenha ideia do que isso seja. Mas isso não importa porque somente ele sabe tudo e somente ele sabe a solução para tudo. Se o rio está poluído, há sempre um agente-inimigo certeiro da poluição. Se as cidades estão cheias de miseráveis, imediatamente consegue identificar quem são os criminosos. Se as nuvens do céu estão de cor alaranjadas e ele entende que aquilo é algo ruim, automaticamente consegue fazer um retrato falado dos autores reacionários.

Não é difícil imaginar que o insano não pode ser contestado. A contestação é a prova-crime incontestável de que é o outro que é louco. E loucura é algo inadmissível em uma mentalidade sadia, o que explica a necessidade de se alastrar para toda a humanidade a loucura que contagia, as ações que contaminam e os pensamentos que dilaceram. Por mínima que seja a diferença de ver as coisas, o máximo de precaução é necessária para que o mal não se alastre. A sanidade do insano produz a sociedade do medo, que se transforma em pavor, e que é creditado ao outro. O inferno é o outro, história contada e recontada que se transforma em verdade.

Mas talvez o que mais nos dá a garantia de estarmos diante de um insano é a necessidade que ele tem de debater, discutir, refletir, questionar, criticar, enfim, de falar. Sua necessidade de falar é tão grande que se tem a impressão de que se ele não for dono da palavra irá enlouquecer ao quadrado. E como fala o insano. Como fala demais, como é dominado pelas palavras, é incapaz de agir. O insano é aquele que não sabe fazer o que o seu discurso diz. A impressão que se tem é que os significantes vagabundos de que Lacan tanto falava entopem a garganta do insano e o impedem de agir.

Os alemães cunharam um termo que representa algo próximo à loucura e que é inadequadamente traduzida por alienação (Entfremdung). Não é que a palavra em português em si esteja errada, mas o seu significado está. O mais acertado, para efeito de equivalência semântica, pragmática e cultural, seria estranhamento. O insano está fora de si, como se seu corpo estivesse ali fazendo as coisas mas por vontade de outra entidade. Ele estranha o que o seu corpo e sua mente estão fazendo, mas não pode fazer nada. É esquisito, mas é mais ou menos isso. É como se o indivíduo estivesse assistindo às atrocidades (ou benesses) que seu corpo e mente estão fazendo, mas não pudesse fazer nada.

Nessa experiência esquisita que a palavra alienação toma há dois corpos e duas mentes separadas em planos diferentes. É exatamente isso o que quer dizer estranhamento. Não é alguém diferente que tomou de assalto o corpo e a mente do indivíduo insano, alienado. É o próprio corpo e a própria mente que ganharam autonomia para fazer aquilo que os "verdadeiros" corpo e mente não têm controle. É por isso que não se pode imputar responsabilidade civil ou legal ao insano. Seu eu sadio não consegue controlar seu eu doente.

Do ponto de vista da psicanálise, o insano é alguém controlado pelo seu inconsciente (id). Seu ego, que é o barramento que impede a invasão do id, foi completamente rompido. Não há processo civilizatório possível. É por isso que o discurso do louco é um discurso do todo. É sintético, sem capacidade efetiva de análise, de ver as partes e as inúmeras e impensáveis formas de as partes criarem e recriarem continuamente o todo. Por estar fora do mundo é que o insano consegue ver o mundo todo. Só não consegue ver a si mesmo. Por não conseguir ver a si mesmo, confunde-se com o mundo, e com a verdade e com a perfeição. O louco é perfeito no exato instante do seu discurso. Em seguida cai. E se torna o vazio.

Mas o que produz essa insanidade? A incapacidade de ser ver errado. O insano inventa mil narrativas (palavra que ele cria para ressignificar mentira) para contornar seu erro que todos veem, sem saber que para cada mentira inventada terá que inventar outras quando ela for descoberta. Engana-se quem acha que há insanos apenas de esquerda e de direita. Há-os também na ciência, na filosofia, na pederastia, na sodomia, na sonoplastia, nas harmonias, nas sacristias, nas astrologias, enfim, em tudo. A insanidade é universal e omnilateral. Está em tudo e em diferentes tonalidades. Está em todos nós.

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