sábado, 6 de julho de 2019

Primitivos e Civilizados

Conta-se que um executivo muito bem sucedido se desencantou com o enorme sucesso alcançado. De uma hora para outra, segundo os olhos da maioria, abandonou tudo e foi conviver com uma tribo indígena do alto Curuá, quase na fronteira com as Guianas. Ali chegando, muito comunicativo, ficou amigo de todos, principalmente dos caciques. Acostumado aos ambientes de alta liderança, se sentiu à vontade com a feliz situação de não se intrometer na vida da tribo.

Os primeiros dias lhe foram renovadores. Banhou-se nos inúmeros rios da região, aprendeu a caçar (sim, índio mata animais para comer), pescar, fazer ticujá para pegar pássaros. Com o passar dos anos, dominou a técnica da queimada das matas (sim, índio queima a mata também) para fazer as mesmas lavouras de sempre, principalmente o cultivo da mandioca.

O ex-administrador apenas observava. Livre das obrigatoriedades instintuais de anotações para compreender com profundidade cada processo, cada etapa de cada procedimento, cada componente de cada etapa de cada procedimento de cada processo, assistia à vida dos outros como se assiste a um filme. Mas os dias foram passando..

De uma hora para outra a caça pareceu se esgotar, os peixes sumiram, os pássaros já não mais sobrevoavam a comunidade e a terra pareceu se recusar a dar alimentos. Rompe Mato deve estar contrariado, pensava a maioria dos indígenas. Os chefes, aconselhados por um grupo de doze índios, tinham certeza disso.

O conselho era acionado nos períodos de crises semelhantes. Suas soluções consistiam no refazer e reaplicar as soluções que alguns aventureiros lhes recomendavam nas poucas vezes que algum deles aparecia por ali. Para validar as recomendações, consultavam os conselhos das duas tribos vizinhas, que adotavam o mesmo procedimento.

Chamou a atenção do forasteiro a adoção das mesmas medidas para problemas supostamente parecidos. A notoriedade de muitos conselheiros se devia justamente a isso: falar de cor cada detalhe da solução. O detalhamento era de ordem tão fantástica, que chegavam a se revezar por algumas semanas, segundo a segundo, minuto a minuto.

Quando faltavam peixes, alimentavam-se de outras fontes de proteína animal; se a terra se recusava a dar alimentos, a tribo se abstinha de seus frutos. Mas era a primeira vez que tudo faltava. Rompe Mato deveria realmente estar furioso. O que fazer? Não havia soluções para este problema nas memórias dos conselheiros.

Ainda não dominavam os esquemas de causa-efeito e tampouco a ideia de que as coisas têm uma lógica interna. Para cada problema que aparecia, consultavam seus vizinhos ou acolhiam as recomendações de forasteiros, muitos deles zombeteiros.

Diferentemente dos pagés, o conselho não se especializou em conselhos. Geralmente seus membros eram escolhidos dentre os voluntários. Como todo índio primitivo, quase sem contato com outras tribos e humanos, vivia para comer e comia para viver, como anotara o ex-executivo. Para que se preocupar com a gestão da tribo, se havia ali caciques, pagés e conselheiros?

Na prática, todo o futuro estava contido no passado, que se repetia continuamente todos os dias. O movimento circular, imperceptível até para o mais brilhante da tribo, parecia ser o máximo de felicidade e prosperidade que se poderia almejar. E todos os seus esforços eram direcionados justamente para que o passado se eternizasse na vivência do presente. Não sabiam disso. Suas ações é que eram a manifestação desse não saber.

Certa vez um forasteiro tentou lhes falar da "estupidez" desses procedimentos, mas foi violentamente repelido e obrigado a deixar a tribo, sob pena de ser esquartejado e comido (esses índios praticavam a antropofagia nestes casos, como forma de fazer desaparecer esse tipo de ameaça à normalidade tribal.). É que as soluções para os problemas (e todos os demais procedimentos) não deviam ser contestadas. Quando apresentadas, era para serem aplaudidas.

Depois de alguns anos, o citadino resolveu voltar para o seu habitat. O que aprendera lhe foi de uma riqueza imensurável e indizível para o retomar de suas atividades profissionais. Sua fortuna se avolumou magicamente em pouco tempo. De vez em quando ainda volta àquela tribo. Cada vez mais raramente...

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