quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Referenciais Invertidos

Temos uma prática que parece natural, mas que nos traz muitos sofrimentos. É o hábito de nos comparar com os outros. O problema não é a comparação em si, que muito nos pode beneficiar, se feita de forma inteligente, mas a forma como procedemos. Esse procedimento provoca uma inversão na realidade, de maneira que vemos a aparência das coisas e as imaginamos como reais.

Maria vivia reclamando de José, seu marido. Acostumou-se a reclamar de uma forma tal, que se tornou um hábito. Reclamava quando ele trabalhava muito com tanta intensidade de quando ele não saía para trabalhar. Reagia com ódio ante qualquer tentativa do marido em fazê-la sorrir e tomava essas iniciativas como grosseria. Quando trocava algumas palavras com o parceiro, era para acusá-lo como responsável por toda a negatividade de sua vida.

Certo dia, um surto de sobriedade ventilou a mente da esposa. Algumas de suas amigas pareciam muito felizes e isso contribuía para aumentar sua infelicidade. Por que só ela sofria? - se perguntava. Decidida a deixar para traz a infelicidade, foi procurar o caminho para isso a partir de suas amigas. Aprenderia com elas a ser feliz também.

Liduína foi a primeira a ser consultada. Diante da pergunta da amiga, a esposa de cabelos ruivos deu uma imensa gargalhada. Nós, felizes? - surpreendeu-se a amiga visitada. Imagina, completou, que aquele cachorro do Zezu vive me traindo toda semana com umas colegas do trabalho. Ele pensa que eu não sei, mas eu vejo as mensagens que elas mandam para ele no celular. Enquanto a amiga falava, a esposa que se dizia infeliz pensava no seu caso e na confiança que seu marido tinha de lhe entregar o celular sem ressalvas. E estava convicto da sua fidelidade.

Tempos depois encontrou com Marcelina voltando da escola dos filhos. E diante da pergunta, a outra amiga respondeu com lágrimas nos olhos. Após enxugar as lágrimas, a amiga afrodescendente começou a relatar as várias agressões físicas que sofre quando o esposo chega bêbado em casa. E isso estava sendo bastante frequente nos últimos meses. Surpresa, Maria lembrava do marido, que não bebia e, mesmo ante as frases ácidas que recebia costumeiramente, jamais deu sinais de agressão.

Será que até Zenaide, pensou, teria uma vida infeliz, como as outras amigas? Novamente surpreendida, a amiga relatava as insuportáveis acusações de traidora que o marido lhe fazia, movido pela desconfiança do ciúme. Não podia olhar para ninguém na rua. Não tinha celular. Não podia nem falar com a família, que supostamente encobria as traições. E novamente a liberdade que Maria gozava lhe veio à mente, principalmente os incentivos que o marido lhe dava para que se relacionasse mais com a família e com os amigos.

À medida que a amiga prosseguia na sua investigação, aumentava a sua percepção de um fato curioso. Ela só via o que lhe chamava a atenção. E isso prendia tanto a sua atenção, que ela nem desconfiava que aquilo que gostava de ver nos outros era exatamente a encenação que escondia os traumas que as famílias sofriam. Liduína só recebia carinho, coisa que Maria gostava, quando seu marido queria reconciliação; Marcelina só recebia flores quando o  marido se recuperava do pobre e tomava ciência do que aprontou; e Zenaide só recebia presentes quando o marido percebia que tinha ido longe demais com as acusações.

As fotografias que via das famílias felizes postadas na internet representavam aquilo que gostariam que fosse constante, começou a desconfiar. E começou a investigar isso mais a fundo, sem que os amigos e amigas desconfiassem. E descobriu que todas elas têm algum ponto crucial de sofrimento, que nenhuma família é perfeita. E não são perfeitas porque as pessoas que as compõem são imperfeitas também.

Essas reflexões levaram a esposa rabugenta a reconhecer suas atitudes cruéis. Cometera injustiças com o marido esses anos todos. E o pior, reconhecia, é que as acusações tinham uma característica de certeza, convicção, que agora lhe surpreendia. Como pôde se deixar iludir? - refletia. Será que as acusações que fazia ao marido não eram características dela mesma? Não seria ela, a esposa, a imagem daquilo que colocava sob a responsabilidade do marido?

Se o marido pudesse lhe acusar de alguma coisa, que coisa seria essa? Durante vários dias procurou dele a resposta à questão. De tanto insistir, o marido lhe disse enfaticamente, como sempre fazia, e que a esposa confundia com grosseria: -- Maria, se seus defeitos fossem maiores do que as virtudes que vejo em você, tenha certeza de uma coisa: eu lhe diria. E completou: -- Enquanto eu os puder aturar, estamos juntos.

Surpreendida, a esposa passou a se dedicar, a cada dia, todos os dias, a ser uma esposa melhor. E começou impedindo que as ilusões de felicidades das outras famílias ocupasse a sua mente e o seu coração.

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