sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Nãos

Tem sido cada vez mais difícil dizer não às pessoas. Tão difícil que, muitas e muitas vezes, já encontrei pessoas deprimidas por não saber como dizer não a alguém. Quase sempre são as consequências da negação que leva as pessoas a esse cruel estado de espírito. E o pior é que tem sido cada vez mais raro encontrar quem encare com naturalidade o Não como resposta. Mas por que isso está acontecendo?

Você já viu o que acontece com uma criança mimada quando ela pede alguma coisa aos pais (e a quem quer que seja, quando é muito tola) e os pais dizem não? É muito comum que criem uma cena exagerada. Jogam-se ao chão, gritam, esperneiam, enfim, fazem um estardalhaço. Esse comportamento é típico em crianças cujos desejos quase sempre foram atendidos. Quase sempre, porque nas vezes em que não são, aprontam essas cenas tristes.

Os pais devem entender que as crianças passam por fases ou etapas de desenvolvimento. E que essas etapas são naturais, assim como os procedimentos paternos para lidar com os comportamentos delas consequentes. Se as crianças não passarem com os ensinamentos adequados por cada uma das etapas, provavelmente permanecerão em etapas atrasadas para o restante da vida. E serão adultos-crianças ou adultos com comportamentos infantis.

Desde feto até mais ou menos os três anos de idade, a criança vive em um mundo de anomia. Essa etapa se caracteriza pela ausência de leis, normas, regras. Tudo, para a criança, se parece com brinquedo. O mundo é seu brinquedo. O mundo é seu, ainda que desapareça, suma, quando o brinquedo sai de suas vistas. Como o mundo é seu, tudo a criança pode. O peito da mãe é dela, de maneira que ao mesmo tempo em que sacia sua fome, brinca e sente prazer com ele. O dedo da mãe (e de quem quer que seja) também é um brinquedo.

Mas a criança cresce e amplia seu espaço de atuação. Aprende a gatinhar, andar... E aprende a se aventurar. E a correr riscos cada vez maiores. E fica encantada, por exemplo, com os buracos da tomada. Toda vez que ela se aproxima para colocar os dedos lá os pais gritam "Não!!!". Ela toma um susto e os pais a tiram dali. Ela não entendeu nada do grito, mas não pôs o dedinho ali, que poderia ceifar sua vida.

Ela aprende a subir nas cadeiras, nas mesas. E a, novamente, colocar sua vida em riscos. Pais e familiares atentos novamente emitirão a palavra mágica "Não!!!". E outra vez a segurança se estabelece. À medida que o tempo passa, até mais ou menos a idade de 10 a 12 anos, quando o Não fizer parte natural da mentalidade da criança, a fase da heteronomia haverá de dar lugar à etapa de socionomia sem grandes perturbações para os pais e para o pré-adolescente.

Queremos mostrar que é muito raro alguma criança conseguir sair da fase de heteronomia, que é a fase do aprendizado das leis dos outros (hetero = outro e nomia = lei, regra, norma), antes dos 10 anos de idade. A razão disso é que não é fácil sair de um mundo de anomia (a = não, sem, e nomia = lei, regra, norma), sem lei, para outro completamente diferente (heteronomia). A criança vai saindo aos poucos. Tanto é assim que quase tudo a criança pode fazer quando nasce. Os nãos só aparecem muito tempo depois do nascimento, lá pelo primeiro ano de vida. E vão ocorrendo de forma muito lenta no início.

Mas é preciso compreender que os Não são muito poucos em relação aos Sim na vida da criança e de qualquer pessoa. O problema é que o cérebro quase não dá valor para os Sim. Diante de mil Sim, ele vai se concentrar apenas no único Não que receber. Mas são os Não que vão torná-lo mais equilibrado. Reequilibrado, melhor dizendo. É que os Não abrem novas relações neuronais, ampliando a cadeia sináptica. Noutras palavras, os Não exigem que o cérebro amplie sua capacidade compreensiva.

Crianças que saltam da fase de hereronomia não conseguem conviver pacificamente nas etapas de socionomia, que é  o reconhecimento e obediência às infinitas leis dos indivíduos organizados em grupos. E sofrem mais ainda quando os pais os fazem saltar para a distante autonomia, que só pode ser alcançada por aqueles que obedecem às leis dos outros (heteronomia) e dos grupos (socionomia). Na fase de autonomia o indivíduo vê que mesmo seguindo todas as leis é necessário criar outras, para complementá-las, sem transgredi-las. Cria suas próprias leis e as segue. É por isso que autonomia quer dizer "criar leis para si mesmo". Mas sem transgredir nenhuma outra.

Quem não aceita um Não é criança. Ainda que tenha décadas de existência, é criança, age como tal. Quem assim procede acha que tudo lhe pertence, tudo é seu brinquedo, como se tivesse dois ou três anos de idade. Seus pais, talvez desconhecendo esta explicação, não lhe souberam dar limites, não aprenderam a dizer Não. Na verdade, não foram pais, tentaram ser colegas. Nem amigos foram, porque amigo diz Não sem problema algum.

O marido matou a mulher porque ela se recusou a ser simples empregada dele; já a mulher matou o marido porque não admitia que se encontrasse com os amigos para jogar futebol no final de semana. O chefe demitiu o subordinado porque não aceitou a recusa em fazer-lhe favor pessoal no sábado pela manhã, que nada tinha ver com o trabalho, mesmo sabendo que o subordinado era Adventista do Sétimo Dia. O amigo se tornou inimigo porque o outro se recusou a lhe servir de motorista para suas bebedeiras. Os eleitos e candidatos que não aceitam a vitória do adversário e ficam inventando picuinhas para sabotá-lo. Os torcedores do time que não aceita a vitória do adversário. São quase infinitos os exemplos de despreparação para o Não.

Vale dizer, finalmente, que as pessoas têm o livre arbítrio de fazer ou deixar de fazer. E isso precisa ser reconhecido, para o nosso próprio bem. Se não admito o direito do outro de se recusar, de dizer Não, estou dando a ele o direito de não aceitar o meu Não. Essa lição precisa ser ensinada a todos, desde a mais tenra idade, para que tenhamos um mundo de pessoas mais sóbrias, mais compreensivas, mais receptivas, mais humanas.

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