domingo, 12 de abril de 2020

Existe Notícia Verdadeira?

As chamada fake news (notícia falsa) parecem ser a moda da vez. E, como moda, serve para tudo, principalmente para desacreditar o que alguém ou algum meio de comunicação diz. Se alguém tivesse a sensatez de vasculhar o que está por trás desse fenômeno, provavelmente não mais daria ouvidos a essa... insensatez. Vejamos isso mais de perto.

Atente para as duas palavras "Notícia" e "Falsa", separadamente. O que é uma notícia? É qualquer informação que alguém passa para outra pessoa. "Meu vizinho está feliz" pode ser uma notícia, se comunicada para outra pessoa, assim como "Não estou me sentindo muito bem", hoje. O pode, como condição, é uma exigência para que uma informação seja considerada notícia. De que vale uma informação, se ninguém tem interesse nela, se ninguém a deseja?

Pois é, aqui começa o segredo das fake news. Uma informação só começa a ser notícia se tiver pessoas que tenham algum tipo de interesse nela. Para o inimigo do meu vizinho, saber que ele está feliz pode ser importante, da mesma forma que minha mãe valoriza qualquer informação a meu respeito. A finalidade de toda notícia é deixar as pessoas informadas, cientes, conhecedora do que está acontecendo.

Mas você há de convir que nem toda notícia lhe interessa, não é verdade? Aqui vem o segundo segredo: ainda que você não tenha interesse na notícia, quem comunica vai tentar lhe convencer de que você tem que se interessar por ela. O comunicador, a pessoa ou mídia que comunica, não tem o interesse simples e singelo de lhe deixar a par das coisas. Ele quer lhe convencer. Melhor seria dizer que ele quer lhe dominar. Se você acredita que aquilo é importante, você deu um passo seguro para fazer parte daquela legião.

Legião? Sim. Uma legião é um grupo de combatentes. E, como combatentes, sua missão é combater. Esclareçamos isso. Quando alguém quer simplesmente noticiar, ele dá a informação e pronto, acabou. Quando alguém lhe quer dominar, ele encontrar inúmeras formas diferentes para lhe falar a mesma coisa, até encontrar uma que desperte sua atenção e interesse. Simples assim. É que todo mundo tem algum tipo de antena ligada com o mundo, o que significa dizer que alguma coisa de qualquer notícia pode lhe interessar.

Vejamos um exemplo. Digamos que você gosta de soltar pipa (que no Norte dizem soltar papagaio). E imagine que queiram lhe meter na cabeça que as gramas de jardins são venenosas. Quando você ouve a primeira vez, pode até dar uma gargalhada. Só que todos os dias você ouve diferentes versões das gramas venenosas de jardins. Até você ouvir uma que fale de vento ou de lugares onde se soltam pipas (ou se empinam papagaios). Imediatamente isso vai chamar sua atenção, ainda que seja para você rir. No mínimo você vai parar para refletir ou comentar com os parceiros de pipa. Com os bombardeios diários, da mídia, parceiros e desconhecidos, você nem desconfia que foi fisgado. Agora faz parte da legião.

Façamos um resumo até agora. Se você não tem interesse, a fake news não lhe alcança. Então ela vai tentar lhe convencer de que você precisa ter interesse nela. Convencido, você passa a fazer parte de sua legião, combatendo versões contrárias da "notícia" e reforçando em si e nos outros a única versão verdadeira. Como é única, ela é a verdade. E como só existe uma verdade, todas as outras versões são falsas. Vamos ver de perto a palavra "Falsa".

"Falsa" é contrário de "Verdadeira", certo? Semanticamente, sim; pragmaticamente, não. Vejamos esses dois palavrões linguísticos. Do ponto de vista da lógica das palavras (veja que são palavras que as fake news usam, ainda que falem de números ou outras coisas), falso é contrário de verdadeiro, assim como preto é contrário de branco e alto de baixo. Mas, na prática, quase sempre não é verdade.

Preto é o oposto de branco? E o cinza é o quê? O que quer dizer meio branco ou esbranquiçado? Alto é o contrário de branco? A partir de que altura se pode dizer que alguém é alto e a partir de que metragem pode ser considerado baixo? Digamos que seja 1,70m, essa altura vale para considerar uma casa ou arranha-céu alto ou baixo? Veja que, na prática, as coisas, de fato, não têm um contrário. Isso quer dizer que, também na prática, não existe "Verdade".

Se eu falo que meu vizinho está feliz, eu falo porque associei a felicidade ao fato dele estar cantando e sorrindo. Mas, de fato, ele poderia estar cantando e sorrindo para tentar disfarçar sua tristeza para alguém que estivesse ali com ele. Da mesma forma, ele poderia estar treinando cantar aquela música porque ele é ator, e eu não sabia. As coisas que falamos, que noticiamos, portanto, são sempre a nossa visão, a nossa percepção. Representam apenas uma parte da realidade, que é aquela que conseguimos captar. As inúmeras outras são deixadas de lado. A gente só noticia o que nos interessa noticiar.

Acontece que as pessoas que noticiam imaginam que a Verdade existe. E a Verdade é o que elas veem e pensam. Muitas delas o fazem por desconhecimento desses aspectos mais profundos do mundo e da realidade. Mas muitas outras o fazem de forma proposital porque o interesse delas é ter você como aliado para combater os supostos inimigos delas. É aí que você vira um combatente da Legião.

E o que fazer para lidar com as fake news? Aja normalmente. Se você quer noticiar algo para apenas uma pessoa ou pequeno grupo de pessoas, fale diretamente a elas. Se quer fazê-lo para muita gente, faça-o, mas diga que essa é a sua percepção, que você reconhece que ela é apenas uma parte da realidade e que outras posições, até mesmo contrárias à sua, são tão válidas (não verdadeiras) quanto a sua. A sua finalidade passará a ser, então, não puramente falar a sua versão das coisas, mas coletar versões dos outros para aperfeiçoar a sua. É que todas as vezes que juntamos nossa versão com as dos outros, a nossa se transforma e fica mais próxima daquilo que as pessoas imaginam ser a Verdade.

Para vencer as fake news e as Legiões, aja com prudência. Não acredite: teste as versões. Não se aproprie delas: aprenda o esquema lógico de cada um. Não deixa que elas se apropriem de você: compare cada uma delas com as outras. Aproveite para aprender. É aprendendo as verdades pessoais das pessoas e das mídias que poderemos identificar nelas suas falsidades e suas verdades, seus bens e seus males. Se você fizer isso, ao invés de ser aprisionado por elas, você alçará voo em direção à liberdade.

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