sexta-feira, 17 de abril de 2020

Teu Passado é Imaculado?

Todos os seres humanos habitantes do planeta são imperfeitos. Mas parece que quase ninguém sabe disso. Se sabe, a impressão que se tem é que esqueceu. Se não esqueceu, infelizmente, quase todos agem de má fé, com desonestidade. Exigem a perfeição de que não é perfeito. Querem um passado imaculado, sem mácula, sem manchas, de quem não é capaz de agir com perfeição. Vejamos isso.

Duas coisas precisam estar claras em relação à perfeição. A primeira é a noção de falha; a segunda é o que chamamos de falhas infinitesimais. A primeira é consequência natural da falta de habilidade e conhecimentos; a segunda, da busca incessante da perfeição. A primeira habita o coração e a mente de quem apenas vive a vida e, de vez em quando, tenta fazer algo novo; a segunda, daqueles que já deram um passo adiante do compromisso consigo e com o mundo de ser cada vez melhor.

Ainda que um número cada vez maior de pessoas já nasçam sabendo (na verdade, relembram o que já aprenderam), a maioria absoluta da população do planeta tem que começar todo o processo de aprendizado do novo. Desde aprender a ler e escrever letras, fonemas, palavras, frases, orações, períodos, parágrafos e textos escritos completos até a ler e interpretar os fatos e fenômenos do mundo e da vida. É preciso aprender que nuvens negras com ventos significam tempestade ou que cara fechada significa raiva.

Como em todo processo de aprendizagem, é preciso errar para aprender. Evidentemente que há os que acertam da primeira vez, mas não acertam sempre todas as vezes que forem refazer, inclusive aquilo que acertaram da primeira vez. Se consigo andar de bicicleta da primeira vez que montei, se eu continuar andando de bicicletas muitas vezes, um dia vou cair. É uma questão matemática, a chamada teoria dos grandes números.

E isso vale para tudo na vida, principalmente o comportamento humano. Se alguém não sabe tratar bem alguém e resolve aprender, pode acertar na primeira vez, mas vai errar muitas e muitas vezes ao longo da vida porque não conseguirá controlar uma série de coisas que interferem tanto na disposição, na vontade, quanto na sua capacidade físico-fisiológica para tal. E entra em jogo novamente a teoria dos grandes números.

Tratar bem não é apenas falar mansamente, como querem alguns, mas também ouvir com atenção, procurar entender o que lhe falam, interpretar com adequação, escolher as palavras mais adequadas para falar, fazer os movimentos corporais adequados, franzir os olhos corretamente, fazer os movimentos de braços e mãos certos e inúmeras, digo de novo, inúmeras características do tratar bem que nem pensamos. Mas alguém pode perceber uma falha, grande ou pequena dessas inúmeras coisas, e interpretá-la como algo inadmissível. E quem disse que ela não tem razão na razão dela? Ali está uma mácula imperdoável.

É claro que há falhas gritantes e em número considerável no agir humano. Mas, novamente, essas falhas só são imperdoáveis sob o olhar extremo e rigoroso do indivíduo ignorante ou maldoso. Ignorante, porque desconhece que é impossível agir com perfeição sob a interpretação de todos os seres humanos do planeta; maldoso, porque exige perfeição que ele mesmo, o acusador, é incapaz de alcançar. Cobra de alguém a perfeição que só cabe a Deus.

O segundo ponto são as falhas decorrentes da busca incessante da perfeição. Aqui, o indivíduo já sabe tratar bem, por exemplo, e está consciente de que falha em vários aspectos do relacionamento humano. Não falha por que quer, não comete erros de livre vontade, mas porque ainda não tem a coordenação mental e fisiológica que lhe permita agir de forma coordenada em consonância com as principais características do bem tratar. Talvez suas falhas sejam percebidas por um pequeno número de pessoas, ou sentida por um número maior, uma vez que o relacionamento humano também é sentido - talvez mais sentido do que percebido.

Essas falhas se vão eliminando aos poucos, muito lentamente, com "pedaços" infinitamente pequenos de reduções. É o que chamo de falhas infinitesimais, porque são perceptíveis quase sempre apenas por quem as comete. Mas, ainda assim, aos olhos de quem está comprometido com o alcance da perfeição, são percebidas. E também aqui, no campo do infinitamente pequeno, também há falhas que podem ser consideradas imperdoáveis.

O que queremos mostrar é que não tem jeito. Todos, sem exceção, temos falhas graves, imperdoáveis, animalescas, grotescas, primitivas. Mas isso é apenas um ponto de vista, uma forma de interpretação, principalmente quando retirada de contexto externo. O âmbito do contexto interno ao indivíduo, inclusive, é insondável por parte de quem faz as denúncias desses comportamentos supostamente imorais, não humanos.

Ora, se todos são imperfeitos, se não há uma viva alma na face do planeta que não tenha errado feio, por que as pessoas acusam de forma tão perversa a maldade que o outro fez? Porque elas estão retratando a si mesmas. O mal que aponto nos outros é o mal que habita em mim. É uma autodenúncia. Em algumas outras isso é tão latente que fica até explícito o desejo de voltar a cometer aquele mesmo delito que elas denunciam de forma pavorosa.

Toda denúncia, que muitos consideram "crítica" (como é o caso de uma corrente filosófica com muitos adeptos), é uma demonstração de correspondência entre o ambiente externo (aquilo que é denunciado) e o interno (aquilo que há em mim). Quando denuncio algo bom (que é apontar um fato benigno para mim), essa bondade me habita. É que somos compostos de "recursos" bons e ruins. Bom é tudo aquilo que faz um bem ao outro e a mim simultaneamente, enquanto ruim é aquilo que prejudica ao outro e/ou a mim.

O nosso ambiente interno, portanto, é o resultado de tudo o que já amealhamos nas vidas. Ele contém coisas que não são visíveis, tangíveis, que é, efetivamente, do que somos feitos. Como somos imperfeitos, temos mais coisas ruins dentro de nós do que boas, porque já fizemos muito mais males do que bens. É por essa razão que as pessoas tendem a reconhecer com mais nitidez e rigidez aquilo que é ruim do que aquilo que é bom.

Assim, todas as vezes que houver denúncias graves sobre alguém, não tenha dúvidas: o denunciante está pleno daquilo. E ninguém melhor do que ele para fazer a denúncia, porque é especialista naquele tipo de crime. Talvez ele seja até o maior criminoso que exista, o que tem mais manchas, máculas, sobre aquilo que denuncia.

Nenhum comentário:

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...