quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Direitos

Vivemos um tempo que pode ser caracterizado pela busca por direitos. A maioria, contudo, não apenas os buscam: batalham por eles. E batalha no sentido pleno do termo, incluindo o uso de recursos que os próprios direitos não recomendam, como agressões e assassinatos.

A impressão que se tem é que uma insanidade coletiva tomou conta de quase todos os ambientes, desde os familiares aos de contornos planetários. Quando a busca por algo vai além do racional, do socialmente aceito e do não prejuízo ao outro tem alta probabilidade de adentrar os territórios da loucura. Ao que tudo indica, essa loucura é gerada pela exacerbação do orgulho profundamente enraizado na mente dessa gente.

Isso não quer dizer, por outro lado, que não se busquem direitos. Mas essa busca tem que ser feita de forma simpática, ainda que o resultado buscado seja negado até com atos violentos. A minha busca por direitos não pode ferir os direitos dos outros, nem mesmo daqueles que negam os direitos pelos quais eu luto. Não posso advogar para mim o direito de ser bem tratado maltratando os outros. Não posso defender o direito à tolerância sendo intolerante.

A exacerbação do egoísmo começa e para na ideia de que tudo posso ter, tudo posso almejar, tenho o direito de querer tudo aquilo que eu imagino. Essa exacerbação se torna demência quando esquece o outro lado: se tenho direitos, alguém tem o dever. Se eu tenho o direito de ser bem tratado, alguém tem o dever de me tratar bem. Se tenho o direito de ser tolerado, alguém tem o dever de ser tolerante. Simples assim. O direito a que eu viso é um dever para alguém.

E a demência se aprofunda quando não é compreendida a consequência do esquema lógico direito-dever. Se eu almejo ser bem tratado, alguém tem que me tratar bem, mas EU TAMBÉM tenho que tratar bem a alguém. Se eu tenho direito à tolerância, alguém tem que me tolerar, mas EU TAMBÉM tenho que tolerar todo mundo, assim como todo mundo tem que me tolerar.

É que direito tem que trazer dever. Se não, não é direito. É, no mínimo, tirania. Só o tirano tem apenas direitos e um dever, que é o dever de ser tirano. E isso vale para todos os direitos, inclusive as cotas raciais. Se admito a existência de raças e algumas delas não têm certos direitos, esses direitos precisam ser a ela garantidos para que elas possam garantir esses mesmos direitos aos outros. É outra forma de dizer a mesma coisa: se pretos têm direito a cotas em hospitais, os pardos também têm que ter, se não tiverem. E todos os demais.

A mentalidade de direito é derivada da mente que reconhece que os direitos que eu busco precisam ser universalizados. O direito precisa tender à universalização, que é corolário de integração, inclusão, associação e tudo o mais que leve à simpatia, empatia, amizade, parceria, amor. O fim a que todo direito teria que almejar é o amor, que é cuidar. E nenhum direito é conquista se não for por esse caminho, ainda que as ilusões de guerras e batalhas sinalizem ao contrário.

Os direitos ampliam, portanto, os espaços de ações humanas. E ações humanas no sentido de compreensão, afeto, a externalização de contentamento com o outro, de proximidade e integração com o outro. Não é simplesmente o fato de ter vaga reservada em supermercado, sinalizada, que vai efetivamente me garantir o direito. Não. Alguém pode ter tudo isso e muito mais, mas ser ignorado, tratado com civilidade e indiferença.

Há o caso da cidade em que todos os cadeirantes tinham acessibilidade plena. Iam e vinham de onde bem entendessem. E pareciam ser, se não felizes, pelo menos contentes com o que a cidade lhes oferecia. Noutra cidade, havia pouca acessibilidade. Mas o povo era tão amoroso que os cadeirantes algumas vezes preferiam usar o apoio carinho das pessoas que os meios de acessibilidade. Não faziam isso porque os meios fossem impróprios, mas porque se sentiam muito felizes com a ajuda que recebiam.

Naturalmente que todos têm o direito de lutar ou buscar os direitos que bem entenderem. E esse direito não lhes pode ser tirado. Mas é fundamental, inclusive para a garantia dos próprios direitos, que vejam e estejam dispostos a praticar as contrapartidas desses direitos em forma de deveres. E agir sempre na plenitude do dever que é, em última análise, o exercício do próprio direito almejado.

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