sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Valores

Dia desses voltei a presenciar um fato ainda bastante corriqueiro: a suposta alteração moral de quem ocupa cargos de chefia. Isso pode causar problemas muito graves para a própria pessoa, assim como para os que com ela têm intimidade. Os problemas para a pessoa são diversos, como o isolamento e até a sabotagem, enquanto que, para os amigos, são quase sempre a frustração, aquela estranha sensação de terem convivido por muitos anos com uma pessoa que não conheciam - e que muitas vezes são tomadas equivocadamente como falsas. Vamos ver isso mais de perto.

Quatro amigos entraram ao mesmo tempo para uma empresa. Viviam e conviviam tanto no trabalho quanto fora dele. Suas famílias pareciam compor uma única família, tal era a intimidade que conseguiram auferir. O problema de um, quase sempre, era tido como problema de todos. Todos se ajudavam, assim como todos se zombavam. Eram felizes e tristes juntos.

Um deles, bastante dedicado, foi promovido a chefe deles e outros companheiros de unidade. As coisas, pouco a pouco, começaram a ficar estranhas entre os três amigos e o seu novo superior hierárquico. E a situação se complicou definitivamente quando um deles, com a intenção de ajudar o amigo chefe, resolveu resolver um problema que teria consequências negativas para sua unidade organizacional e que, provavelmente, afetaria o amigo gerente.

Sabendo da ação do subordinado, o chefe o interpelou. Dentre outras coisas, disse para jamais tomar qualquer decisão sem, antes, consultá-lo. E asseverou seu grande descontentamento com o que o ex-amigo fez, tanto que, se essa atitude se repetir, faria a comunicação à chefia do departamento. Triste, magoado, surpreso, sentido-se traído, o amigo relatou o ocorrido aos outros dois amigos. No final do expediente, foram os três se chorar se embebedando a perda definitiva do amigo.

Mas o que aconteceu? Vamos por partes. Toda posição, qualquer que seja ela, exige determinados tipos de comportamentos de quem a ocupa. Do auxiliar administrativo pode ser requerida a atenção para detalhes de documentos e a rapidez na sua confecção. De um gerente, pode ser cobrado o resultado benéfico de cada ação ou o controle severo de algum processo. Essa é a primeira coisa que precisa ser entendida: mudou a posição, mudou o comportamento, devido à mudança da responsabilidade.

Se o ex-amigo tivesse como superior alguém que cobra controle rigoroso das pessoas (e isso é imoral), processos ou resultados (quase sempre isso caracteriza pessoas inseguras), ele estava apenas cumprindo essa diretriz. Quem a tudo quer controlar não permite a criatividade, porque a criatividade não se controla. Não adianta o empregado ser o mais genial do mundo, se estiver em uma organização mecânica, ela não lhe será de muita serventia. Pelo contrário.

Segunda observação. Uma coisa é a mudança de comportamento em relação à posição e outra coisa é a mudança de comportamento moral. A mudança de comportamento em relação à posição são poucas e existem para garantir efetividade de processos e resultados; as mudanças de comportamento moral são a apresentação, o aparecimento de elementos da personalidade que estavam ausentes e que a investidura na nova posição fez aparecer.

Isso quer dizer que não foi a personalidade da pessoa que mudou para pior. As pessoas não involuem, não retrocedem, não desaprendem (só esquecemos o que não aprendemos). O que aconteceu é que aquele comportamento ruim estava oculto. Pessoas autoritárias podem se passar por anjos durante boa parte da sua vida não porque são desonestas ou dissimuladas, mas porque nenhuma circunstância apareceu para fazer eclodir aquele comportamento repudiado.

As pessoas só mudam para melhor. Quem não tem determinado traço de personalidade, que já aprendeu a superá-lo e a eliminá-lo, jamais o apresentará novamente. Eu imaginava que jamais falaria qualquer tipo de palavrão. E ninguém (e eu também) lembrava qualquer ocorrência minha neste sentido. Até que um dia, fazendo trabalhos domésticos sozinho, soltei um palavrão que me surpreendeu. Isso quer dizer que esse traço ainda permanece em mim.

Terceira e última coisa: quem ocupa cargo de chefia não está lá para resolver o problema de seus subordinados. Um chefe não é chefe para que receba os problemas de seu pessoal. Da mesma forma que o maestro não toca todos os instrumentos dos componentes de uma orquestra, o chefe está ali para coordenar a produção e o processo de produção da unidade. Não está ali para mandar simplesmente.

Como consequência, todo indivíduo precisa aprender a fazer suas tarefas (e a resolver os problemas inerentes a elas) a partir das diretrizes da chefia e da organização. Se a diretriz do chefe controlador for "não faça nada sem me avisar", isso tem que ser seguido. Os chefes modernos, ao incentivarem seu pessoal a inventar formas mais efetivas (de maior eficiência e eficácia), podem despertar neles a criatividade. E ser criativo é incontrolável.

Assim, ao invés do chefe repreender o ex-amigo, se agisse em uma unidade ou organização que privilegiasse a inovação o teria parabenizado, do ponto de vista gerencial. Do ponto de vista moral, que diz respeito à lealdade, amizade e tudo o que a fraternidade representa, teria sido grato para o resto da vida.

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