domingo, 21 de junho de 2020

Tuas Atitudes são Evoluídas?

As atitudes são reações automáticas, quase instintuais, acerca daquilo que nos rodeia ou acontece. São uma espécie muito distinta do que se pode chamar ação. Esse caráter distintivo é justamente o seu caráter semi-instintual, meio impulsivo. Também são uma forma de reação a alguma coisa, de maneira que elas quase nunca iniciam um procedimento, mas reagem a algo, são consequências, não causas.

Também não podem ser confundida com os costumes, apesar de se assemelharem a eles. Os costumes são quase todos inconscientes, de forma que não se sabe o porquê de determinados comportamentos e crenças, e muito menos com os hábitos, que denotam quase sempre aspectos negativos. As atitudes podem ser deletérias ou benéficas. E é aqui que repousa a necessidade de se nos repensar como elas estruturam nossos procederes.

Todos os seres humanos (e talvez até alguns animais superiores, como os bonobos e chimpanzés) são capazes de perceber suas atividades. Isso implica na possibilidade de recolocá-las novamente nos nossos pensamentos depois que elas foram praticadas e serem objeto de reflexão. Como o mundo e as realidades mudam constantemente, também as atitudes precisam ser repensadas, tanto para evitar anacronismos quanto para inconveniências desastrosas.

Certo colega, todas as vezes que vê alguém fazendo alguma coisa, como que automaticamente começa a fazer o mesmo. Se alguém está lavando louças, sem perceber ele começa a lavá-las ou a secar as loucas já lavadas. Enquanto faz isso, continua a dialogar com a pessoa com a qual interage. Fazer o que o interlocutor está fazendo é como se fosse um pano de fundo da interação.

Outra atitude parecida é a que consiste em auxiliar o outro, mas com a devida aceitação prévia. Por exemplo, quando se vê alguém, conhecido ou desconhecido, muito atarefado, com muita coisa para fazer, a atitude natural é socorrer essa pessoa. Pode ser alguém tentando transportar um móvel de um lugar o outro, como um veículo ou mesa, mas também pode ser o socorro a indivíduos necessitados, que duas pessoas poderiam fazer melhor e mais rápido.

Essas atitudes benéficas, como demonstra a experiência, são aprendidas desde a mais tenra idade. Começam com a visualização, a vivência da atitude dos pais e das pessoas próximas, continuam com a imitação e se consolidam com a internalização quase inconsciente delas. É como um impulso que move essas pessoas a dividir o esforço do outro, amenizando-o.

Há inúmeras variantes dessas atitudes benéficas. Elas são praticadas quase sempre por pessoas que consideramos de coração bom. Contudo, é possível percebê-las nos que imaginamos ter um coração mau, como os homicidas. Quando eles veem alguém próximo com alguma necessidade que possam suprir o fazem automaticamente. Isso mostra mais uma vez que talvez fazer o bem seja nossa característica inata mais evidente.

Mas há as atitudes deletérias. Elas são o inverso daquelas que consideramos benéficas por duas razões. Primeiro, não visam à ajuda, cooperação e colaboração, mas ao impedimento de que o interlocutor ou indivíduo-alvo prossiga com o que está fazendo; e, segundo, sua finalidade, seu caráter teleológico, é o mal, a destruição.

A mais comum das atitudes deletérias é a indiferença. E, talvez, a menos perniciosa. Ela se dá pela falta de percepção de alguém em relação ao que o outro está fazendo. Imagine uma pessoa com várias sacolas de supermercado nas mãos, sem ter como chamar um táxi ou abrir uma porta. Pessoas passam ao redor, veem aquela situação quase desesperada e vão embora. Essa é a indiferença.

Inúmeros casos como de indiferença acontecem todos os dias com a gente, em casa e no trabalho. Se estamos fazendo alguma coisa e papéis caem no chão, há quem não se disponha a apanhá-los gentilmente. Se alguém está limpando a casa e precisa de ajuda, as outras podem ver essa necessidade sem que se disponham a ajudar. Se um colega está precisando de solução para um problema e sabemos resolver, se não o ajudarmos somos indiferentes. A doença da indiferença é curada com o autoconhecimento.

A segunda atitude mais perversa é a da crítica. A crítica é um veneno que precisa ser extirpado da mente e do coração de todos os seres humanos. Certa vez um senhor que vivia nas ruas foi acusado de maltratar um cachorro porque, para socorrê-lo durante um temporal, só conseguiu pegar o animal pela cauda. As pessoas, ao invés de ajudar no resgate, constrangeram aquele senhor acusando-o de maus tratos. Mas também acontece no trabalho, quando ninguém se dispõe a fazer alguma coisa e outro o faz, mas recebe a crítica por alguma coisa ter saído errado. Crítica é sempre veneno, destruição. O veneno da crítica só se extirpa com conhecimento e amor.

A terceira e mais grave de todas as atitudes deletérias é a sabotagem. A sabotagem é movida por um impulso com a intenção deliberada de que algo positivo feito por outras pessoas seja alcançado. A sabotagem não deseja o sucesso do outro ou que alguma coisa aconteça. Mas não o faz diretamente, às claras, à vista de todos. Age sempre às escondidas, disfarçada, para que o evento fracasse com um ar de naturalidade. Indivíduos sabotadores são doentes mentais severos que precisam de ajuda constante e intensa, psíquica e espiritual.

Nossas atitudes denotam nossa evolução humana, moral e espiritual. O aspecto humano é decorrente da capacidade de ver no outro as dificuldades e possibilidades que vemos em nós; a moral está vinculada à estética da vida e da harmonia entre tudo o que existe e acontece no mundo; e a espiritual é essa vinculação de tudo e de todos com o bem. Quando mais colaborativos, mais evoluídos, mais propensos às ajudas automáticas, que são nossas atitudes.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Dois Conceitos Intrigantes

Todo campo do conhecimento científico é estruturado em conceitos. Os conceitos são espécies de unidades básicas de retratação da realidade. São como os quarks para o mundo físico-químico: formam todos elementos dos átomos, que se agrupam em moléculas e que a cada agrupamento vão formando tudo o que tem e o que não tem vida. No campo da Administração, dois conceitos parecem ser fundamentais na atualidade: unidade de comando e unidade de direção.

A chave para a compreensão desses conceitos é a palavra unidade. Mas, antes, é necessário que se entenda o que é uma organização, uma vez que a ideia de unidade só tem sentido sob a perspectiva organizacional. Uma organização é todo agrupamento humano que tem pelo menos um objetivo em comum. Isso quer dizer que toda vez que duas ou mais pessoas decidem, negociam entre elas, fazer alguma coisa, essa alguma coisa é o objetivo que elas passam a ter em comum.

O objetivo em comum, ao mesmo tempo em que forma a organização, também dá sentido à somatória dos esforços das pessoas que a compõem. Na prática, tudo o que cada pessoa que faz parte da organização só deve fazer coisas que levem ao alcance do objetivo pretendido. Se uma ou mais pessoas passarem a fazer coisas que pouco ou nada têm a ver com o objetivo, pouco a pouco a organização vai se desfazendo a desaparecer por completo.

É o objetivo a ser perseguido, portanto, que faz com que as pessoas se unam e criem as organizações. Também é ele que, quando alcançado, desfaz as organizações. Também é ele que, quando as pessoas se recusam a persegui-lo, justificam a retirada dos membros da organização. Dessa forma, o objetivo é o que promove a organização, a sua unidade. Pessoas devem perseguir os mesmos objetivos. Essa é a ideia primária de unidade em gestão.

Unidade de comando é o acordo que as pessoas fazem, quando aceitam fazer parte de uma organização, de obedecer ao seu superior. E apenas a ele. O indivíduo que trabalha em uma loja como vendedor precisa obedecer ao seu chefe, o gerente de vendas porque está subordinado a ele. Se ele obedecer ao gerente de marketing, estará criando uma confusão muito grande e corre o risco de ser considerado insubordinado, porque isso é insubordinação ao seu chefe imediato.

O gerente de vendas, assim como o gerente de marketing, estão subordinados ao gerente geral, que comanda toda a loja. Os dois gerentes (de marketing e de vendas) lhe devem obediência. E essa obediência é a unidade de comando: estão respeitando o acordo inicial de obedecer a um único comando, que é aquele do seu chefe imediato. O respeito às orientações da chefia imediata por parte de seus subordinados garante a unidade de comando, que nada mais é do que o funcionamento adequado da parte da organização a que esses subordinados fazem parte. Quem estiver no setor de vendas deve obedecer ao gerente de vendas; quem estiver no setor de marketing, ao gerente de marketing.

E, agora, uma coisa estranha. Nenhum subordinado pode obedecer a ninguém, a ninguém mesmo, que não seja seu chefe imediato. O vendedor não deve obedecer ao gerente de marketing, nem ao gerente geral, nem ao superintendente da cadeia de lojas e muito menos ao presidente ou dono de todas as lojas! Nem aos clientes, nem ao governo, enfim, a ninguém. Se obedecer a outra pessoa que não seja seu chefe, quebrou a cadeia de comando, quebrou a organização.

Unidade de direção é simples: todos devem mirar o mesmo objetivo. Como vimos, é o objetivo que fundamenta a existência de uma organização. Sem um objetivo, nenhum motivo há para que as pessoas se organizem e se unam. A ideia de unidade de direção é fácil de entender: todos devem caminhar para a mesma direção. Nada de um querer fazer uma coisa e outro outra coisa. O que um fizer tem que ajudar o outro no seu trabalho para que ambos andem para o mesmo destino desejado.

Se um vendedor quer vender mais roupas de verão, outro quer vender churrasco e um terceiro quer ficar apenas olhando as mulheres bonitas passar, não há unidade de direção. Não há, portanto, organização. E provavelmente essa empresa irá quebrar.

Se o prefeito de uma cidade quer eliminar a fome em sua cidade e o secretário de finanças quer investir em salários de aposentados, não há unidade de direção. Se o marido quer que sua família obtenha autonomia financeira em 10 anos e a esposa quer investir tudo o que ganha em um carro esportivo, também não há.

Sem a unidade de direção, o gerenciamento fica um caos. Mais do que isso, sem unidade de comando, toda a organização, pequena ou gigantesca, sente seus efeitos perversos. O que provoca a falta de unidade de comando e de direção é a insubordinação. O subordinado precisa cumprir o que foi acertado com o seu superior e só a ele dar ouvidos. Ainda que o navio esteja naufragando, é ao comandante que todos devem obedecer.

É preciso observar que ordens absurdas não se cumprem. Se o chefe mandar o servidor cometer um crime, essa ordem deve ser desconsiderada. Nesses casos, as ouvidorias organizacionais e institucionais precisam ser acionadas, para registro, para o caso de quem não ocupa posições táticas ou estratégicas. Geralmente quem está nessas posições superiores da hierarquia preferem simplesmente deixar a organização.

Unidade de comando e unidade de direção já foram estruturais nos primeiros momentos da Administração. Hoje há inúmeros formatos organizacionais que lidam com fenômenos poliárquicos, em que a hierarquia é distribuída horizontalmente (e até mesmo não existir), com pessoas recebendo ordens e obedecendo a múltiplas chefias. Mas organizações mais seculares, centradas na disciplina e rigidez relacionais, continuam nelas estruturadas, como o exército e muitas igrejas.

Quando alguém que está na posição de chefia, seja o vendedor de cachorro quente da rua ou o presidente da república, disser que seus imediatos lhe devem obediência, simplesmente está colocando em prática a unidade de comando. Quando diz que eles devem mirar o mesmo objetivo, está praticando unidade de direção. E anote essa mentalidade: se alguém desobedecer, ou será demitido ou será destituído da posição de chefia. Tirania? Talvez. Para a ciência da Administração, apenas uma forma de compreender a realidade e agir em conformidade com essa mentalidade.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Teu Passado é Imaculado?

Todos os seres humanos habitantes do planeta são imperfeitos. Mas parece que quase ninguém sabe disso. Se sabe, a impressão que se tem é que esqueceu. Se não esqueceu, infelizmente, quase todos agem de má fé, com desonestidade. Exigem a perfeição de que não é perfeito. Querem um passado imaculado, sem mácula, sem manchas, de quem não é capaz de agir com perfeição. Vejamos isso.

Duas coisas precisam estar claras em relação à perfeição. A primeira é a noção de falha; a segunda é o que chamamos de falhas infinitesimais. A primeira é consequência natural da falta de habilidade e conhecimentos; a segunda, da busca incessante da perfeição. A primeira habita o coração e a mente de quem apenas vive a vida e, de vez em quando, tenta fazer algo novo; a segunda, daqueles que já deram um passo adiante do compromisso consigo e com o mundo de ser cada vez melhor.

Ainda que um número cada vez maior de pessoas já nasçam sabendo (na verdade, relembram o que já aprenderam), a maioria absoluta da população do planeta tem que começar todo o processo de aprendizado do novo. Desde aprender a ler e escrever letras, fonemas, palavras, frases, orações, períodos, parágrafos e textos escritos completos até a ler e interpretar os fatos e fenômenos do mundo e da vida. É preciso aprender que nuvens negras com ventos significam tempestade ou que cara fechada significa raiva.

Como em todo processo de aprendizagem, é preciso errar para aprender. Evidentemente que há os que acertam da primeira vez, mas não acertam sempre todas as vezes que forem refazer, inclusive aquilo que acertaram da primeira vez. Se consigo andar de bicicleta da primeira vez que montei, se eu continuar andando de bicicletas muitas vezes, um dia vou cair. É uma questão matemática, a chamada teoria dos grandes números.

E isso vale para tudo na vida, principalmente o comportamento humano. Se alguém não sabe tratar bem alguém e resolve aprender, pode acertar na primeira vez, mas vai errar muitas e muitas vezes ao longo da vida porque não conseguirá controlar uma série de coisas que interferem tanto na disposição, na vontade, quanto na sua capacidade físico-fisiológica para tal. E entra em jogo novamente a teoria dos grandes números.

Tratar bem não é apenas falar mansamente, como querem alguns, mas também ouvir com atenção, procurar entender o que lhe falam, interpretar com adequação, escolher as palavras mais adequadas para falar, fazer os movimentos corporais adequados, franzir os olhos corretamente, fazer os movimentos de braços e mãos certos e inúmeras, digo de novo, inúmeras características do tratar bem que nem pensamos. Mas alguém pode perceber uma falha, grande ou pequena dessas inúmeras coisas, e interpretá-la como algo inadmissível. E quem disse que ela não tem razão na razão dela? Ali está uma mácula imperdoável.

É claro que há falhas gritantes e em número considerável no agir humano. Mas, novamente, essas falhas só são imperdoáveis sob o olhar extremo e rigoroso do indivíduo ignorante ou maldoso. Ignorante, porque desconhece que é impossível agir com perfeição sob a interpretação de todos os seres humanos do planeta; maldoso, porque exige perfeição que ele mesmo, o acusador, é incapaz de alcançar. Cobra de alguém a perfeição que só cabe a Deus.

O segundo ponto são as falhas decorrentes da busca incessante da perfeição. Aqui, o indivíduo já sabe tratar bem, por exemplo, e está consciente de que falha em vários aspectos do relacionamento humano. Não falha por que quer, não comete erros de livre vontade, mas porque ainda não tem a coordenação mental e fisiológica que lhe permita agir de forma coordenada em consonância com as principais características do bem tratar. Talvez suas falhas sejam percebidas por um pequeno número de pessoas, ou sentida por um número maior, uma vez que o relacionamento humano também é sentido - talvez mais sentido do que percebido.

Essas falhas se vão eliminando aos poucos, muito lentamente, com "pedaços" infinitamente pequenos de reduções. É o que chamo de falhas infinitesimais, porque são perceptíveis quase sempre apenas por quem as comete. Mas, ainda assim, aos olhos de quem está comprometido com o alcance da perfeição, são percebidas. E também aqui, no campo do infinitamente pequeno, também há falhas que podem ser consideradas imperdoáveis.

O que queremos mostrar é que não tem jeito. Todos, sem exceção, temos falhas graves, imperdoáveis, animalescas, grotescas, primitivas. Mas isso é apenas um ponto de vista, uma forma de interpretação, principalmente quando retirada de contexto externo. O âmbito do contexto interno ao indivíduo, inclusive, é insondável por parte de quem faz as denúncias desses comportamentos supostamente imorais, não humanos.

Ora, se todos são imperfeitos, se não há uma viva alma na face do planeta que não tenha errado feio, por que as pessoas acusam de forma tão perversa a maldade que o outro fez? Porque elas estão retratando a si mesmas. O mal que aponto nos outros é o mal que habita em mim. É uma autodenúncia. Em algumas outras isso é tão latente que fica até explícito o desejo de voltar a cometer aquele mesmo delito que elas denunciam de forma pavorosa.

Toda denúncia, que muitos consideram "crítica" (como é o caso de uma corrente filosófica com muitos adeptos), é uma demonstração de correspondência entre o ambiente externo (aquilo que é denunciado) e o interno (aquilo que há em mim). Quando denuncio algo bom (que é apontar um fato benigno para mim), essa bondade me habita. É que somos compostos de "recursos" bons e ruins. Bom é tudo aquilo que faz um bem ao outro e a mim simultaneamente, enquanto ruim é aquilo que prejudica ao outro e/ou a mim.

O nosso ambiente interno, portanto, é o resultado de tudo o que já amealhamos nas vidas. Ele contém coisas que não são visíveis, tangíveis, que é, efetivamente, do que somos feitos. Como somos imperfeitos, temos mais coisas ruins dentro de nós do que boas, porque já fizemos muito mais males do que bens. É por essa razão que as pessoas tendem a reconhecer com mais nitidez e rigidez aquilo que é ruim do que aquilo que é bom.

Assim, todas as vezes que houver denúncias graves sobre alguém, não tenha dúvidas: o denunciante está pleno daquilo. E ninguém melhor do que ele para fazer a denúncia, porque é especialista naquele tipo de crime. Talvez ele seja até o maior criminoso que exista, o que tem mais manchas, máculas, sobre aquilo que denuncia.

domingo, 12 de abril de 2020

Existe Notícia Verdadeira?

As chamada fake news (notícia falsa) parecem ser a moda da vez. E, como moda, serve para tudo, principalmente para desacreditar o que alguém ou algum meio de comunicação diz. Se alguém tivesse a sensatez de vasculhar o que está por trás desse fenômeno, provavelmente não mais daria ouvidos a essa... insensatez. Vejamos isso mais de perto.

Atente para as duas palavras "Notícia" e "Falsa", separadamente. O que é uma notícia? É qualquer informação que alguém passa para outra pessoa. "Meu vizinho está feliz" pode ser uma notícia, se comunicada para outra pessoa, assim como "Não estou me sentindo muito bem", hoje. O pode, como condição, é uma exigência para que uma informação seja considerada notícia. De que vale uma informação, se ninguém tem interesse nela, se ninguém a deseja?

Pois é, aqui começa o segredo das fake news. Uma informação só começa a ser notícia se tiver pessoas que tenham algum tipo de interesse nela. Para o inimigo do meu vizinho, saber que ele está feliz pode ser importante, da mesma forma que minha mãe valoriza qualquer informação a meu respeito. A finalidade de toda notícia é deixar as pessoas informadas, cientes, conhecedora do que está acontecendo.

Mas você há de convir que nem toda notícia lhe interessa, não é verdade? Aqui vem o segundo segredo: ainda que você não tenha interesse na notícia, quem comunica vai tentar lhe convencer de que você tem que se interessar por ela. O comunicador, a pessoa ou mídia que comunica, não tem o interesse simples e singelo de lhe deixar a par das coisas. Ele quer lhe convencer. Melhor seria dizer que ele quer lhe dominar. Se você acredita que aquilo é importante, você deu um passo seguro para fazer parte daquela legião.

Legião? Sim. Uma legião é um grupo de combatentes. E, como combatentes, sua missão é combater. Esclareçamos isso. Quando alguém quer simplesmente noticiar, ele dá a informação e pronto, acabou. Quando alguém lhe quer dominar, ele encontrar inúmeras formas diferentes para lhe falar a mesma coisa, até encontrar uma que desperte sua atenção e interesse. Simples assim. É que todo mundo tem algum tipo de antena ligada com o mundo, o que significa dizer que alguma coisa de qualquer notícia pode lhe interessar.

Vejamos um exemplo. Digamos que você gosta de soltar pipa (que no Norte dizem soltar papagaio). E imagine que queiram lhe meter na cabeça que as gramas de jardins são venenosas. Quando você ouve a primeira vez, pode até dar uma gargalhada. Só que todos os dias você ouve diferentes versões das gramas venenosas de jardins. Até você ouvir uma que fale de vento ou de lugares onde se soltam pipas (ou se empinam papagaios). Imediatamente isso vai chamar sua atenção, ainda que seja para você rir. No mínimo você vai parar para refletir ou comentar com os parceiros de pipa. Com os bombardeios diários, da mídia, parceiros e desconhecidos, você nem desconfia que foi fisgado. Agora faz parte da legião.

Façamos um resumo até agora. Se você não tem interesse, a fake news não lhe alcança. Então ela vai tentar lhe convencer de que você precisa ter interesse nela. Convencido, você passa a fazer parte de sua legião, combatendo versões contrárias da "notícia" e reforçando em si e nos outros a única versão verdadeira. Como é única, ela é a verdade. E como só existe uma verdade, todas as outras versões são falsas. Vamos ver de perto a palavra "Falsa".

"Falsa" é contrário de "Verdadeira", certo? Semanticamente, sim; pragmaticamente, não. Vejamos esses dois palavrões linguísticos. Do ponto de vista da lógica das palavras (veja que são palavras que as fake news usam, ainda que falem de números ou outras coisas), falso é contrário de verdadeiro, assim como preto é contrário de branco e alto de baixo. Mas, na prática, quase sempre não é verdade.

Preto é o oposto de branco? E o cinza é o quê? O que quer dizer meio branco ou esbranquiçado? Alto é o contrário de branco? A partir de que altura se pode dizer que alguém é alto e a partir de que metragem pode ser considerado baixo? Digamos que seja 1,70m, essa altura vale para considerar uma casa ou arranha-céu alto ou baixo? Veja que, na prática, as coisas, de fato, não têm um contrário. Isso quer dizer que, também na prática, não existe "Verdade".

Se eu falo que meu vizinho está feliz, eu falo porque associei a felicidade ao fato dele estar cantando e sorrindo. Mas, de fato, ele poderia estar cantando e sorrindo para tentar disfarçar sua tristeza para alguém que estivesse ali com ele. Da mesma forma, ele poderia estar treinando cantar aquela música porque ele é ator, e eu não sabia. As coisas que falamos, que noticiamos, portanto, são sempre a nossa visão, a nossa percepção. Representam apenas uma parte da realidade, que é aquela que conseguimos captar. As inúmeras outras são deixadas de lado. A gente só noticia o que nos interessa noticiar.

Acontece que as pessoas que noticiam imaginam que a Verdade existe. E a Verdade é o que elas veem e pensam. Muitas delas o fazem por desconhecimento desses aspectos mais profundos do mundo e da realidade. Mas muitas outras o fazem de forma proposital porque o interesse delas é ter você como aliado para combater os supostos inimigos delas. É aí que você vira um combatente da Legião.

E o que fazer para lidar com as fake news? Aja normalmente. Se você quer noticiar algo para apenas uma pessoa ou pequeno grupo de pessoas, fale diretamente a elas. Se quer fazê-lo para muita gente, faça-o, mas diga que essa é a sua percepção, que você reconhece que ela é apenas uma parte da realidade e que outras posições, até mesmo contrárias à sua, são tão válidas (não verdadeiras) quanto a sua. A sua finalidade passará a ser, então, não puramente falar a sua versão das coisas, mas coletar versões dos outros para aperfeiçoar a sua. É que todas as vezes que juntamos nossa versão com as dos outros, a nossa se transforma e fica mais próxima daquilo que as pessoas imaginam ser a Verdade.

Para vencer as fake news e as Legiões, aja com prudência. Não acredite: teste as versões. Não se aproprie delas: aprenda o esquema lógico de cada um. Não deixa que elas se apropriem de você: compare cada uma delas com as outras. Aproveite para aprender. É aprendendo as verdades pessoais das pessoas e das mídias que poderemos identificar nelas suas falsidades e suas verdades, seus bens e seus males. Se você fizer isso, ao invés de ser aprisionado por elas, você alçará voo em direção à liberdade.

domingo, 22 de março de 2020

O Ódio te Domina?

O ódio é um tipo de sentimento que muitos consideram característicos dos seres humanos. Todos os homens e mulheres do planeta sentiriam, sentiram ou sentirão ódio de alguém ou de alguma coisa. Mas será essa percepção correta? Se conhecermos um pouco sobre esse sentimento, talvez essa certeza se desfaça.

Por que as pessoas sentem ódio? De uma forma geral, o ódio surge quando alguém se sente ferido ou ameaçado. Veja vem: quando a pessoa se sente, o que não quer dizer que foi realmente ferido ou ameaçado. Pode ter sido, agora ou no passado; mas pode ser que não. De qualquer forma é ela que se coloca esse sentimento. É algo que vem do ego, de dentro da pessoa. Esse sentimento leva as pessoas a protestar, agredir, ferir e até matar. Analisemos isso mais de perto.

O sentimento de ódio, raiva, representa uma antecipação ou reação a algo, imaginário ou real. Como antecipação, o ódio tenta evitar que aquilo que esteja na imaginação aconteça ou, se for algo concreto, que se desfaça ou amenize. Enquanto reação, é uma forma de equilibrar o ego, causando no outro ou em algo o dano sofrido, seja ele imaginário ou real. Dessa forma, o ódio, a raiva, faz parte da economia mental de muitos seres humanos.

O indivíduo raivoso geralmente é uma pessoa insegura, tímida e/ou frustrada. O ódio é apenas a manifestação externa do seu ego, da sua internalidade. Sob essa ótica, todas as vezes que se assiste a manifestações de ódio está-se diante de alguém que, através desse meio, pede socorro para sua insegurança, timidez ou frustração. Sob esse prisma, portanto, a realidade muda de figura: aquele indivíduo polêmico, crítico, protestante, que gosta de zombar dos outros (zombaria é uma forma disfarçada de demonstrar ódio), enfim, quem tenta ferir o outro proposital para equilibrar sua economia mental não é corajoso, mas medroso.

O ódio é um sentimento; portanto, é um tipo de emoção. E, como toda emoção, pode ser controlado, domesticado, amenizado, pelo menos. Veja o ciúme. Alguns sentem ódio de toda pessoa que chegue próximo da pessoa ou objeto central do ciúme justamente devido ao medo de perder aquilo que, supostamente, lhe pertence. Não é todo mundo que sente ciúme, o que demonstra que os sentimentos nocivos que geram o ódio podem ser controlados e até eliminados. Veja o caso do ódio político dos seguidores de agremiações ou visões de mundo. Sentem raiva dos adversários ou de quem pensa diferente porque têm medo, pavor, de que suas imaginações negativas aconteçam. Em ambos os casos, o medo é tão extremo que se fazem guerras e cometem-se verdadeiros genocídios.

Quem é dominado pelo ódio não admite jamais que exista alguém que não o sinta. É como o desonesto, para quem todas as pessoas são como ele. É como o invejoso, que acha que todo mundo deseja o que o outro tem, que é outra forma de se sentir ódio. Por essa razão, não é recomendável qualquer tipo de diálogo de convencimento ou ensinamento sobre essa doença mental, que é o ódio.

O indivíduo odioso precisa de amor. Ele é um exemplo real, concreto, de que o amor que havia no seu coração e na sua mente foi envenenado pelo medo, oriundo de sua insegurança, timidez ou frustração. Ele não precisa e nem pode ser combatido, principalmente porque ele já está derrotado. Suas manifestações são demonstrações inequívocas de sua derrota, de sua dominação pelo ódio. Ele precisa ser restabelecido, reerguido, levantado.

Lembro de um colega que vive procurando na internet coisas sobre o governo para postar nos grupos sociais. Ele não percebe que está, com isso, demonstrando insegurança, timidez e frustração com alguma coisa ou alguém e pegou o governo para exteriorizá-la. Já vi casos de pessoas que fizeram coisas parecidas apenas porque o governante, na época, era parecido com o homem que seduziu sua esposa e a levou. Isso mostra, também, que o ódio demonstrado para com alguém não significa que a origem seja aquela pessoa sobre a qual a raiva está sendo descarregada. Na maioria das vezes, não é.

Quem sente ódio está doente. E, como todo doente, precisa ser medicado. Mas não existe remédio físico para isso, a não ser para alguns dos sintomas, como taquicardia e até mesmo calmantes, para controlar o corpo. O remédio é mental e espiritual. É preciso harmonizar a mente a partir do treinamento de lembranças boas, prazerosas, amorosas, para recobrir o corpo mental de energias boas, salutares. O remédio espiritual é a constatação pessoal, a partir do exemplo de outras pessoas e da natureza, de que é o bem que move as coisas para a frente, que faz o mundo evoluir. Mas esta tem que ser uma descoberta pessoal, ainda que com o suporte de alguém.

Indivíduos há que já conseguem controlar o seu ódio. Podem até sentir raiva, mas têm facilidade de transformá-lo rapidamente em gestos e atitudes amorosas. Não deixam mais que o germe desse sentimento cruel se lhe apegue. Ainda que não demonstrem explicitamente suas reações fraternas, fazem-nas em particular, seja ajudando através dos outros ou diretamente, através de orações, por exemplo.

Mas há aqueles que já superaram a possibilidade de odiar, pois conseguiram transformar suas mentes e corações em amor. São poucos, mas sua quantidade tem aumentando muito nos últimos anos, principalmente como contrapartida ao crescimento exponencial dos indivíduos raivosos. Os indivíduos amorosos vivem cuidando dos outros, porque amar é cuidar (quem não ama, não cuida). São compreensíveis, pacientes, não debatem, não criticam, não protestam. Têm o conhecimento da doença e sabem quais são os remédios para cada caso. Algumas vezes são odiados ou evitados pelos indivíduos mais raivosos, mas jamais ignorados; na maioria das vezes se transformam no porto seguro daqueles que já não aguentam mais odiar.

Temos assistido ultimamente, com demonstrações explícitas nas redes sociais, ao aumento do ódio. É que as redes dão coragem ao indivíduo medroso, inseguro, tímido e frustrado se manifestar. Não é que alguém pacato (como o tímido é visto) tenha se tornado raivoso. Não há involução de sentimento, o indivíduo não retrograda sentimentalmente. O que acontece é que não havia um estopim ou um meio para o ódio do pacato, do tímido, se manifestar. E como as redes sociais são um meio extraordinário para isso, o ódio tem explodido.

O lado salutar de tudo isso é que agora podemos ver que nossas sociedades são doentes. Não por causa do capitalismo, como querem uns, nem pelo socialismo/comunismo, como querem outros. Capitalismo, socialismo e comunismo são apenas manifestações diferentes do mesmo ódio. Ódio é o amor que enlouqueceu. Nossas sociedades são comunidades enlouquecidas, dementes, doentes. E, como todo doente, precisa de médico. E os médicos são justamente que já se curou dessa doença. São os indivíduos amorosos, que geralmente agem no anonimato.

sexta-feira, 20 de março de 2020

Sobre a Verdade

A verdade é uma palavra que os cientistas evitam pronunciá-las quando da realização de seus estudos e publicação de seus resultados. Por outro lado, as pessoas ditas comuns e uma parte considerável dos chamados pesquisadores, se não a tomam como algo real e concreto de forma consciente, são orientados por ela de forma inconsciente. Para a comunidade científica, parece estar claro que verdade e ciência são incompatíveis. Vejamos isso mais de perto.

Talvez a visão predominante seja a que diz que a verdade é correspondência entre o que se diz e a realidade que é dita. Consequentemente, pelo menos três coisas podem ser evidenciadas nessa concepção. Primeiro, é que algo existe, que é o que chamamos de realidade, que os filósofos chamam de caráter ontológico do mundo. Esse é o primeiro pressuposto a ser admitido para que se possa falar de verdade. O segundo é que alguém (que a filosofia chama de sujeito cognoscente, que conhece) é capaz de perceber a realidade, aquilo que existe. Sem alguém que a perceba, existiria a realidade? Essa é uma pergunta difícil de ser respondida ainda hoje. E terceiro, que a percepção pode ser explicitada, falada, dita, descrita, narrada, explicada, enfim.

Outros aspectos podem ser adicionados a essa matriz triádica para que possamos compreender por que a ciência se mantém afastada da verdade. Um deles é a constante alteração da percepção do sujeito. O que ele sabe (ou o que imagina saber) muda constantemente. A ciência tem mostrado, por exemplo, que a cada vez que relembramos alguma coisa produzimos alteração nela, de maneira que o passado (e consequentemente toda a história) é mutante e mutável. Ainda que a ciência se pretenda um discurso sobre o presente, só poderá fazê-lo sob uma perspectiva do passado.

Se o sujeito muda, sua percepção também muda. E como a percepção dos cientistas é descrita e narrada diversas vezes até que a versão final esteja pronta, mais e mais provocará mudanças naquilo que os cientistas perceberam. Ainda que os dados e toda sorte de evidências empíricas se acoplem às exigências do método, a cada relembrança e reinterpretação, mais e mais distante dos fatos (e da realidade) se mostrarão.

Não é só o sujeito que muda. A realidade, ao que tudo indica, também. Olhemos para as estrelas. Nem mesmo o que vemos sobre elas é real. Nem mesmo o que vemos no nosso próprio sol. O que vemos da nossa estrela nos chega com oito minutos de atraso. O que vemos na estrela mais próxima está 4,22 anos-luz de atraso. Se essa estrela explodisse agora, só perceberíamos a explosão daqui a quatro anos.

E, finalmente, mas não menos importante, o nosso discurso não consegue dar conta da nossa percepção. Não conseguimos traduzir em palavras, desenho, diagrama, fórmula matemática ou qualquer outro meio de representação a realidade em si. Nosso discurso é sempre parcial e seletivo, e isso a ciência tem como comprovar de inúmeras formas. Como nas caricaturas, nossa percepção apenas consegue se concentrar naquilo que mais chama a atenção, deixando de lado o que ela considera secundário.

Análises multivariadas, por exemplo, sempre deixam de lado uma parcela de variáveis que, apesar de serem numerosas, contribuem com baixas cargas de impacto sobre determinado fenômeno sob estudo. E o que falar dos fatos e fenômenos ditos humanos e sociais (como se houvesse algo que não fosse humano e social), que ainda não conseguimos detectar sua enormidade de fatores intervenientes, moderadores, espúrios, extrínsecos, de supressão, dentre inúmeros outros tipos catalogados pela ciência?

A verdade, vista sob esse prisma, teria que dar conta de todos esses aspectos. Como disse um filósofo alemão, a verdade é o todo. Se fôssemos capazes de dar conta de todos os aspectos de um único elétron circulando a eletrosfera do átomo de hidrogênio, provavelmente levaríamos séculos escrevendo sem parar durante todos os segundos do dia. E ainda assim talvez não déssemos conta. Outra eternidade levaria para falar do comportamento do único próton que ele possui. E tempo ainda maior para explicar por que ele não tem nêutron! Para reunir toda a percepção para explicar um único átomo de hidrogênio levaríamos outra eternidade. E para explicar todos os átomos de hidrogênio do universo? E de todos os átomos existentes? E das moléculas que elas formam? E somo se passa das moléculas para a biologia?

Se fôssemos capazes de dar conta de tudo sobre cada parte da realidade produziríamos uma verdade para cada uma. Mas a realidade precisaria parar, não mudar jamais, ser eternamente imutável, para poder ser verdade. Porque a verdade não muda. É a mesma hoje, como terá que ter sido durante a eternidade passada e terá que ser ao longo de toda a eternidade futura. E isso apenas para cada verdade particular, singela, simples, infinitamente pequena.

A realidade, ao que tudo indica, é infinita, no sentido de que é composta de tantas partes e aspectos que não conseguimos sequer imaginá-la. Quando olhamos uma cadeira, a cadeira é uma parte dessa realidade; mas se olhamos mais de perto, ela se transformará em uma fileira insondável de moléculas; mais aproximado ainda ela se tornará aglomerados de átomos; e se continuarmos chegaremos ao que a ciência apenas pode pressupor sobre as partículas fundamentais, como o bóson de Higgs.

Se houver uma verdade, ainda que parcial, simples, singela, infinitamente localizada, não pode ser acessada, ainda, pelos cientistas. Não de forma sóbria, honesta, humilde. A não ser que o cientista salte para fora da ciência, o que não é demérito de ninguém, porque, mais cedo ou mais tarde, todos os seres humanos dão esse salto. Mas é preciso admitir, ter consciência, de que não há discurso e nem percepção humana capazes de dar conta da realidade-em-si, como diria o mesmo filósofo alemão.

Quando saltamos para fora da ciência, quase sempre entramos no campo das crenças. Crença é acreditar que algo é da forma como falamos e pronto. Na crença não há possibilidade do discurso do outro estar correto. Apenas nós estamos certos. Os outros tanto não estarão com a verdade quanto serão inimigos dela, porque o nosso discurso é o real, a verdade.

Todas as vezes que não admitimos que outra percepção seja uma parte da realidade entramos no campo da religião. Transformamos nossas falsas ou verdadeiras concepções da realidade em dogma. Muitas vezes os cientistas fazem isso de forma inconsciente, mas em muitas outras o fazemos de forma desonesta. É preciso conhecer a ciência e suas muitas limitações para que possamos agir com sobriedade em um mundo cujos dogmas estão, cada vez mais, se colocando como verdades. E verdade, como os dogmas, não se questiona. Eles existem para serem cridos e obedecidos.

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

E a tua contribuição?

Talvez a maior causa dos conflitos humanos seja a falta de contribuição de algumas pessoas para com os esforços dos demais. Ou a contribuição aquém do esperado, segundo a percepção de algum dos indivíduos do grupo. Essa assimetria entre o esperado e a contribuição efetiva intensifica no cérebro o descontentamento. Daí para a emergência do conflito é um pulo.

Quando os indivíduos apenas formam grupo, a assimetria das contribuições muitas vezes é relegada a segundo plano. A razão disso é que todo grupo é apenas reunião de pessoas, estar juntos, física ou virtualmente, como nos tempos contemporâneos pela internet. O grande atrator dos grupos é o sentimento de pertença, estar perto, relacionamento. O grupo se torna uma espécie de meio para fins individuais.

Nos grupos, portanto, quando o comportamento de um passa a incomodar outro, geralmente há a reclamação; se o incômodo continua, quase sempre há a retirada do indivíduo que gera o conflito ou os incomodados se retiram. Há casos, naturalmente, que se transformam em conflitos, e até os que geram homicídios, mas são exceções.

Os conflitos são mais frequentes quando os grupos são organizações. Uma organização é todo agrupamento humano (portanto é um tipo de grupo) que tem pelo menos um objetivo em comum negociado entre seus membros. Uma família é um tipo de organização porque há mais de uma pessoa (é um grupo) com objetivo determinado (existem para realizar alguma coisa) em que cada membro tem que desempenhar alguma função (cada indivíduo precisa ter alguma responsabilidade).

A partir dessa definição é possível constatar que há famílias que não são organizações. Isso significa que seus membros não sabem qual é a razão de sua existência, que objetivos pretendem alcançar conjuntamente. E alcançar objetivos de forma conjunta significa que cada um dos membros precisa ter clara a sua contribuição para que o objetivo seja alcançado. Se algum indivíduo familiar não sabe o que tem que fazer, ele não faz parte da organização; não é, efetivamente, membro da família. Ele apenas faz parte do grupo.

É por isso que há conflitos, por exemplo, entre os pais. Há pai que não sabe qual é a sua contribuição familiar. Pensa que sua responsabilidade termina com a entrega de dinheiro para a esposa pagar as contas e suprir as necessidades de todos ali, fazendo-a informalmente empregada doméstica. Acha que não tem responsabilidade do carinho para com os filhos (e com a esposa, naturalmente), cuidado com as tarefas escolares e disciplina dos filhos, dentre outros afazeres essenciais. Essa é uma grande causa de conflitos nos lares.

Mas há esposas que acham que sua responsabilidade é apenas dar à luz. Depois que trouxe filhos ao mundo, sua responsabilidade parece cessar e se transforma em amiga dos filhos. Quando trabalham, muitas vezes adquirem a mentalidade de homem, pensando que apenas pagar as contas resumem suas obrigações. Não percebem que, sendo ou não empregada oficialmente, precisam dividir as tarefas com os demais membros da família, o que inclui marido, filhos e outros agregados.

Filhos bem educados têm responsabilidades desde crianças. Com poucos anos de idade já podem guardar seus brinquedos, contribuindo com o objetivo familiar de "deixar o lar organizado". Também já podem colocar a roupa suja no lugar adequado para depois ser lavada, contribuindo com o objetivo familiar de "Estar sempre limpo e asseado". À medida que crescem podem ajudar a limpar a casa, lavar a louça e a roupa, e assim por diante. Sempre, sempre é fundamental que cada um dê a sua contribuição. Ao contribuir, as possibilidades de conflitos são mínimas.

Nas organizações, quando cada indivíduo é contratado é-lhe dito exatamente com o que ele deve contribuir. Professores são instruídos a "lecionar 20 horas semanais", "realizar pesquisas durante 10 horas semanais" e "planejar suas atividades por 10 horas semanais". Instituições mais profissionalizadas vão mais longe e dizem exatamente o tamanho e qualidade da contribuição, como é o caso do indivíduo que foi contratado para "publicar 5 artigos científicos por semestre em revistas qualificadas com pelo menos B1 no Qualis/Capes na área de Ensino".

Procure ver quem é o membro da sua família com quem você mais se afina. Se você contribui muito, provavelmente você vai se ver em quem contribui tanto quanto você; se você acha que alguém é folgado, que não trabalha, provavelmente você tem conflito com ele. Se você contribui com muito pouco ou você é o folgado da família, provavelmente você não se dê muito bem com quem sustenta a família ou tem bastante inveja dessa pessoa (ou as duas coisas ao mesmo tempo).

Analise os membros do seu trabalho. Se você faz apenas o que o emprego pede, provavelmente você não vê com bons olhos aquele colega muito produtivo e entusiasmado para o trabalho. Talvez você até monte nele, quando tem oportunidade. Provavelmente vocês não se bicam.

Por que isso? É porque a gente se agrupa por afinidade. Não são os contrários que se unem, como a fantasia social prega. Trabalhador se afina com trabalhador. Quanto mais alguém contribui com seu esforço, mais pessoas que gostam de contribuir procurarão se unir a ela. Por outro lado, quanto mais alguém contribui, realiza feitos interessantes, maior a possibilidade de ser alvo de ódio, indiferença e chacota dos que não gostam tanto assim de contribuir.

Olhe à sua volta. Aquele com quem mais você entra em conflito muito provavelmente é o seu oposto. Aquele com mais você se afina é o retrato mais acabado de você. Quem mais bate palma para você é o mais parecido contigo e vice-versa. Por isso, muito cuidado com quem você elogia sempre e com quem você tenta denegrir constantemente. Suas atitudes dirão o quanto contribuis para a organização a que pertences.

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...