quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Remendos

Muitas vezes batemos os olhos em alguém e uma força maior do que nossa capacidade de controle toma conta da gente e nos faz fazer coisas terríveis. Não que tenhamos a sordidez de planejar o mal que inconscientemente produzimos. Mas o fato é que fazemos e apenas o longo passar do tempo, quando por diversas vezes tivermos passado de sujeito a objeto da maldade, poderá nos fazer reconhecer o mal que causamos.

Uma boa parte da minha infância foi de muitas necessidades. Tínhamos dificuldades, meu pai e eu, até de conseguir comida para sobreviver. Almas caridosas surgiram e aliviaram o fardo do meu pai para com a minha sobrevivência. Ganhei comida. Ganhei roupas e calçados usados.

Fiquei tão maravilhado com aquelas roupas novas, aqueles sapatos bonitos, que na minha cabeça eram todos novinhos em folha. Na verdade, nem passava pela minha cabeça sequer pensar no tempo que aquelas dádivas tinham.

Eu não tinha o que vestir. Lembro com muita nitidez de ter apenas dois calções, ambos com furos na parte traseira de tanto sentar no chão porque onde eu habitava não tinha cadeiras ou o que quer que seja para sentar. Eu usava as roupas com a parte de trás para a frente. É claro que eu sentia vergonha quando de vez em quando meu órgão genital ficava saliente, mas eu podia fazer o quê? Quando o rasgo aumentava, cometia o erro de colocar um calção por cima do outro. Como consequência, tinha dias que eu ficava pelado em casa, para que os dois calções pudessem secar.

Blusa? Só tinha uma. Não lembro uma única vez de ter usado blusas nessa época. Nem eu e nenhum dos moleques da minha vizinhança. Era comum, então, brincarmos nus nos quintais, nas ruas. Não por que quiséssemos, mas porque não tínhamos o que vestir. As roupas rasgadas, acreditem, eram uma espécie de roupa para sair, passear.

Quando eu vesti as roupas usadas que ganhei, meus vizinhos ficaram encantados. Todos me admiravam. Como eu estava bonito, diziam alguns. Como eu fiquei diferente, diziam outros. Fiquei até um homenzinho, diziam os mais velhos. E, claro, eu me vi feliz porque o ambiente daquelas pessoas miseráveis era de felicidade por mim.

Vesti a roupa e fui para a casa da família que as me deu. Eu passaria o dia lá, ajudando em pequenos afazeres, faria as refeições, teria aulas particulares e à tarde voltaria para casa, com uma penela de comida para o meu pai jantar. Muitas vezes era a única alimentação que ele faria.

As pessoas que não me conheciam pareciam conhecer tudo da minha roupa. Viam defeitos na bermuda, manchas na blusa e até um pequeno buraco na parte das axilas. E não se contentavam apenas em ver os defeitos da minha roupa. Queriam mostrar que aquilo era muito importante, infinitamente reprovável, inadmissivelmente aceitável, profundamente humilhante.

Acho que, se não fosse a felicidade tão grande que eu estava sentindo por estar naquelas roupas, talvez eu tivesse dado ouvidos para o que as pessoas que não me conheciam falavam. E mais ainda: as pessoas caridosas, que as me deram, estavam mais felizes do que eu.

Mas aquilo me chamou a atenção de alguma forma. Eu comecei a aprender com tão pouca idade que há pessoas que se incomodam demais com os remendos na roupa dos outros. Se preocupam tanto com os outros que se esquecem de cuidar de si mesmas.

Muitas e muitas vezes vi pessoas humilharem as outras porque eram pretas ou porque eram brancas demais. Mas as pessoas que humilhavam não percebiam que elas também tinham suas particularidades. Um menino magro demais, apelidado de palito (apelido que ele detestava), humilhava uma menina porque ela alta demais. O garoto muito rico humilhava os que não tinham dinheiro, mas não percebia que sua boca fedia demais quanto ele falava.

Mas o mais inacreditável é que todas essas pessoas tinham coisas maravilhosas. Seus defeitos, seus remendos eram tão pequenos em relação à enormidade de coisas boas que apresentavam que fica difícil de acreditar que ficávamos cegos para o bem e com super-visão para ver o mal.

O tempo passou, andei por muitos e muitos lugares e a mesma constatação: somos muito bons para ver os remendos dos outros, mas não conseguimos ver os nossos remendos e tampouco as coisas boas que os outros apresentam. E isso é tão sério que tem até corrente de sábios dedicados exclusivamente à detectação dos remendos dos outros. É tão sério que se consideram os caras mais avançados do planeta. Tão avançados que ridicularizam todos os que não se consideram especialistas em ver os remendos dos outros. Igual ao que acontecia na minha infância.

A vida que tenho agora me ensinou que as pessoas que vencem na vida, que são felizes de verdade, não estão nem aí para o remendo dos outros. Os olhos deles estão voltados para aquela enormidade de coisas boas que acho que todo mundo tem. Quem vive dos remendos dos outros não tem tempo para ser feliz. Felicidade é uma coisa que se conquista, que é construída dia a dia, hora a hora, segundo a segundo.

Hoje, olho para trás à procura de imagens do meu passado e me flagro sorrindo muitas vezes... São momentos de felicidades com as lembranças da pureza infantil que os remendos das minhas roupas nunca conseguiram tapar.

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