sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Acreditas na Ciência?

A ciência é um fenômeno extremamente paradoxal. E esse paradoxo é percebido de uma forma um tanto quanto precisa, mas que permite cientistas e de não cientistas. Os cientistas veem a ciência de uma forma completamente diferente dos que a veem aqueles que não a têm como seu exercício profissional. Contudo, para que possamos compreender tal paradoxo, é necessário que algumas características científicas sejam compreendidas.

O que distingue a ciência de outros tipos de conhecimento é a aplicação do método científico. O método científico é uma série de etapas, cada qual com seus respectivos procedimentos, que precisam ser seguidas para que a comunidade científica possa aferir a validade daquilo que é "descoberto". Isso quer dizer que toda comunicação de descoberta científica precisa detalhar como o conhecimento foi gerado. Se a comunicação não contiver esse detalhamento, não é ciência.

O método científico é o que permite que os cientistas possam aferir se determinado conhecimento é válido ou não. Um conhecimento é válido quando os seus resultados podem ser reproduzidos nas mesmas circunstâncias em que ele foi gerado. Isso implica na necessidade de se conhecer como cada técnica, procedimento e condições ambientais interferem em cada resultado apresentado. Como essas as técnicas, procedimentos e condições não são universais, suas limitações precisam ser explicitadas para que se conheçam os limites daquela explicação (que chamamos de nível de análise).

O conhecimento científico é sempre limitado. Embora tenha pretensão universal, essa universalidade é limitada em alguns aspectos. Por exemplo, as explicações dos impactos dos investimento na educação sobre a criminalidade são limitados porque não se pode estudar todos os tipos de investimentos e os impactos de cada um desses tipos de investimentos sobre cada um de todos os tipos de criminalidade. Então há um limite daquilo que se pode estudar, assim como há limite na dimensão geográfica do estudo. Por exemplo, não é possível estudar o  impacto do investimento em educação de cada residência ou família sobre os diferentes tipos de crimes praticados pelos seus membros. Como essas, há inúmeras outras limitações em todo tipo de conhecimento científico.

Os conhecimentos científicos diferem entre si. As técnicas, procedimentos, condições ambientais, perspectivas, valores dos cientistas e inúmeras outras coisas interferem nas descobertas. É por esse motivo que uma vacina A funciona de forma limitada, da mesma forma que o que desmotiva psicologicamente algumas pessoas age como fonte motivadora para outras. Isso quer dizer que a ciência não tem e provavelmente nunca terá uma resposta consensual, única, para tudo. Aliás, no que dia que isso fosse possível, seria o fim da ciência. Essa falta de consenso é consequência dos erros que todo estudo científico apresenta, além de suas limitações.

Para ser ciência, há que haver erro. Um erro nada mais é do que a diferença entre a descoberta científica e aquilo que realmente acontece na realidade. A pretensão da ciência é chegar o mais próximo possível na retratação daquilo que acontece realmente, ainda que esteja convicta de que essa possibilidade é remota. Muitas vezes, o desafio é reduzir esse erro, como acontece com as vacinas e sua eficácia. Para que esse erro se minimize, portanto, é preciso refazer e até mesmo destruir o conhecimento existente, mas sempre com a responsabilidade e maturidade de colocar no seu lugar outro mais seguro.

A ciência é esse jogo interminável que se baseia na destruição. Destruir, aqui, não significa acabar, eliminar, fazer deixar de existir. Destruir é um ato e um compromisso de compreender com precisão o que já se sabe, identificar suas falhas e lacunas, e refazer a construção científica. Imagine uma casa com alguns cômodos em determinado espaço físico. Muitas vezes uma sala não está em harmonia com o conjunto, o que força sua reconstrução; noutras vezes se percebe que está faltando um lavabo na sala, que é construído; noutras vezes é necessário que novos ambientes sejam construídos, como uma piscina ou garagem inexistentes. É assim que funciona a ciência: para se melhorar ou se expandir, precisa destruir.

Perceba como agem os cientistas: eles não agem para dar continuidade ao que existe. Quase todos eles dedicam toda a sua vida para destruir o existente para colocar no seu lugar mais aperfeiçoado. E esse aperfeiçoamento leva em consideração todos os conhecimentos existentes sobre aquilo que estudam, com atenção especial para as dissonâncias, que quem não é cientista chama de contradição. Quando um conhecimento científico é dissonante, os cientistas sabem que ali há a carência de uma ponte, há uma lacuna que precisa ser preenchida, um vínculo que precisa ser construído. Se o conhecimento científico foi gerado com a utilização válida do método científico, seu resultado é confiável, não importando o quanto ele é conflituoso com os outros existentes.

Note que o foco da ciência é sempre a redução daquilo que ela fala com aquilo que ela está falando. Se falo sobre a potabilidade da água, aquilo que eu falo da potabilidade da água tem que haver o mínimo de erro em relação à potabilidade da água real, como acontece na realidade. Como os cientistas estão conscientes dessa atitude, precisam desenvolver uma elevada capacidade analítica, que significa ver os detalhes de cada coisa da realidade, e síntese, que quer dizer juntar os detalhes de cada coisa de um jeito que seja demonstrável. É a esse jogo de análise e síntese que faz com que os cientistas não ajam movidos pela crença popular. Os cientistas não creem, eles não têm crença no sentido de ter confiança sobre alguma coisa e acabou.

A ciência é movida pelo saber. Chamamos de saber àquilo que falamos e somos capazes de demonstrar ou fazer. Só sei cozinhar quando eu cozinho, ainda que não gostem da minha comida. Só sei andar de bicicleta quando consigo me locomover sem perigo por algum tempo ou alguma distância. Tudo aquilo que se fala e que não se pode demonstrar ou não se sabe fazer não é considerado científico. Nas comunicações científicas, a demonstração é dada pelo detalhamento do método a partir da descrição de como cada procedimento, técnica e condições ambientais que afetam os resultados. O saber é essa demonstração que outros podem reproduzir e confirmar.

Isso pode parecer desalentador e até mesmo frustrante para muita gente, mas os cientistas não acreditam na ciência. No máximo, eles acreditam desconfiando. Mas a palavra acreditar é muito forte e até mesmo exagerado para representar suas atitudes. O motivo disso é que eles sabem que todo discurso, tudo aquilo que é comunicado (como esse meu texto), é limitado. E a crença é uma instância psíquica que elimina a consideração da possibilidade de falhas e erros. E quando se tem essa atitude, todo e qualquer discurso é apenas mais uma tentativa de se aproximar da realidade, sem que, efetivamente, tenha esse sucesso.

Foi por essa razão que um dos grandes cientistas da atualidade disse que "a crença na ciência" é a atitude mais anticientífica que a humanidade jamais teve. Como a ciência é esse esforço incessante para levar a todas as mentes a compreensão de que as crenças impedem que o saber emerja, colocar em primeiro plano a crença em detrimento dos procedimentos da ciência é ser anticientista efetivamente. Aliás, essa é uma daquelas afirmativas típicas que não são passíveis de serem comprovadas cientificamente. É uma afirmativa de fora do campo científico. Provavelmente veio da filosofia, da religião ou do senso comum, conhecimentos que quase sempre ignoram o que se passa na arena científica.

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