domingo, 23 de maio de 2021

Tens Fé?

 Às vezes eu paro para pensar nas pessoas que se dizem cheias de fé. Recentemente foram alvos das minhas reflexões as que dizem aos quatro cantos do mundo que têm fé na ciência. Estas são aquelas que amiúde postam qualquer coisa e acrescentam "Viva a Ciência". Antigamente eram meus alvos os membros de igrejas. Minha preocupação não era exatamente a pessoa em si, o indivíduo, mas o seu entendimento de fé. Mas o que eu via, os fatos que eu coletava, contradizia abissalmente os discursos que eu lia. Dito de outra forma, o que as pessoas postavam era um verdadeiro contrassenso, algo como "A ciência é uma grande mentira" junto com a assinatura "Viva a ciência". Vejamos isso de perto.

Fé vem do latim fide. Essa também é a origem da palavra fidelidade e fiel. Como o transcurso histórico alterou a significação de fide, quer dizer, multiplicou-a, é possível fazer uma reconstrução reversa do termo para compreender com precisão o que essa palavra significa hoje. Atualmente, fé é confiar, e fidelidade é não trair, não contrariar a confiança de alguém. Guardemos essas duas significações.

A origem latina de fé designa um tipo muito especial de confiança. Essa especialidade é decorrente do fato de que fide é algo incondicional. Quem confia, confia absolutamente. A confiança é de uma ordem tal que pode ser facilmente considerada sinônima de verdade. Isso quer dizer que quem confia incondicionalmente tem fé de uma certa maneira que tudo aquilo que emana da fonte da confiança é considerado verdadeiro. E tudo o que é verdadeiro é inquestionável. Resumindo: quem tem fé não pode desconfiar, apenas executar o conteúdo da confiança.

A fé no sentido moral, que é aquela que se aplica em relação ao outro, tem essa mesma conotação: a verdade. Eu sou fiel e pratico a fidelidade porque seus princípios são incontestáveis. Um desses princípios pode ser o fato de que não traindo obrigo o meu parceiro ou parceira a não trair. Se eu traio, não sou fiel, não consigo aplicar em mim aquilo que eu sustento como fé, como uma atitude verdadeira, digna de confiança.

Vejamos o que acontece, na realidade, fora dos âmbitos compreensivos dos conceitos. É possível ter fé naquilo que não conhecemos? É possível confiar em uma pessoa que não conhecemos? É possível ser fiel a algo ou alguém de que não temos a mínima ideia do que seja? Os resultados das minhas reflexões e análises me levaram a concluir que a resposta a todas essas questões é um grande Não.

O segredo desse mistério não está na língua latina, mas na grega. E vem de um termo maravilhoso: Aleteia. Este termo está presente na afirmativa de Cristo de que ele é o caminho, a verdade e a vida. Essa verdade de que fala Jesus é Aleteia, que significa o que é verdade, que não está escondido, aquilo que é exatamente como a realidade mostra.

Não é difícil compreender, então, que apenas poucas pessoas são capazes de entender os fatos e fenômenos do mundo de forma aproximada de como eles verdadeiramente são. Exemplo. Muitas pessoas acham que a gravidade é uma força que atrai os corpos para o centro da terra. A "verdade" é que a gravidade é a queda das coisas em direção a um corpo mais pesado. A maçã cai da árvore em direção à terra, que é mais pesada. O planeta terra cai em direção ao sol, que é mais pesado, da mesma forma que a lua cai em direção à terra a todo instante. A consequência da queda em direção ao sol são as estações do ano, enquanto as marés e fases da lua são o resultado da queda em direção à terra.

Aleteia é isso: saber o porquê das coisas, desvendar, tirar as vendas dos olhos, ver as coisas do jeito que elas são e não da forma como elas aparecem para nós. Quando a ciência mostrou que seres invisíveis (vírus e bactérias) eram a causa de muitas doenças, muita gente se revoltou. Quando a ciência mostrou a possibilidade de vacinas conterem epidemias, muita gente também se revoltou. Aleteia é sempre uma revolução aos olhos de quem não a compreende.

Quando Cristo disse "Gente de pouca fé" ele estava dizendo que as pessoas tinham pouco conhecimento. Traduzindo para uma linguagem comum, Jesus disse que as pessoas não sabiam como as coisas do mundo acontece e por isso não entendiam o que ele fazia. E quando ele pediu que tivéssemos fé no que ele dizia não estava pedindo para a gente crer nas palavras dele, mas que deveríamos, por nossos próprios esforços, usar a nossa razão e a nossa determinação em conhecer a verdade, em saber tudo de Aleteia. E o que fizemos? As palavras do rabi entrou por um ouvido e saiu pelo outro de quase todos os seres viventes da Terra.

É difícil de acreditar (depois explicarei o que é crença), mas os cientistas são os indivíduos que mais praticam a fé. São os únicos seres capazes de explicar e demonstrar aquilo de que falam. Quando dizem que a terra cai em direção ao sol produzindo a sensação de gravidade, eles mostram o fenômeno tanto matematicamente quanto fisicamente. São capazes de reproduzir o fenômeno para que todos o compreendam (jamais para convencer alguém; cientista não busca convencer ninguém, se não, não teriam fé). E têm fé por causa de duas coisas. Primeiro, porque amam aprender; segundo, porque fazem qualquer coisa para continuar aprendendo.

E o que faz a maior parte da população do planeta? Crê. E por isso são alvos fáceis de qualquer discurso. Qualquer pessoa que fala bonitinho arrasta diversas multidões. Quando alguém fala "Viva a ciência" não está sendo desonesta, mas explicitando apenas a ignorância dela sobre esse área de ação humana. Se ela soubesse que a ciência tem inúmeras explicações válidas para o mesmo fenômeno, não diria isso. E o que ela faria? Ela agiria. E o agir da ciência é sempre o mesmo: estudar, compreender e agir bem. Se gritar por aí, está demonstrando que não entende a ciência.

Mas tem uma coisa a favor do grito. Os cientistas só têm fé na sua ciência. Por exemplo, pouquíssimos, raríssimo, são os cientistas da área médica (e muitos poucos médicos são cientistas) não dão ouvidos para os cientistas da contabilidade e da administração no Brasil, para ficar em apenas duas ciências diferentes. Isso explica em grande parte o caos da saúde no Brasil. Como não sabem lidar construir o futuro agora (coisas de gestores) e tampouco determinar com precisão as entradas e saídas de todos os tipos de recursos de agora para algumas décadas (coisa de contabilidade), acham irrelevante o que essas ciências sabem. Noutras palavras: os cientistas também são serem crentes. Eles só têm fé na ciência que fazem. Noutra oportunidade vou mostrar que lógica, matemática e estatística são os instrumentos com as quais construímos em nós a fé.

Voltando à nossa questão de origem, todos nós somos crentes. Quase ninguém tem fé. E os poucos que têm fé são fiéis apenas àquilo de que se ocupam. Poucos são os cientistas em relação ao total da população do planeta. Poucos são os que seguem fielmente o pedido do Cristo, de aprender e melhorar sempre suas condutas.

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