segunda-feira, 31 de maio de 2021

Ou Apenas Crês?

 A crença parece ser algo essencialmente humano. Em maior ou menor grau, todos os homens e mulheres viventes ou que já passaram por aqui viveram seus cotidianos baseados em crenças. Alguns creram nos poderes divinos dos trovões e dos fenômenos da natureza, enquanto outros ainda hoje juram de pés juntos que comer pirarucu ou camarão quando se está doente é certeza de agravamento da doença, que pode redundar até em morte. Na Amazônia essa crença chega a englobar todos os peixes sem escama, os chamados peixes-lisos. Note que as crenças não nos impedem de viver. Mas elas precisam ser vencidas para que possamos avançar na nossa intimidade com as coisas do mundo.

Fé e crença são duas coisas diferentes, mas interligadas. A fé é um termo que está vinculado à palavra grega pistis (πιστις), que é também a palavra que dá origem ao conceito episteme. E aqui está o segredo da palavra e da afirmativa do Cristo quando dizia "povo de pouca fé". Esses termos são utilizados para representar um tipo de conhecimento que vem do esforço do indivíduo em saber. Não é algo dado por Deus. É fruto do esforço humano. Tanto é assim que a palavra episteme significa o conhecimento científico, que é aquele confiável porque pode ser demonstrado.

Epistemologia, por extensão, significa o estudo dos conhecimentos que mais se aproximam da realidade. Os conhecimentos científicos são objeto de estudo da epistemologia, que busca apontar seus limites, profundidades, métodos e principalmente as suas lacunas, que são os buracos no tecido científico que ainda não foram tapados, preenchidos. Contudo, originalmente, episteme estava vinculada à ideia de aleteia.

Aleteia designa a ideia de verdade. A verdade seria o fim último a que todo conhecimento busca. Cada episteme é uma tentativa de falar a verdade, de dizer a verdade. Assim, a fé enquanto episteme é um tipo de explicação que muito se aproximaria da verdade, da aleteia. É diferente, então, de um outro tipo de conhecimento, que não é fruto do esforço humano. A razão é simples: ele é herdado.

Esse conhecimento é representado na mentalidade grega pelo doxa. A palavra portuguesa que mais se aproxima do entendimento de doxa é opinião. Opinião é qualquer fala que a gente faz sem se preocupar se ela é verdadeira ou falsa. O doxa não tem compromisso com a verdade. Se tivesse, não seria doxa. Vamos ver uns exemplos.

Quando uma comunidade diz que é remoso comer peixe liso quando a gente está doente, esse é um tipo de conhecimento porque é uma explicação sobre a realidade. Nessa explicação há uma relação de causa-efeito: se comer peixe liso, a doença vai agravar e o doente pode morrer. E essa explicação não é apenas das comunidades primitivas da Amazônia: muitos médicos e dentistas amazônicos, por exemplo, fazem essa recomendação explicitamente, por escrito. Mas os médicos que habitam regiões distantes da Amazônia e do Brasil não fazem isso. Por quê?

Muitos ribeirinhos amazônicos olham o céu de manhã e dizem se vai ou não chover à tarde. A explicação é que a coloração das nuvens têm a ver com a chuva, dizem eles. Não conseguem explicar além disso. Se alguém atento acompanhar os resultados verá que haverá muitos acertos e muitos erros nas previsões. E não adianta qualquer argumento em sentido contrário a essa mentalidade. Dificilmente algum deles acreditará.

Esses são dois exemplos típicos do que se chama doxa. Opinião é todo tipo de explicação que não tem uma forma de comprovação, de demonstração a partir do que chamamos padrões válidos. A gente simplesmente acredita naquilo que falamos porque é o costume, a tradição, enfim, a mentalidade com a qual convivemos que diz e confiamos. É a isso que chamamos de crença: acreditar. Acreditamos simplesmente porque nem percebemos aquilo que dizemos.

É essa a grande matriz da confiança, das crenças: a tradição, o costume, a cultura de um povo. A crença não é algo ruim. Acreditar que existe a mãe do mato não faz mal a ninguém, da mesma forma que admitir a existência do saci-pererê. Mas existem certas crenças que podem trazer consequências danosas. Um exemplo é negar a eficácia de determinados medicamentos, da mesma forma que a crença que diz que se deve pagar sempre na mesma moeda: se recebemos o mal, devemos fazer o mal.

O fato é que ninguém consegue sobreviver sem eliminar o doxa, a opinião, a crença pura. Uma das razões é que a ciência, principal fonte da episteme, só consegue explicar (às vezes de forma muito rudimentar) uma pequena parte da realidade. Quase tudo está ainda por explicar, ainda carece de explicação confiável. E como a gente precisa viver, a gente vai confiando nas nossas intuições, nos conselhos dos pais e amigos, nas recomendações de profissionais (que quase sempre também são movidos mais por crenças do que por episteme), enfim, no que a nossa comunidade considera o certo e o errado.

Há um grande contingente de pessoas, contudo, que tenta submeter boa parte da realidade ao crivo da episteme. Eles não se contentam apenas com as opiniões, porque são falhas. Tentam se guiar mais pela fé, que é a opinião racionalizada, passada pelo crivo da razão, do que pelo instinto bruto, que chamamos de crença. Quando a crença tem uma base sólida, o bem é o que emerge, mas quando não é traz problema.

Cristo disse muitas vezes "Crede em mim". Essa frase foi solicitada porque o Messias sabia que a mente daquele povo não conseguiria entender a explicação real, a episteme, sofre a realidade da qual queriam explicação. Por exemplo, não entendiam como ele curou o cego de nascença. Evidentemente que alguma ciência houve naquele procedimento, Cristo usou alguma episteme. As pessoas queriam saber, mas não havia capacidade cognitiva para tal. Por esse motivo o seu pedido significa o seguinte "se eu explicar, vocês não vão entender. Mas acredita em mim, faz o que eu peço, que vocês vão se dar bem". Aqui está o sentido perfeito das crenças: a gente confia porque alguém que tem o conhecimento sobre aquilo que estamos repetindo falou ou nos disse. E como tem autoridade ou é alguém importante, não tem erro ou problema eu repetir. Ler um ou dois textos comentando um assunto não te dá episteme. Tens que ler tudo o que já foi escrito e conduzir teus próprios experimentos. É preciso muito esforço para que se fuja das crenças.

Aquelas pessoas que apenas creem são como as folhas ao vento e pequenos corpos nas ondas do mar. Podem cair em lugar agradável, mas quase sempre o que lhes reserva é dor e sofrimento. Não é por acaso que a maior parte dos que sofrem são os que têm poucos saberes, pouca episteme. E ter saber não é e jamais será ter anos e anos de escola. É, simplesmente, usar a sua capacidade de compreender as coisas, encontrar lógica e razão no comportamento da realidade. Há iletrados sábios e letrados estúpidos.

Os sábios não se deixam conduzir pelas frases bonitas dos outros, e muito menos concordam com baboseiras só porque foi alguém famoso que disse. Respeitosos, eles ouvem a todos com carinho e atenção, mas tudo submetem ao crivo da razão. Não é porque todo mundo está gritando "Viva o SUS" que ele vai gritar também. Ele vai constatar, por exemplo, que praticamente todo mundo que está gritando isso ficou calado quando o SUS estava sendo desmontado. Ele vai perceber que todo comportamento de crença cega é irracional e gera mais sofrimentos.

Um deles certo dia viu um grupo de pessoas que se consideravam antifascistas gritarem brados a um grupo minoritário. Alguns pedestres que assistiam à manifestação se uniram aos manifestantes. O sábio apenas assistiu, sem desrespeito àquilo tudo. Viu que aquelas pessoas faziam exatamente o que acusavam, inclusive com o punho direito erguido acima da cabeça. É isso o que acontece a todos os que apenas creem: se tornam escravos de seus instintos mais primitivos.

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