sábado, 31 de outubro de 2020

Você é treinado ou capacitado?

Treinar e capacitar são dois fenômenos muito típicas das atividades de gestão de recursos humanos. Ali, naturalmente, denotam duas coisas infinitamente diferentes, mas ambas voltadas para o mesmo alvo. Do ponto de vista da psicologia, são também distintos, mas para alvos completamente diferentes. Um terceiro ponto de vista pode ser aí adicionado, para dar sentido não apenas à visão gerencial e psicológica, mas a todas as demais, assim como todos os focos. Essa visão é a espiritual. Que nada tem a ver com religião, é bom que se advirta antes.

Comecemos com o desafio de treinar. Dizem que Oscar Schmidt, o jogador de basquete conhecido também como Mão Santa, começou a se interessar pelo esporte já em idade avançada para isso. Como gostou assim que experimentou, começou a sua dedicação. A partir daquele momento, todos os dias, durante todas as semanas, durante muitos e muitos anos, procurou dominar cada jogada, cada forma de pegar na bola, cada maneira de atirá-la, cada tipo de marcação e assim por diante. Depois que seus colegas iam para casa, ficava horas e horas ali, treinando, treinando, treinando. Sozinho, na maioria das vezes.

Dizem relatos mais eufóricos que Mão Santa chegava a repetir, em um único dia, 5 mil lançamentos da bola à cesta. Os mais céticos contradizem essa euforia. Ficava apenas entre 3 e 3,5 mil tentativas de fazer cesta de 3 pontos! A vida do atleta passou a ser treinar, treinar, treinar. Em equipe, treinava posicionamentos, passes, recepções e assim por diante; sozinho, treinava cestas de 3 pontos. E como o que mais fazia era treinar cestas de 3 pontos, mais do que qualquer ser humano no planeta, o resultado não poderia ser diferente: ele é o maior cestinha da história!

Outro gênio, e todos os demais, teve comportamento semelhante. Pelé treinava com seus companheiros durante o "expediente" normal. Depois, permanecia sozinho no campo ou com alguns amigos treinando cobranças de faltas, pênaltis, escanteios. Também treinava e gostava muito de ser o goleiro. Quando treinavam apenas pela manhã, o autor dos mil e poucos gols voltava depois do almoço e ficava até a noite treinando. Todos os dias que não tinha jogo era assim. Fez-se não apenas o maior jogador de futebol da história (naturalmente que contestado pelos irmãos argentinos), mas também o atleta do século.

O que queremos mostrar é que a dedicação, não tenha dúvidas disso, leva qualquer pessoa, literalmente qualquer pessoa, aos píncaros da glória. Repetir, repetir, repetir muitas e muitas vezes a mesma coisa leva os indivíduos à beira da perfeição. Um enxadrista, por exemplo, consegue prever inúmeras jogadas possíveis a partir de um uma única movimentação do seu adversário. Papagaios, em outro extremo, conseguem falar tal qual um ser humano aquelas palavras e frases que lhe são ensaiadas e repetidas inúmeras vezes.

Uma funcionária de uma escola era considerada exemplar pelos seus proprietários. Todas as negociações, eles se gabavam, eram feitas de uma forma tal que os pais de alunos pagavam logo a mensalidade, quase sem atraso no pagamento das demais. Fui matricular meus filhos e tive que lidar com a funcionária exemplar. Como esperado, assim que ela começava a falar eu era capaz de adivinhar a próxima palavra a ser pronunciada. Eu conseguia adivinhar até o próximo argumento. Não foi fácil para eu descobrir o esquema mental dela. Aquela servidora tinha sido treinada.

Uma professora teve o desafio de substituir a diretora de outra escola durante um longo período de enfermidade. Um amigo precisou trocar seus filhos de escola e aquela instituição lhe foi indicada. Durante as duas horas que permaneceu ali, a diretora a substituta o acompanhou o tempo todo. Suas palavras e expressões corporais todas estavam voltada para o conforto daquele pai em relação à segurança de seus filhos na escola e na qualidade do ensino que receberia. Todo o material didático lhe foi mostrado, detalhada a estratégia principal de ensino-aprendizado, os cidadãos ilustres que por ali passaram lhe foram apontados.

O pai, preocupado com o custo de todo aquele zelo, perguntou quanto era a mensalidade. A professora apenas lhe disse que era um investimento que ele não teria nenhuma dificuldade em pagar. De fato, apesar da mensalidade estar no patamar mais elevado da cidade, a professora organizou de uma forma tal os investimentos que meu colega conseguiu fazê-lo sem grandes preocupações. Toda a negociação financeira não demorou 20 minutos das duas horas em que meu amigo ali esteve. A professora não foi treinada. Ela foi capacitada para ser diretora.

Qual é a diferença, então? Em todas as visões, particularistas ou generalistas, o que valem são ou os resultados ou as maneiras como eles são alcançados. O indivíduo treinado repete aquilo que ele sabe fazer com perfeição. Ele não consegue dialogar, porque dialogar exige o reconhecimento da integridade e integralidade de quem está do outro lado, provocando a necessidade da alteridade. Quem é treinado não consegue se colocar na posição do outro, não consegue imaginar as necessidades de quem está à sua frente. A preocupação do indivíduo treinado é com o êxito, o sucesso. E a forma como faz isso é quase sempre única, seus métodos são bastante limitados, reduzidos em variedades. Se diversificar, ele se perde.

Quem é capacitado foca o resultado, naturalmente, mas vive intensamente o percurso que o levará até ele. A diretora tinha tanta felicidade em descrever e apresentar os recursos da escola que contagiava o meu amigo. Não era preciso muito esforço para perceber que ela estava vivendo cada momento, cada segundo, como se fosse um relato de vivências que ela viveu inúmeras vezes, e todas as vezes essas vivências foram vividas com satisfação. Era a somatória de todas essas satisfações que parecia transbordar pelas suas bocas e olhos. Interessava a ela, ainda que inconscientemente, que o pai dos futuros alunos sentisse um pouco dessa vivência.

A diretora substituta focava o resultado, que era a matrícula das crianças na escola. O resultado era o foco de suas atitudes. Diferentemente, a funcionária exemplar via em cada indivíduo que ela atendia apenas um número a mais na quantidade de alunos na sala de aula, no montante de receitas de mensalidade e das inúmeras taxas que se tem que pagar, no seu percentual sobre as mensalidades pagas em dia e assim por diante. A professora falava da possibilidade de tirar cópia das páginas do livro didático para que as crianças pudessem acompanhar as aulas, enquanto o livro não estivesse disponível; os canais de comunicação com os professores e profissionais do setor pedagógico; como levar com rapidez as crianças para as unidades de saúde; dentre inúmeras outras questões de preocupação familiar.

Ser capacitada, como o próprio termo indica, é ser capaz de fazer o bem. Isso não quer dizer que aumentar as receitas da escola não seja um bem, pelo contrário. Mas é preciso compreender que as receitas em si não são um bem. A funcionária deveria raciocinar ao contrário: é fazendo o bem que as receitas se elevam. Mas, para fazer o bem, é preciso ser capacitado para tal. E essa capacitação é decorrente do poder que as pessoas têm de resolver problemas dos outros.

O treinamento traz a glória para o indivíduo. A capacitação a traz para todos os comprometidos no desafio. A diretora trabalhava pela coletividade, o que incluía os possíveis futuros parceiros, que eram os pais de alunos à procura de matrícula para seus filhos. A funcionária exemplar via os pais como clientes, o que não é uma coisa ruim, que pagariam as aulas que seus filhos receberiam; a diretoria os via como parceiros no esforço de tornar seus filhos cidadãos de bem. Infelizmente, muitos funcionários exemplares existem que ainda não conseguiram sequer ver os outros como clientes, fazendo valer cada centavo de seu dinheiro investido nos produtos e serviços que deveriam lhes entregar em troca.

As atitudes da professora não eram muito diferentes das praticadas por Oscar Schmidt e Edson Arantes do Nascimento, os cidadãos do mundo. Os três treinaram a realização de suas responsabilidades visando a um bem maior, do outro e da coletividade. A professora via futuros cidadãos maravilhosos; Pelé e Mão Santa, uma equipe saudável nas vitórias e derrotas de suas equipes. A funcionária exemplar via seu percentual financeiro nas mensalidades e o aumento das receitas de sua instituição.

Um comentário:

Unknown disse...

É muito bom entender as diferenças.

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