sexta-feira, 20 de março de 2020

Sobre a Verdade

A verdade é uma palavra que os cientistas evitam pronunciá-las quando da realização de seus estudos e publicação de seus resultados. Por outro lado, as pessoas ditas comuns e uma parte considerável dos chamados pesquisadores, se não a tomam como algo real e concreto de forma consciente, são orientados por ela de forma inconsciente. Para a comunidade científica, parece estar claro que verdade e ciência são incompatíveis. Vejamos isso mais de perto.

Talvez a visão predominante seja a que diz que a verdade é correspondência entre o que se diz e a realidade que é dita. Consequentemente, pelo menos três coisas podem ser evidenciadas nessa concepção. Primeiro, é que algo existe, que é o que chamamos de realidade, que os filósofos chamam de caráter ontológico do mundo. Esse é o primeiro pressuposto a ser admitido para que se possa falar de verdade. O segundo é que alguém (que a filosofia chama de sujeito cognoscente, que conhece) é capaz de perceber a realidade, aquilo que existe. Sem alguém que a perceba, existiria a realidade? Essa é uma pergunta difícil de ser respondida ainda hoje. E terceiro, que a percepção pode ser explicitada, falada, dita, descrita, narrada, explicada, enfim.

Outros aspectos podem ser adicionados a essa matriz triádica para que possamos compreender por que a ciência se mantém afastada da verdade. Um deles é a constante alteração da percepção do sujeito. O que ele sabe (ou o que imagina saber) muda constantemente. A ciência tem mostrado, por exemplo, que a cada vez que relembramos alguma coisa produzimos alteração nela, de maneira que o passado (e consequentemente toda a história) é mutante e mutável. Ainda que a ciência se pretenda um discurso sobre o presente, só poderá fazê-lo sob uma perspectiva do passado.

Se o sujeito muda, sua percepção também muda. E como a percepção dos cientistas é descrita e narrada diversas vezes até que a versão final esteja pronta, mais e mais provocará mudanças naquilo que os cientistas perceberam. Ainda que os dados e toda sorte de evidências empíricas se acoplem às exigências do método, a cada relembrança e reinterpretação, mais e mais distante dos fatos (e da realidade) se mostrarão.

Não é só o sujeito que muda. A realidade, ao que tudo indica, também. Olhemos para as estrelas. Nem mesmo o que vemos sobre elas é real. Nem mesmo o que vemos no nosso próprio sol. O que vemos da nossa estrela nos chega com oito minutos de atraso. O que vemos na estrela mais próxima está 4,22 anos-luz de atraso. Se essa estrela explodisse agora, só perceberíamos a explosão daqui a quatro anos.

E, finalmente, mas não menos importante, o nosso discurso não consegue dar conta da nossa percepção. Não conseguimos traduzir em palavras, desenho, diagrama, fórmula matemática ou qualquer outro meio de representação a realidade em si. Nosso discurso é sempre parcial e seletivo, e isso a ciência tem como comprovar de inúmeras formas. Como nas caricaturas, nossa percepção apenas consegue se concentrar naquilo que mais chama a atenção, deixando de lado o que ela considera secundário.

Análises multivariadas, por exemplo, sempre deixam de lado uma parcela de variáveis que, apesar de serem numerosas, contribuem com baixas cargas de impacto sobre determinado fenômeno sob estudo. E o que falar dos fatos e fenômenos ditos humanos e sociais (como se houvesse algo que não fosse humano e social), que ainda não conseguimos detectar sua enormidade de fatores intervenientes, moderadores, espúrios, extrínsecos, de supressão, dentre inúmeros outros tipos catalogados pela ciência?

A verdade, vista sob esse prisma, teria que dar conta de todos esses aspectos. Como disse um filósofo alemão, a verdade é o todo. Se fôssemos capazes de dar conta de todos os aspectos de um único elétron circulando a eletrosfera do átomo de hidrogênio, provavelmente levaríamos séculos escrevendo sem parar durante todos os segundos do dia. E ainda assim talvez não déssemos conta. Outra eternidade levaria para falar do comportamento do único próton que ele possui. E tempo ainda maior para explicar por que ele não tem nêutron! Para reunir toda a percepção para explicar um único átomo de hidrogênio levaríamos outra eternidade. E para explicar todos os átomos de hidrogênio do universo? E de todos os átomos existentes? E das moléculas que elas formam? E somo se passa das moléculas para a biologia?

Se fôssemos capazes de dar conta de tudo sobre cada parte da realidade produziríamos uma verdade para cada uma. Mas a realidade precisaria parar, não mudar jamais, ser eternamente imutável, para poder ser verdade. Porque a verdade não muda. É a mesma hoje, como terá que ter sido durante a eternidade passada e terá que ser ao longo de toda a eternidade futura. E isso apenas para cada verdade particular, singela, simples, infinitamente pequena.

A realidade, ao que tudo indica, é infinita, no sentido de que é composta de tantas partes e aspectos que não conseguimos sequer imaginá-la. Quando olhamos uma cadeira, a cadeira é uma parte dessa realidade; mas se olhamos mais de perto, ela se transformará em uma fileira insondável de moléculas; mais aproximado ainda ela se tornará aglomerados de átomos; e se continuarmos chegaremos ao que a ciência apenas pode pressupor sobre as partículas fundamentais, como o bóson de Higgs.

Se houver uma verdade, ainda que parcial, simples, singela, infinitamente localizada, não pode ser acessada, ainda, pelos cientistas. Não de forma sóbria, honesta, humilde. A não ser que o cientista salte para fora da ciência, o que não é demérito de ninguém, porque, mais cedo ou mais tarde, todos os seres humanos dão esse salto. Mas é preciso admitir, ter consciência, de que não há discurso e nem percepção humana capazes de dar conta da realidade-em-si, como diria o mesmo filósofo alemão.

Quando saltamos para fora da ciência, quase sempre entramos no campo das crenças. Crença é acreditar que algo é da forma como falamos e pronto. Na crença não há possibilidade do discurso do outro estar correto. Apenas nós estamos certos. Os outros tanto não estarão com a verdade quanto serão inimigos dela, porque o nosso discurso é o real, a verdade.

Todas as vezes que não admitimos que outra percepção seja uma parte da realidade entramos no campo da religião. Transformamos nossas falsas ou verdadeiras concepções da realidade em dogma. Muitas vezes os cientistas fazem isso de forma inconsciente, mas em muitas outras o fazemos de forma desonesta. É preciso conhecer a ciência e suas muitas limitações para que possamos agir com sobriedade em um mundo cujos dogmas estão, cada vez mais, se colocando como verdades. E verdade, como os dogmas, não se questiona. Eles existem para serem cridos e obedecidos.

Nenhum comentário:

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...