quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Pavio Curto

Ter pavio curto parece ser a característica de muita gente por aí. Mas a experiência tem mostrado que grande parte disso é fruto apenas da imaginação de quem não conhece de forma mais apurada quem tem seu pavio reduzido. Em tempo, pavio curto é como são denominados os indivíduos que se descontrolam com muita facilidade. O descontrole lhes é tão instantâneo que se tem a impressão de que é o próprio corpo que lhes domina. Palavrões e agressões físicas são as formas mais visíveis de reconhecer um pavio curto. Mas será que é sempre assim?

Nos meus tempos de infância, havia um certo senhor, lá pelas alturas dos seus sessenta e poucos anos, que no final da tarde passava pela parte de trás da sede do Aningal. Ali os moleques se reuniam para jogar futebol. Era aquela cerimônia: primeiro os mais novos, a partir das três da tarde; depois os mais velhos, em torno das quatro e meia. Próximo das cinco horas, quando os mais novos ainda não tinham ido para suas casas e os mais velhos já estavam se preparando para jogar, aquele senhor aparecia.

Ele tinha cerca de um metro e meio de altura. Não era pardo, como a maioria dos amazônidas, e se vestia com calças compridas e camisas mangas curtas sóbrias, discretas. Para se proteger do sol inclemente amazônico, mesmo e principalmente naquela hora da tarde, portava pequeno chapéu de palha, já um pouco surrado pelo tempo, protegendo-lhe sua pequena cabeça, harmonizada com seu corpo físico reduzido.

Quando era visto, a molecada toda se assanhava e cada um tomava o seu lugar. Uns ficavam por trás e outros, pela frente, com distância maior que dez metros, aproximadamente. E logo alguém perguntava, alto, em tom de deboche:

- Quer vender o chapéu?

Enquanto outro moleque da posição diferente, completava:

- Quanto quer no chapéu?

Aquele senhor, ao ouvir a primeira pergunta, se enchia de furor e partia para cima dos moleques, que corriam se divertindo. Logo que ouvia a segunda pergunta, o velhinho deixava se voltava para os outros. E ficavam nessa sordidez por algum tempo, até que algum adulto interviesse ou o velhinho se cansasse, prosseguindo seu caminho.

Há o caso também de uma senhora de idade que se enfurecia com os moleques. Ela tinha uma fisionomia de amargura, olhar triste. Andava cabisbaixa por causa de algum problema de coluna que a idade certamente tinha produzido, ou pelo menos ajudado a intensificar. Provavelmente também era sexagenária. E andava com um pedaço de madeira, parecendo um cabo de vassoura, que muitas vezes usava como apoio. Seus amigos e familiares a chamavam de Maroca. Não sei se era esse o seu nome ou uma forma amorosa de Maria.

Quando passava e os moleques a viam, gritavam:

- Ei, saiúda!!!

A pobre senhora se descontrolava imediatamente. Manuseava o pedaço de madeira como se fosse uma arma, um tacape, tentando acertar algum moleque. Provavelmente seria capaz de machucar alguém, mas nunca a vi fazer. Ainda é vívida na minha lembrança o seu rosto enfurecido, como se uma arma poderosa lhe tivesse acertado a alma. Seu corpo apenas parecia reagir àquela dor profunda que aquelas palavras provocavam.

Esses dois seriam típicos exemplos de pavios curtos. Mas será que são realmente? Será que existem pessoas que possam ser assim denominados? Ou será que o pavio curto não é característica de quase toda a população do planeta, incluindo você?

O homem do chapéu, para a família dele, era a pessoa mais doce do mundo. Nunca machucou ninguém, nunca espancou nenhum de seus filhos, coisa bastante habitual na educação familiar amazônica. Jamais chamou palavrão para ninguém. Sempre fôra uma pessoa solícita, disposta a ajudar quem dele precisasse, sem nada cobrar por isso. Sua vida foi de agricultor e se mudou para a cidade quando a economia baseada na juta se desfez em Alenquer. 

Mas de onde vinha o seu enfurecimento, o seu pavio curto? Vinha do fato de não aceitar a falta de respeito que era achincalhar alguém de idade. Sua trajetória moral sempre foi de respeito aos mais velhos. O irmão mais novo respeitando o mais velho, que respeitava os pais, que respeitava os avós, assim em cadeia. Um vivia em favor outro, como sempre praticou. Sua base moral era tão forte que o fazia se descontrolar.

No caso da Maroca, algo muito parecido acontecia. Quando ela estava junto dos seus, sempre foi muito doce, cativante, carente de atenção e carinho. Sempre foi muito respeitadora e humilde. Tão humilde que muitas vezes falava com os outros de cabeça abaixada, em sinal de profundo respeito. É como se o interlocutor fosse uma pessoa muito importante para ela, uma autoridade. Novamente, aqui, merecia respeito todas as pessoas, principalmente aquelas que lhe davam atenção, carinho e respeito. Novamente, aqui, era a força moral que induzia o seu comportamento.

Uma coisa acendia o pavio, o desrespeito. Mas outra coisa é surpreendente: o tempo que levou para que o pavio fosse aceso. O homem do chapéu não ficou furioso do dia para a noite, e muito menos Maroca, ao ser chamada de saiúda. Levou tempo. Foi somente depois de muita insistência, de inúmeras cenas de falta de respeito, que ambos começaram a se enfurecer. É a velha máxima: água mole em pedra dura, tanto bate até que o pavio encurtece.

Mas isso não aconteceu apenas com o senhor do chapéu e com a Maroca. Acontece com todo mundo. Conheço muita gente que se separou do marido e da mulher porque não aguentava tanta lamentação todas as horas do dia. Um dia o pavio encurtece. Sei de muita gente dócil que cometeu assassinato porque não suportou tanta infernização por parte do assassinado. Já vi gente amorosa se descontrolar porque não aguentou tantas agressões físicas. Ser pavio curto, ao que tudo indica, é sinal de ser humano na integralidade de suas imperfeições. Alguns demoram para explodir. Outros explodem de forma suave. Mas quase todos explodem.

Recentemente tivemos uma comprovação escancarada dessa humanidade, cometida por uma alta autoridade. Isso apenas prova que o pavio curto é característica que não escolhe cor, sexo, idade, escolaridade, posição social e outras características que não sejam espirituais (não confundir com religiosidade, por favor). Aliás, os governantes brasileiros são tão achincalhados pelos seus adversários, principalmente através das mídias e imprensa, que é raro não explodirem. E isso vale para quem se diz de direita, esquerda, centro, alto, baixo ou qualquer posição do espectro e planos políticos. Só para lembrar, que isso levou Getúlio Vargas e centenas de outros políticos ao suicídio, coisas que almejam os achincalhadores.

Mas há pessoas que, simplesmente, não têm pavio. São seres muito evoluídos. São tão evoluídos que respondem toda agressão, qualquer que seja ela, com atos de amor. Amor mesmo, de verdade, sem fingimento. Mas esse é um caso para outra postagem, assim como outros indivíduos ainda mais raros e superiores em amorosidade, que são os angelicais.

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