segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Supersimplificações

Quase todos nós temos uma tendência a generalizar as nossas ideias. E isso até que é natural. Mas é preciso tomar muito cuidado para que não passemos a acreditar que aquilo que a gente acredita seja a própria realidade. Uma coisa é imaginar a realidade, outra coisa é como ela é de fato. Quase sempre há desencontro entre o que imaginamos e como o mundo é realmente. Quase sempre nossa imaginação é plantada em nós e nos aprisiona.

Por muito tempo se imaginou que a terra era o centro do universo. Todos os outros astros, incluindo o sol em toda a sua majestade, giravam ao redor do nosso planeta. Não se admitia a existência de outros mundos. As estrelas, por exemplo, estavam presas, suspensas, em um gigantesco arco de cristal. E assim essa imaginação coletiva perdurou por mais de dois milênios.

Uma imaginação tão grande como essa passa a dominar todas as nossas esferas de vida. Os deuses gregos, por exemplo, eram todos invenções dessa forma de imaginar e por isso executavam os papéis de ordenadores do mundo dos homens. Aquela harmonia que se verificava no céu (no cosmos) também deveria ser reproduzida no mundo dos homens. Era um mundo de certeza e estabilidade. Qualquer outra imaginação que estivesse em desacordo com essa grande imaginação poderia até causar a morte, como aconteceu com Sócrates.

Ao longo da história, não foi apenas essa grande imaginação que tomou conta e dominou a mente e a forma de viver das pessoas. Inúmeras outras, tão fantasiosas quanto essa, apareceram e desapareceram, como sói de acontecer. O que faz as nossas fantasias se desvanecerem são a racionalidade e as evidências fáticas, dois palavrões que precisam ser conhecidos.

Racionalidade é o descobrimento ou invenção de relações de causa e efeito em duas ou mais coisas. Se sei que comer muito carboidratos pode provocar diabetes, digo que o diabetes é efeito do excesso de carboidratos, sua causa. Assim, para que eu reduza ao máximo a probabilidade de ficar diabético, tenho que reduzir o consumo de carboidrato apenas ao que é necessário, uma vez que sua ausência também é prejudicial. Note, aqui, outra relação causa-efeito: ausência de carboidrato é causa de outras doenças, que são seus efeitos.

Evidências fáticas são demonstrações da realidade daquilo que a racionalidade inventa, explica. As evidência comprovam ou reprovam os esquemas racionais. Por exemplo, se um milhão de indivíduos come carboidratos em excesso e quase todos eles têm diabetes, isso é forte evidência de que a explicação racional é válida. Note que eu falei "quase todos" e não "todos". A razão disso é que haverá sempre uma margem de erro aceitável nas explicações racionais. 

Tanto na proposição de uma racionalidade quanto nas demonstrações dos fatos, podemos errar. E essa é uma das características fundamentais que reduzem em muito a possibilidade de nossas ilusões nos aprisionar. Quem se ilude não admite erros, de forma que tudo o que fala passa a ser verdade. Verdade é a ausência de erros e de sua possibilidade. É por isso, por exemplo, que a ciência não trata e nem lida com a verdade. Uma explicação, para ser científica, tem que apresentar uma margem de erro aceitável. Não existe ciência sem erro.

Vejamos duas grandes ilusões do nosso tempo que teima em continuar aprisionando a cabeça de muita gente por aí, principalmente pessoas importantes que se consideram (e são consideradas) sábias. A primeira é que há um grupo de pessoas opressoras que domina e oprime a maioria das outras pessoas. Nesta supersimplificação, quem não é opressor necessariamente é oprimido. Inversamente, quem é oprimido, necessariamente não é opressor. É outra versão ainda mais infantilizada de ricos e pobres, burgueses e proletários, explorado e explorador e assim por diante.

A ciência tem demonstrado que cada pessoa executa em diversos momentos de sua vida e até dos seus dias ações de opressão e também é oprimida. Ainda que os gênios dessa dualidade não definam o que é ser oprimido e nem o que é ser opressor, vamos imaginar (e isso é imaginação, não é ciência) que opressor é quem causa dor e oprimido é quem recebe a ação do opressor, quem sofre a dor. E vamos imaginar que só haja dor proposital, planejada, como os sábios dessa oposição imaginam.

Quando um pai pune o filho de alguma maneira, está sendo opressor, se o filho achar que aquilo lhe é doloroso. Inversamente, quando o filho desaponta o pai com alguma atitude indesejada, está sendo opressor. Olhando de outra forma, se o pai deixa o filho de castigo para que ele reflita sobre sua ação indesejada, o pai é opressor ou amigo? Se o filho reconhece que sua atitude prejudicou várias pessoas e que se não fosse a ação do pai não aprenderia a lição, estaria sendo oprimido?

Mais ainda: se outro filho, que não tem pai e que teve atitude semelhante com consequências semelhantes, toma para si a responsabilidade de consertar seu erro, estaria sendo opressor de si mesmo ou estaria sendo oprimido? Alguém que sofre de bulimia, que faz sofrer seu corpo e sua mente, seria opressor ou oprimido?

Outra supersimplificação é o discurso que só tem sucesso quem se dedica com afinco ao trabalho. Essa é outra imaginação tão frágil que basta ver que em todo lugar tem os desonestos. Desonesto é aquele que burla as leis ou esquemas morais para se dar bem. E muito desonestos são bem sucedidos. Muitos deles são milionários, têm os bens que querem, têm o poder que desejam, muitos são muito famosos.

O trabalho honesto sempre é um bem. Isso é fato. O trabalho honesto beneficia (palavra derivada de benefício, bem) pelo menos o seu executor ou quem o está recebendo. Mas a ideia de sucesso é tão variada quanto o comportamento das pessoas. Se João considera sucesso "ser ou ficar milionário", Maria pode considerar "Ser famosa", enquanto para José pode ser "ser feliz". Na cabeça de João, a imaginação pode lhe dizer "Que adianta ser famosa e feliz, se não é milionário?". A cabeça de Maria pode lhe dizer "De que adianta ser milionário e feliz, se não é famosa?". A cabeça de José pode lhe advertir "De que adianta ser milionário e famosa, se não é feliz?".

Os inventores de supersimplificações têm completa ignorância sobre o universo interior das pessoas. Eles imaginam que o mundo é do jeito que suas cabeças orientam. Cada gênio da supersimplificação pensa como José, Maria e João de nossos exemplos, de maneira bem rasteira, como as crianças o fazem. São adultos infantis. Só que eles não sabem disso. Como as crianças, eles se imaginam revolucionários em suas fantasias.

Mas eles têm muitos seguidores, milhões podem falar de forma consistente. É verdade, não há de se negar. Mas são todos infantis, já que seguem pensamentos infantis? Infelizmente a resposta é sim. Alguns as seguem por infantilidade, enquanto outros o fazem por esperteza, desonestidade. Felizmente, os que são mais infantis do que desonestos são a maioria. O que lhes falta é conhecimento. 

Com os espertos é mais difícil de lidar. Como se veem em um papel de salvar o mundo, fazem de tudo para que suas ideias ilusórias sejam conhecidas por todos. E criam formas de "ensiná-las" a todos. E fazem denúncias e manifestações de todo tipo. Agem exatamente da forma como denunciam seus ilusórios adversários de fazê-lo. Afinal, segundo eles, seus opositores nunca dormem. Estão sempre a inventar novos artifícios para espalhar suas maldades.

E o que se deve fazer? Primeiro, desconfiar da forma como todo mundo pensa. Se a maioria das pessoas pensa de um jeito, tente imaginar a possibilidade de elas estarem equivocadas. Faça o teste da racionalidade (causa-efeito) e das evidências dos fatos. Se reprovar em um desses testes, procure outras explicações. Provavelmente você encontrará várias delas.

Em segundo lugar, veja se as pessoas que pensam dessa forma admitem pelo menos uma mínima possibilidade de estarem erradas. Quanto menos possibilidades elas apresentarem, maiores as chances de estarem se iludindo. Se não apresentarem nenhuma possibilidade e só enxergarem coisas boas no que dizem, esteja certo de que elas estão se enganando.

Em terceiro lugar, veja se acusam pessoas, grupos de pessoas, instituições ou coisas abstratas como "sistema" ou algo parecido como a causa do que denunciam. Como os gênios das supersimplificações são perfeitos, todas as causas de maldade e coisas ruins estão sempre fora deles, estão nos outros. Inversamente, como são deuses, tudo o que falam é a verdade e tudo o que orientam só traz o bem.

Em quarto e último lugar, veja se eles reconhecem alguma virtude em quem pensa diferente. Quanto menos virtude forem reconhecidas, maiores as probabilidades de ilusão. Se não houver alguma virtude nos seus adversários (eles sempre apontam algum adversário, preferencialmente com o uso de palavras abstratas, que ao mesmo tempo em que engloba muita gente não identifica ninguém, outra prova de ilusão).

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