quinta-feira, 29 de abril de 2021

Elevação Moral

Todos nós já temos percorrido algum tanto na escala evolutiva. Alguns estão bem no início, enquanto outros estão um pouco mais avançados. A maioria, pelo que se pode perceber nas ações cotidianas, está nos seus primeiros momentos de aprendizado. Há também um número significativo que já fez alguns percursos. Afinal, como visualizar essa escala evolutiva? Em que altura eu estou hoje?

Certa vez um senhor distinto, calmo, se sentiu ofendido porque uma senhora lhe disse algo constrangedor: que ele precisava tomar um banho devido ao cheiro que estava exalando naquele determinado momento. Com a mesma frieza que lhe era característico, foi até sua casa e voltou minutos depois para se encontrar com a mulher. Sem que ela esperasse, desferiu naquela jovem senhora mais de uma dezena de perfurações com uma faca pontuda. Algo que ela jamais imaginou ofensivo foi o motivo de sua morte.

Esse é um caso extremo de baixa elevação moral. A elevação é tão baixa que o bem mais preciso da vida de alguém, que é a sua própria vida, de nada tem valor. Uma observação factual foi tomada como uma agressão tão grave que não havia outra forma de ser sanada, revista, que não fosse com o fim da existência da agressora. Nesses indivíduos não há distinção entre julgamento de valor de julgamento de valor. O valor é o próprio fato.

Casos menos graves como esses acontecem o tempo todo todos os dias. A diferença é que a reação não é a morte. Pelo menos não se mata mais todas as vezes que isso acontece. Certa vez um aluno estava falando algumas bobagens imaginando estar filosofando e seu colega lhe disse que citar alguém famoso não vale como argumento. Não é porque Pelé ou Ronaldinho Gaúcho indicam determinado creme dental que eu devo confiar neles e comprar o produto. Isso vale para ideias também. 

O aluno se sentiu agredido e reagiu com agressão. Iludido na forma como se expressava passou a criticar o seu colega. Ele não percebeu que dizer que seu colega é feio e pobre não retira o fato de que o que ele tinha falado antes eram bobagens. Se Fulano diz que uma porta é amarela e Beltrano não gostar, ainda que Beltrano diga que Fulano é feio e tenha olhos azuis não retira o fato de que a porta é amarela. Da mesma forma, recorrer a uma autoridade é tão falso argumento ou comprovação quanto recorrer a críticas a alguém e não ao fato.

A mais baixa elevação moral tem isso: o melindre, o se sentir ofendido, agredido por coisas que nada tem a ver com ele. Como se consideram ofendidos, exigem reparações, geralmente em forma de perdão e seu complemento financeiro. Para essas pessoas, dizer que "seu corpo está exalando mau cheiro" ou que "argumentos falaciosos não são válidos" é a mesma coisa que dizer que elas são malcheirosas e falaciosas. Elas tomam aquele fato particular, episódico, como sinônimo delas. Tomam o fato como se fossem elas.

Um estágio mais elevado age diferente porque ele já sabe que a observação não é sobre ele, mas a determinada situação ou fato. Nos nossos exemplos, um indivíduo com esta elevação tomaria a observação da jovem senhora como um fato simples. Em seguida, poderia até confirmar o fato, cheirando-se, para ver se está cheirando mal realmente. Se estivesse, procuraria se lavar, sem qualquer problema. Além disso, os mais elevados desse estágio intermediário, até agradeceriam o alerta daquela bondosa senhora.

No caso do nosso estudante, alguém com mais elevação tomaria a observação como um fato. Ele saberia que o seu colega não estaria lhe fazendo uma acusação, mas uma importante observação sobre os falsos argumentos. Por essa razão, analisaria o que tinha falado para se certificar do alerta do colega. Se não soubesse o que são falácias, procuraria, antes, estudar e aprender sobre elas. Se confirmasse que seu argumento era falacioso, consertá-lo-ia e também agradeceria ao colega, se tivesse mais elevação moral; se não, deixaria tudo como está.

Quem já evoluiu um pouco moralmente não se ofende mais com as observações sobre os fatos do mundo que os outros lhe façam, ainda que esses fatos estejam muito próximo deles, como estar com mal cheiro. Eles podem até ficar constrangidos por estarem naquela situação, mas não ficam agressivos porque não se ofendem. Há uma grande diferença entre estar envergonhado e estar ofendido. Envergonhado é característica de quem já tem elevação; ofensa o é de quem está nos estágios iniciais.

Mas há um estágio em que a elevação moral já é muito significativa. Indivíduos neste estágio não se ofendem e também não se ofendem com as observações que lhes fazem. Reagem imediatamente com um pedido de perdão e procuram sanar ou superar a situação. No nosso primeiro caso, um indivíduo com essa elevação pediria perdão e iria quase que imediatamente se lavar, fazer sua higiene, para que o mal cheiro desaparecesse. Ele sabe que, no fundo, a senhora estava fazendo um pedido com a sua observação. O mesmo procedimento o aluno prepotente teria se tivesse esta elevação: pediria perdão ao seu colega e imediatamente retificaria os seus argumentos. Ele interpretaria a observação como uma solicitação.

Qual é o segredo da elevação moral? Simples: conhecimento aplicado. Os indivíduos com pouco conhecimento sobre a vida e as coisas do mundo têm também dificuldade em agir em conformidade com o que sabem. Confundem informação com conhecimento. Sabem de cor muitos trechos de autores famosos, por exemplo, mas não os utilizam para agirem com nobreza, com beleza, gentileza. Mas, como suas mentes são entidades rigorosas, sabem que essas pessoas, de fato, não sabem o que dizem saber. E quando alguém percebe que elas não sabem o que pensam saber e demonstram isso, reagem desesperadas, agredindo. Confundem o saber sobre alguma coisa com o ser aquele saber.

Pode fazer o teste. Veja algo que você sabe muito. Pode ser cozinhar, nadar, andar de bicicleta, qualquer coisa. Se alguém disser que a comida que você fez não tem sal, você não vai se ofender. Também não vai se ofender se lhe disserem que nada devagar ou deixa o pescoço duro quando anda de bicicleta. Sua mente sabe que estão falando de coisas, não de você. E, mais do que isso, não se ofenderia, caso considerasse uma bobagem o que estão lhe dizendo. E quanto mais você souber sobre essas três coisas, mais imediatamente você vai pedir desculpas e corrigir o que está lhe sendo solicitado. Tudo sem ofensas.

Por isso, uma recomendação. Veja como você reage quando falam para você das coisas do mundo, ainda que seja algo que esteja em você, como a forma de seu raciocínio. Se você se ofende, tem baixa elevação moral; se procura se certificar sobre a veracidade da informação para decidir se conserta ou não, média elevação; se pede perdão pelo infortúnio e corrige imediatamente, alta elevação.

Desculpas

Desculpa é uma palavra que tem ganhado muitos significados ultimamente. Isso é decorrente da enormidade de situações em que ela é empregada. Esse leque de situações varia desde o agressivo "Desculpaí", em tom de ironia, até a mais nobre atitude de reconhecimento de erro e consequente esforço em repará-lo. Duas situações estão centradas no outro e uma no próprio sujeito. Um olhar panorâmico permite ver um continuum no uso desse termo.

Certa vez a um funcionário de uma empresa foi solicitado que procurasse ver se estava tudo bem com o processo de produção de determinado produto muito importante para o seu faturamento. O funcionário voltou, dias depois, e disse verbalmente ao seu superior que estava tudo bem, mas que havia a falta de polietileno. Ficou visível a todos os que estavam na ampla sala da chefia o descontentamento do gerente.

-- Arnaldo, disse ele a um dos seus subordinados, vá à linha de produção e veja se está tudo bem.

Sob o olhar surpreso do funcionário a que a missão tinha sido dada, Arnaldo imediatamente saiu e voltou em poucos minutos. Pedindo permissão, sacou seu smartphone e começou a projetar na parede algumas fotos e vídeos que acabara de fazer sobre a linha de produção. Seu relato, que durou cerca de 15 minutos, apontou oito pontos de excelência do processo de produção, três questões graves sobre relacionamento entre os servidores e uma sobre o estoque de materiais, além de duas recomendações feitas pelo pessoal da área para melhorar o ambiente e o clima organizacionais.

-- Desculpaí, chefe, não pensei que você queria tantos detalhes assim, disser o servidor descomprometido. Aquele foi seu último dia de trabalho na organização.

Esse exemplo mostra o pedido de desculpa no sentido oposto do termo, que tem a finalidade ridicularizar quem descobriu alguma falha sobre seu comportamento. É uma atitude parecida com o que tem aquele que, mesmo sabendo que provocou algum problema, culpa o outro. É o que acontece nos acidentes de trânsito, quando alguém bate a traseira do veículo que lhe está na frente. A intenção é sempre culpar o outro porque "freou bruscamente", mesmo sabendo que a própria lei descreve essa situação como de responsabilidade por quem faz a batida por trás.  Como no caso da ironia, esta situação de culpa direta tem a finalidade de transferir para o outro a carga psíquica pela sua falha ou seu erro.

Essa atitude infantil é decorrente justamente disso: os indivíduos ainda estão nas fases preliminares de seu desenvolvimento moral. Entenda-se a moralidade como as atitudes de ações responsáveis orientadas para não ferir o outro ou lhe provocar dano. Ao culpar os outros pelos seus comportamentos essas atitudes têm o mesmo valor moral do que encontrar argumentos não nobres acerca do que fez imoralmente ou deixou de fazer algo moralmente.

-- Não pude fazer a tarefa de casa porque estava chovendo, professora, diz o aluno que teve dois meses para realizar a avaliação. Desculpa, infantil desculpa.

Encontram-se aqui todos aqueles que acusam os outros sobre os males do mundo. Todos os ativistas se encontram nessa situação. A causa da destruição da floresta é dos outros, assim como apenas os outros são intolerantes (não percebem que essa acusação é atitude intolerante). Isso não quer dizer que essas atitudes sejam ruins ou más, apenas que indivíduos plenamente maduros não agem assim.

O início da maturidade se dá quanto o indivíduo começa a cumprir com suas responsabilidades. Diferente do estágio anterior, aqui a intenção é fazer aquilo que foi prometido. E o que foi prometido é sempre algo digno, que não fere o outro. É um bem.

É um indivíduo maduro porque calcula, planeja deliberadamente aquilo que vai fazer. E quando não consegue cumprir o prometido, analisa o motivo de sua falta e busca evitá-lo. Com base nessa análise, presta contas com quem deveria receber o resultado do seu trabalho e se compromete a retificar o erro e a evitar que volte a acontecer. E cumpre efetivamente esse comprometimento.

-- Chefe, não consegui fazer a tradução do texto porque descobri que não sei lidar com termos específicos da área da medicina. Mas já me matriculei em um curso de tradução de termos médicos e dentro de um mês estarei preparado para enfrentar e superar o desafio de tradução nessa área, disse Marina, diante do fracasso da missão que lhe foi confiada. 

É assim que age alguém que já adentrou essa segunda etapa do desenvolvimento moral. Ele não dá desculpas. Ele explica o motivo que lhe levou a fracassar e aponta uma forma de anulação daquele motivo sob a forma de um projeto. Esse projeto representa a efetiva responsabilidade de agir sempre no sentido de cumprir o que promete.

A terceira fase é a plenitude da maturidade. Aqui, o indivíduo reconhece que o mal que causamos é consequência da nossa imaturidade e que toda imaturidade é a forma através da qual a nossa ignorância se manifesta. Entenda-se ignorância não como estupidez ou sordidez, mas como desconhecimento, falta de saber sobre determinada coisa ou relação de causa-efeito.

Na mente desses indivíduos está marcado que todo efeito tem pelo menos uma causa e toda causa tem pelo menos um efeito. Sua mente é logicamente ordenada e seu espírito é dirigido pela bondade. A bondade é consequência da confirmação empírica de que se um indivíduo sabe agir em conformidade com os princípios da bondade, jamais utilizará princípios da maldade, que é o que provoca sofrimento e dor. Ninguém quer sofrer. E por isso procura diminuir os riscos de sofrer.

A ação desses indivíduo não é o de julgar e condenar o outro pela sua falha, mas pela compreensão de que, se houve falha, houve também algum erro no equacionamento das causas com o resultado pretendido. E se houve falha na intenção deliberada de fazer o bem, não cabe a ideia de culpa e, consequentemente, a condenação. Ao invés disso, esses indivíduos plenamente maduro buscam encontrar uma forma de instruir quem falhou para que não falhe mais. 

Quem é plenamente desenvolvido moralmente pode até agir dessa forma por motivo egoísta. Afinal, se o outro só faz o mal por ignorância, ao instruir-lhe sobre como corrigir suas falhas corre-se menos riscos de sofrer as consequências danosas que os atos falhos podem causar. E o egoísmo se manifesta justamente no interesse individual, particular, egóico, de não querer ser prejudicado pelo outro. Mas esses são casos raros de quem chegou até aqui.

Na prática, quem se desenvolveu moralmente passou a amar as pessoas de fato. Amar não é um sentimento. Amar é ajudar. Amar é a prática efetiva de fazer o bem. Ao instruir o outro, está amando. E está amando também todas as vezes que vir alguém fazendo o mal e não o condenar porque essa atitude compreensiva é a manifestação expressa do seu conhecimento, de que o mal só é produzido pela mente e coração ignorantes. Para esse mal só há um remédio: conhecer. Conhecer e agir.


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