sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Valores

Dia desses voltei a presenciar um fato ainda bastante corriqueiro: a suposta alteração moral de quem ocupa cargos de chefia. Isso pode causar problemas muito graves para a própria pessoa, assim como para os que com ela têm intimidade. Os problemas para a pessoa são diversos, como o isolamento e até a sabotagem, enquanto que, para os amigos, são quase sempre a frustração, aquela estranha sensação de terem convivido por muitos anos com uma pessoa que não conheciam - e que muitas vezes são tomadas equivocadamente como falsas. Vamos ver isso mais de perto.

Quatro amigos entraram ao mesmo tempo para uma empresa. Viviam e conviviam tanto no trabalho quanto fora dele. Suas famílias pareciam compor uma única família, tal era a intimidade que conseguiram auferir. O problema de um, quase sempre, era tido como problema de todos. Todos se ajudavam, assim como todos se zombavam. Eram felizes e tristes juntos.

Um deles, bastante dedicado, foi promovido a chefe deles e outros companheiros de unidade. As coisas, pouco a pouco, começaram a ficar estranhas entre os três amigos e o seu novo superior hierárquico. E a situação se complicou definitivamente quando um deles, com a intenção de ajudar o amigo chefe, resolveu resolver um problema que teria consequências negativas para sua unidade organizacional e que, provavelmente, afetaria o amigo gerente.

Sabendo da ação do subordinado, o chefe o interpelou. Dentre outras coisas, disse para jamais tomar qualquer decisão sem, antes, consultá-lo. E asseverou seu grande descontentamento com o que o ex-amigo fez, tanto que, se essa atitude se repetir, faria a comunicação à chefia do departamento. Triste, magoado, surpreso, sentido-se traído, o amigo relatou o ocorrido aos outros dois amigos. No final do expediente, foram os três se chorar se embebedando a perda definitiva do amigo.

Mas o que aconteceu? Vamos por partes. Toda posição, qualquer que seja ela, exige determinados tipos de comportamentos de quem a ocupa. Do auxiliar administrativo pode ser requerida a atenção para detalhes de documentos e a rapidez na sua confecção. De um gerente, pode ser cobrado o resultado benéfico de cada ação ou o controle severo de algum processo. Essa é a primeira coisa que precisa ser entendida: mudou a posição, mudou o comportamento, devido à mudança da responsabilidade.

Se o ex-amigo tivesse como superior alguém que cobra controle rigoroso das pessoas (e isso é imoral), processos ou resultados (quase sempre isso caracteriza pessoas inseguras), ele estava apenas cumprindo essa diretriz. Quem a tudo quer controlar não permite a criatividade, porque a criatividade não se controla. Não adianta o empregado ser o mais genial do mundo, se estiver em uma organização mecânica, ela não lhe será de muita serventia. Pelo contrário.

Segunda observação. Uma coisa é a mudança de comportamento em relação à posição e outra coisa é a mudança de comportamento moral. A mudança de comportamento em relação à posição são poucas e existem para garantir efetividade de processos e resultados; as mudanças de comportamento moral são a apresentação, o aparecimento de elementos da personalidade que estavam ausentes e que a investidura na nova posição fez aparecer.

Isso quer dizer que não foi a personalidade da pessoa que mudou para pior. As pessoas não involuem, não retrocedem, não desaprendem (só esquecemos o que não aprendemos). O que aconteceu é que aquele comportamento ruim estava oculto. Pessoas autoritárias podem se passar por anjos durante boa parte da sua vida não porque são desonestas ou dissimuladas, mas porque nenhuma circunstância apareceu para fazer eclodir aquele comportamento repudiado.

As pessoas só mudam para melhor. Quem não tem determinado traço de personalidade, que já aprendeu a superá-lo e a eliminá-lo, jamais o apresentará novamente. Eu imaginava que jamais falaria qualquer tipo de palavrão. E ninguém (e eu também) lembrava qualquer ocorrência minha neste sentido. Até que um dia, fazendo trabalhos domésticos sozinho, soltei um palavrão que me surpreendeu. Isso quer dizer que esse traço ainda permanece em mim.

Terceira e última coisa: quem ocupa cargo de chefia não está lá para resolver o problema de seus subordinados. Um chefe não é chefe para que receba os problemas de seu pessoal. Da mesma forma que o maestro não toca todos os instrumentos dos componentes de uma orquestra, o chefe está ali para coordenar a produção e o processo de produção da unidade. Não está ali para mandar simplesmente.

Como consequência, todo indivíduo precisa aprender a fazer suas tarefas (e a resolver os problemas inerentes a elas) a partir das diretrizes da chefia e da organização. Se a diretriz do chefe controlador for "não faça nada sem me avisar", isso tem que ser seguido. Os chefes modernos, ao incentivarem seu pessoal a inventar formas mais efetivas (de maior eficiência e eficácia), podem despertar neles a criatividade. E ser criativo é incontrolável.

Assim, ao invés do chefe repreender o ex-amigo, se agisse em uma unidade ou organização que privilegiasse a inovação o teria parabenizado, do ponto de vista gerencial. Do ponto de vista moral, que diz respeito à lealdade, amizade e tudo o que a fraternidade representa, teria sido grato para o resto da vida.

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Ordinários

Quase ninguém se dá conta de um fato corriqueiro nas nossas vidas: somos extremamente mal agradecidos com os que nos amam. Não que o façamos por crueldade, de forma planejada, deliberada. Não é isso. É nossa mentalidade que se acostuma com o bem que nos é feito de uma forma tal que, com o tempo, o bem nos parece tão corriqueiro e banal que cai no estágio que chamo de ordinário. Ordinário é isso: a normalidade, o corriqueiro, o comum. Mas essa atitude pode esconder profunda ingratidão.

Carmem foi uma garota muito formosa, muito cobiçada pelos moçoilos de seu bairro. Leitora das revistas de adolescentes, vivia a fantasiar o príncipe encantado que a desposaria e a faria feliz para sempre. Diferente dos adolescentes que conhecia, queria alguém que lhe fizesse vencedora, poderosa, uma verdadeira dama. Não importava sua aparência, se fosse preto ou azul, alto ou magro, deste ou de outro planeta. Queria apenas alguém que se importasse com ela.

Passou o tempo. E apareceu por aquelas redondezas um sujeito simpático, bastante culto, e que se encantou com a senhorita sonhadora. À primeira vista, não era o que desejava, mas o tempo foi mostrando que Aurélio se aproximava bastante da dedicação que a jovem sempre desejou. Apreciava a preocupação do jovem com seus estudos, com o cavalheirismo, com a dedicação que lhe tinha. E em pouco tempo se tornaram marido e esposa.

Passou o tempo. A esposa não percebeu que não respondia mais aos bom dia e boa noite do esposo, não notava o esforço do jovem em lhe preparar um almoço diferente e tampouco se a casa estava arrumada, coisa que a ex-adolescente já não fazia mais. Até o choro do filhinho era culpa do esposo, achava ela. Aurélio passou de cavalheiro a indivíduo sórdido, apesar de seus esforços em fazer o bem à sonhadora esposa.

Outro exemplo interessante foi o da instituição que contratou um professor diferente, como todos diziam. Gostava de ensinar. Gostava tanto que, ao invés de falar mal dos alunos nas rodas de conversa com os professores, relatava as experiências bem sucedidas que fazia. Gostava de pesquisar. Gostava tanto que todo ano publicava vários artigos e livros de sua área e de áreas correlatas. Gostava de ajudar. Gostava tanto que suas pesquisas quase sempre se transformavam em soluções para problemas de sua instituição e de organizações parceiras.

Logo no início, quase ninguém acreditava que alguém pudesse publicar alguma coisa por ali. As primeiras publicações encheram os colegas de incredulidade e satisfação. À medida que se avolumaram e se tornaram constantes, as publicações se transformaram em fontes de inveja e ciúmes. A cada nova publicação, praticamente nenhum entusiasmo. Pelo contrário, ironias e piadas de mau gosto denunciavam a mudança abissal do ambiente. Sábio, o professor contratado pediu para sair.

E não eram apenas as publicações o problema. Os alunos ficaram encantados com as formas diferentes de eles mesmos aprenderem que o novo professor lhes ensinou. E o interessante, diziam-se, é que todos estudavam sozinhos todo o conteúdo da disciplina e mais o que não estava previsto ali. O professor funcionava como um grande maestro, tirando de cada um mais do que podia dar, motivando e liderando aquela massa de jovens em direção ao pleno aprendizado. Ninguém queria fazer a disciplina com outro professor que não fosse aquele forasteiro. E mais conflitos e intrigas aconteceram. Era hora de sair. Intermediou a volta à normalidade. E saiu.

O que se vê nesses exemplos é a perda do encanto inicial. A jovem sempre sonhou com alguém que fosse cavalheiro, mas não conseguiu conviver com alguém assim. A instituição há muito desejou um exemplo de professor, mas não estava preparada para conviver com um deles. Temos sempre a horrível atitude de imaginar que esses anjos são nossos escravos quando eles resolvem fazer parte das nossas vidas. Perdemos a grande oportunidade de aprender com eles. Aprender a ser como eles.

Nossos olhos ainda não estão preparados para ver pessoas elevadas. Quem já se elevou moralmente não fica como acólito bajulando os outros. Não vieram para as nossas vidas para outra coisa que não seja nos ensinar a amar. E amar não é falar "eu te amo" todos os dias. Amar é cuidar. E é isso o que essas pessoas extraordinárias fazem. Cuidam da gente ao nos ensinar como deveríamos ser ou fazer as coisas.

A jovem não conseguia ver a poesia que estava por trás de um almoço feito com delicadeza e tampouco os versos que faziam parte de tudo o que o jovem lhe fazia. Da mesma forma, a instituição não conseguiu perceber a sinfonia que o professor forasteiro estava apresentando, a não ser os seus alunos e instituições que publicavam seus textos. De tão cegos, não conseguimos ainda ver o óbvio: o quão rasteiros somos para elevar nossos olhos para o alto e nos encantar com o luzir das estrelas que por alguns momentos iluminam nossos caminhos, tornando-os, de extraordinários, em ordinários.

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Duas Lições Primorosas

Tem sido muito comum, infelizmente, ler notícias de pessoas que, no passado distante ou recente, foram muito famosas e até mesmo poderosas nas mais profundas necessidades. É o jogador de futebol que, antes milionário, agora mora de favor nos fundos da casa de alguém; o artista de televisão que fora deixado de lado e esquecido pelos seus melhores amigos de outrora; o apresentador que dominava as tardes de domingo que agora quase ninguém mais conhece ou ouviu falar.

Evidentemente que qualquer um faz da sua vida o que bem entender. E é necessário que seja assim. É preciso que cada um cuide de si mesmo para que aprenda as suas limitações, da mesma forma que precisa conhecer os seus pontos fortes, suas fortalezas. Todos nós somos assim. Temos muitos pontos fracos, mas também temos algumas coisas boas, fortes. Nosso desafio é melhorar ainda mais os pontos fortes e tentar transformar em fortes aquilos que ainda nos são fracos.

É este o sentido da vida que, ao que tudo indica, não foi aprendido por esses irmãos que agora se veem fracassados. Ou não tiveram quem lhes ensinassem ou foram ensinados e as deixaram de lado. Por que alguém se torna famoso e poderoso? A resposta é simples: porque tem alguma coisa que as pessoas valorizam. Essa coisa só é valorizada porque as pessoas consideram um bem para elas. A habilidade fantástica do jogador de futebol é muito valorizada porque traz prazer para as pessoas que apreciam o jogo. E é muito mais valorizada quando o jogador habilidoso faz parte do time para o qual as pessoas torcem. Isso significa que famosos e poderosos têm, sim, alguma coisa considerada boa.

O problema, ao que tudo indica, é que enquanto estão no auge da fama esquecem ou não aprenderam outra grande lição: tudo passa. Da mesma forma que a infância miserável de muitos deles passou, também o auge da fama um dia vai passar. Apesar de muitos não acreditarem na possibilidade de um dia deixar de serem ricos e de verem vários casos de colegas que de rico ficaram pobres, acham que esse futuro jamais será a sua cruel realidade.

O que essas pessoas não percebem é que a triste realidade dos outros é uma forma de advertência, um chamamento de atenção para que não façam o que os outros fizeram. Está sendo mostrada ali a realidade nua e triste para que não sigam aquele caminho. Mas, quem se preocupa em aprender com as tristezas dos outros? Se esses irmãos compreendessem essas duas lições, mudariam suas atitudes imediatamente. E fariam pelo menos duas coisas urgentemente.

A primeira era cuidar dos irmãos infelizes. É que cuidar dos outros é consequência de quem realmente aprendeu a lição. Não cuidar é prova de que não aprendeu. A razão? Se nosso irmão hoje famoso e poderoso amanhã ficar na pior, gostaria muito de ter a ajuda dos outros para se levantar. Aquele que não cuidou dos outros pessoalmente quando era poderoso e famoso muito provavelmente não terá quem o ajude, caso ele caia na infelicidade de perder tudo o que tinha.

A segunda coisa é que, ao ajudar os outros, aprendemos a como evitar ficar naquela situação. Se cuido de viciados em álcool, aprendo como se viciar, como se tornar um viciado. E ao saber como se viciar fica mais facilitado não trilhar aquele caminho. Se nossos irmãos hoje miseráveis tivessem praticado a ajuda aos outros, muito provavelmente não teriam jogado fora tudo o que a fama e o poder lhes deram.

Tudo passa. Até a situação lamentável em que os ex-poderosos se encontram hoje também passará. Não há dor que seja eterna, da mesma forma que não há felicidade que dure para sempre neste planeta. E essa lição é universal. Também vale para mim. E para você.

Veja que dons e habilidades você tem e que as pessoas admiram. Veja maneiras de melhorá-los ainda mais, ter mais domínio sobre eles, de maneira que as pessoas aumentem ainda mais a admiração por eles. Procure conhecer pessoas que tinham esses dons e habilidades e fracassaram. Aprenda com elas ajudando-as a se levantar. Com o tempo você perceberá que a ajuda que você dispensou a elas lhe fez ainda mais primoroso nos dons e habilidades.

Não fique receoso de ensinar e tampouco dê ouvidos a quem lhe tenta impedir de fazer isso. Quem recebe a ajuda dos outros jamais esquece. Pode até não retribuir, mas não esquece. Mas, dentre inúmeros que a gente ajudar, alguns serão capazes de levar adiante a corrente da ajuda, replicando aquilo que você deu a eles. E, se um dia você cair (o que pode acontecer), quem sabe aquele que você ajudou não será aquele que lhe ajudará a se levantar?

sábado, 6 de julho de 2019

Primitivos e Civilizados

Conta-se que um executivo muito bem sucedido se desencantou com o enorme sucesso alcançado. De uma hora para outra, segundo os olhos da maioria, abandonou tudo e foi conviver com uma tribo indígena do alto Curuá, quase na fronteira com as Guianas. Ali chegando, muito comunicativo, ficou amigo de todos, principalmente dos caciques. Acostumado aos ambientes de alta liderança, se sentiu à vontade com a feliz situação de não se intrometer na vida da tribo.

Os primeiros dias lhe foram renovadores. Banhou-se nos inúmeros rios da região, aprendeu a caçar (sim, índio mata animais para comer), pescar, fazer ticujá para pegar pássaros. Com o passar dos anos, dominou a técnica da queimada das matas (sim, índio queima a mata também) para fazer as mesmas lavouras de sempre, principalmente o cultivo da mandioca.

O ex-administrador apenas observava. Livre das obrigatoriedades instintuais de anotações para compreender com profundidade cada processo, cada etapa de cada procedimento, cada componente de cada etapa de cada procedimento de cada processo, assistia à vida dos outros como se assiste a um filme. Mas os dias foram passando..

De uma hora para outra a caça pareceu se esgotar, os peixes sumiram, os pássaros já não mais sobrevoavam a comunidade e a terra pareceu se recusar a dar alimentos. Rompe Mato deve estar contrariado, pensava a maioria dos indígenas. Os chefes, aconselhados por um grupo de doze índios, tinham certeza disso.

O conselho era acionado nos períodos de crises semelhantes. Suas soluções consistiam no refazer e reaplicar as soluções que alguns aventureiros lhes recomendavam nas poucas vezes que algum deles aparecia por ali. Para validar as recomendações, consultavam os conselhos das duas tribos vizinhas, que adotavam o mesmo procedimento.

Chamou a atenção do forasteiro a adoção das mesmas medidas para problemas supostamente parecidos. A notoriedade de muitos conselheiros se devia justamente a isso: falar de cor cada detalhe da solução. O detalhamento era de ordem tão fantástica, que chegavam a se revezar por algumas semanas, segundo a segundo, minuto a minuto.

Quando faltavam peixes, alimentavam-se de outras fontes de proteína animal; se a terra se recusava a dar alimentos, a tribo se abstinha de seus frutos. Mas era a primeira vez que tudo faltava. Rompe Mato deveria realmente estar furioso. O que fazer? Não havia soluções para este problema nas memórias dos conselheiros.

Ainda não dominavam os esquemas de causa-efeito e tampouco a ideia de que as coisas têm uma lógica interna. Para cada problema que aparecia, consultavam seus vizinhos ou acolhiam as recomendações de forasteiros, muitos deles zombeteiros.

Diferentemente dos pagés, o conselho não se especializou em conselhos. Geralmente seus membros eram escolhidos dentre os voluntários. Como todo índio primitivo, quase sem contato com outras tribos e humanos, vivia para comer e comia para viver, como anotara o ex-executivo. Para que se preocupar com a gestão da tribo, se havia ali caciques, pagés e conselheiros?

Na prática, todo o futuro estava contido no passado, que se repetia continuamente todos os dias. O movimento circular, imperceptível até para o mais brilhante da tribo, parecia ser o máximo de felicidade e prosperidade que se poderia almejar. E todos os seus esforços eram direcionados justamente para que o passado se eternizasse na vivência do presente. Não sabiam disso. Suas ações é que eram a manifestação desse não saber.

Certa vez um forasteiro tentou lhes falar da "estupidez" desses procedimentos, mas foi violentamente repelido e obrigado a deixar a tribo, sob pena de ser esquartejado e comido (esses índios praticavam a antropofagia nestes casos, como forma de fazer desaparecer esse tipo de ameaça à normalidade tribal.). É que as soluções para os problemas (e todos os demais procedimentos) não deviam ser contestadas. Quando apresentadas, era para serem aplaudidas.

Depois de alguns anos, o citadino resolveu voltar para o seu habitat. O que aprendera lhe foi de uma riqueza imensurável e indizível para o retomar de suas atividades profissionais. Sua fortuna se avolumou magicamente em pouco tempo. De vez em quando ainda volta àquela tribo. Cada vez mais raramente...

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Razão Inversa

Nesses tempos de ódios exacerbados, chama a atenção o fato de algumas pessoas não perceberem que aquilo que elas fazem é exatamente o contrário daquilo que elas falam. Se fossem pessoas chamadas comuns, tudo bem. Mas são pessoas consideradas da elite intelectual do País que procedem dessa forma. O mais agravante é que elas não percebem essa dissonância, o que implica em admitir que o fazem inconscientemente. Como consequência, o que elas falam não é o que efetivamente elas acreditam, o que só nos resta admitir que o que fazem é o que realmente são.

Uma colega escreveu um texto de muito sucesso entre o público que se diz de esquerda. Ali, provava por A + B que a direita é intolerante. Não apenas intolerante, mas detinha como característica tudo o que é doença moral. O texto foi escrito com uma tonalidade tão raivosa, que muitas vezes não tive dúvida de que aquilo era uma autodescrição. A forma como todos os que não compartilhavam com as suas ideias eram tratados era tão aviltante que a intolerância parecia saltar do papel e morder quem o lia.

Li o texto, fiz algumas anotações e na primeira oportunidade conversei com ela. Senti que ela ficou triste quando eu lhe falei que o texto parecia muito raivoso. Fiquei feliz quando ela assentiu que estava com raiva quando o escreveu. Por isso eu mostrei que o texto era uma declaração explícita de intolerância. Para minha surpresa, a colega enraiveceu. Olhou para mim de cima a baixo, bufou e me disse que não estava me reconhecendo. Eu completei dizendo que ela não podia ser intolerante ao escrever defendendo a tolerância. Fui surpreendido com a afirmativa dela de que para defender a tolerância é necessário até ser intolerante. Calei.

Outro colega vivia defendendo nas suas aulas a necessidade da democracia em todos os espaços da vida humana associada. O problema é democracia para ele se resume a escolha. Basta as pessoas escolherem, que ele chama democracia. Seus alunos escolhem fazer trabalho ao invés de prova: isso é democracia, mesmo as notas sendo aferidas, para as meninas, com base no assédio moral e sexual; para os meninos, eram a subserviência. Suas práticas democráticas terminaram no dia em que o pai de uma das alunas assediadas tentou lhe matar e foi demitido.

Há quem chame a atenção dos filhos, quando falam palavrão, com palavrões mais tenebrosos ainda. E não percebem. Tem os que só faltam matar os filhos com agressões físicas apenas para lhes ensinar que não se deve bater nos outros. E não percebem. Há os corruptos que roubam milhões inúmeras vezes, mas ficam profundamente violentos quando descobrem que outros estão roubando. E não percebem. Outros cometem todo tipo de infração no trânsito com o filho do lado e os instruem dizendo que não façam aquilo. E não percebem.

Esses indivíduos estão cegos? São dementes? Não. Apenas os seus conhecimentos estão invertidos. Eles acham que é o que falam o que importa, não as suas ações. Eles não sabem o que é aprender e nem o que é saber. Eles acham que alguém sabe alguma coisa quando fala dessa coisa. Eles não sabem que isso não é saber. Eles confundem discurso com saber. Eles não sabem que saber é fazer.

Um indivíduo só sabe efetivamente alguma coisa se ele souber fazer alguma coisa com o que ele diz saber. Um indivíduo só sabe cozinhar, se ele realmente cozinhar alguma coisa. Uma pessoa só sabe andar de bicicleta, se ela montar em uma bicicleta e sair andando normalmente. Alguém só sabe escrever, se pegar caneta e papel e fizer um texto. É o que fazemos a comprovação do que sabemos. Não o discurso. No máximo, o discurso pode nos dar uma pista do que o outro pode vir a saber.

Voltando aos nossos amigos. Nossa colega não entende de tolerância porque ela não sabe ser tolerante, da mesma forma que a democracia, para o nosso colega, ficou apenas nos discursos antigos que ele memorizou. Como ele não teve a felicidade de aprender as coisas, imaginou que bastava falar que já estava praticando a coisa de que falava. Bastava falar de democracia e fazer as pessoas escolherem o tipo de prova que ele achava que estava sendo democrata. É como a pessoa, que sabendo que as mesas têm pernas e falando delas, já se imaginava como marceneiro.

Ser alguma coisa demora e dói muito. Andar de bicicleta demora e custa vários arranhões pelo corpo. Dói. Saber escrever também demora muito e custa muitas e muitas horas de sofrimento. Ser tolerante também demora. E, acredite, dói muito. Provavelmente teremos que sofrer por décadas para aprendermos a ser tolerantes. É preciso engolir a raiva, o preconceito, o ciúme, a inveja, as dores, o ódio e toda sorte de doença moral. Talvez seja necessário conviver com o déspota e o tirano, tolerando-o, para aprender a ser tolerante. Em outra postagem vou explicar por que isso é necessário.

Ser democrata talvez seja ainda mais doloroso e demorado. Talvez sejam necessárias várias gerações para que aprendamos a sê-lo. Democracia é governo do povo. E o que é governar, se não gerir, se não administrar? E o que é administrar? Administrar é planejar, organizar, dirigir e controlar recursos para alcançar os objetivos de toda uma comunidade. Pergunto eu: quem faz isso? Mais ainda: onde é que está a bendita eleição nisso tudo? Quem foi que disse que para haver democracia tem que haver eleição? Na Grécia, nosso grande modelo de democracia, não havia eleição. Os governantes eram sorteados. Sim. Se fosse hoje, pegaríamos os nomes de todos os cidadãos de uma comunidade e sortearíamos quem seriam os vereadores, o prefeito, os juízes, os promotores e todos os dirigentes.

Da mesma forma, só se ensina os outros a não falar palavrão, se nunca o falarmos. As pessoas só aprendem a não agredir fisicamente as outras, se elas não forem agredidas e não virem agressões no seu dia a dia. Um professor só defende de verdade a educação quando ele faz seus alunos aprenderem a viver bem, a serem felizes, a resolver seus próprios problemas, a amar os outros, a servir, da mesma forma que um indivíduo só poderá ser cidadão se cuidar da sua cidade, da sua casa, do seu quintal, de sua rua, de sua quadra.

Os dicionários dizem que aquelas pessoas que falam uma coisa e agem de forma diferente são chamadas de hipócritas. A hipocrisia é quando a pessoa, conscientemente, tenta fazer as pessoas acreditarem no que elas falam, sem perceberem que elas agem diferente. O hipócrita tenta induzir os outros ao erro. O mundo de hoje está cheio de gente assim, em todos os lugares, sem exceção.

Se é assim, muitos podem pensar, então como identificar o indivíduo digno? Simples: veja sua ação. Não ligue para o que as pessoas falam. Veja o que elas fazem. É que as pessoas dignas não são de fazer muitos discursos porque sabem que os discursos são vazios, se  não há ação. As pessoas dignas agem. Veja no seu trabalho. Aqueles que fazem bem as coisas, não ficam se gabando. Aqueles que são democratas não vivem tentando convencer os outros. Aqueles que fazem o bem não ficam falando mal dos outros.

Se você tirar sua atenção do que as pessoas falam e focalizar o que elas fazem, não tenho dúvida: você verá as pessoas um pouquinho mais parecidas como elas realmente são. Mas, cuidado. Você pode se assustar.

quinta-feira, 6 de junho de 2019

O Mais Poderoso

Durante toda a história da humanidade nos transmitiram a ideia de que o poder é a capacidade de influência que A exerce sobre B para que B faça coisas que, sem essa influência, jamais faria. O homem de corpo avantajado teria mais poder que o franzino, porque poderia utilizar sua influência física (coercitiva, melhor dizendo) para obrigar o outro a lhe obedecer, como fazem muitos chefes de narcotráficos. O chefão da minha empresa tem poder sobre mim porque eu assinei um documento dizendo que eu o obedeceria todas as vezes que ele quisesse que um dos itens de uma lista de responsabilidades minhas fosse executado, poder esse que apelidamos de racional-legal. Esse tipo de poder tem inúmeros outras fontes, além da força física e da lei, como a beleza física, a riqueza material e o conhecimento. Mas parece que as coisas não são bem assim. É provável que isso não seja poder.

O conhecimento que vários campos do conhecimento, especialmente os relacionados ao cérebro, à psique e à espiritualidade, parecem indicar o contrário. Não seria a capacidade de influência a evidência empírica do poder, mas um fenômeno quase insignificante de tão simplório: o servir. Essa concepção é tão revolucionária que uma máxima simples pode ser constituída: Tem mais poder quem mais serve ou o mais poderoso é o maior servidor.

Vários motivos concorrem para essa concepção revolucionária. A primeira é que a subjugação não é o fenômeno predominante no universo para a edificação do equilíbrio que subjaz a tudo. Aquele que subjuga demonstra não poder, mas infantilidade justamente pela sua incapacidade de se relacionar de forma dialógica. O subjugador não é, propriamente, um sujeito pleno, porque lhe faltam conhecimentos e habilidades de compreensão e construção de consenso.

A segunda constatação é decorrente justamente do desequilíbrio de forças. A assimetria de poder é perigosa. O subjugado pode se transformar em traidor. A subjugação pode esconder, por baixo da disciplina e da obediência, um provável inimigo. Como advertiu Maquiavel, daquele que nos ama não esperamos qualquer ação nociva, ainda mais quando esse amor é falso, aparente.

A terceira demonstração é que os avanços civilizatórios não se faz com subjugação, mas com autonomias interdependentes de sujeitos. Imaginamos equivocadamente que as guerras é que fazem os progressos. Não é verdade. As guerras são consequências justamente do predomínio da mentalidade do poder como subjugação e elas terminam justamente quando grupos se unem em relações mais ou menos simétricas para fazer frente aos grupos que lutam pela assimetria. É a união que provoca a paz; a desunião a desfaz.

Outros motivos há para desconfiar dessa herança de mentalidade que coloca a influência como origem do poder. Mas vamos ficar com apenas esses três porque são os mais evidentes e os mais fáceis de servir de reflexão nas nossas práticas cotidianas e históricas.

Parece que a maior demonstração de poder é a capacidade de alguém em fazer coisas. E quanto mais encantadoras e maravilhosas essas coisas, maior é o poder que esse indivíduo detém. E se essas coisas proporcionarem a felicidade e o bem estar de alguém, mais louvável parece ser esse poder. E se essas ações beneficiarem e forem admiradas por um número muito grande pessoas, certamente essa pessoa poderá ser considerada poderosa.

A capacidade de agir no bem, como demonstram os ditames da contemporaneidade, é o que marca a essência do poder. E agir no bem tem uma evidência empírica incontestável: é sempre dirigida para benefício de outro. Agir no bem é uma ação de alteridade, visa ao outro, o benefício de outrem. E agir em benefício do outro é servir.

Fazer coisas é consequência do saber. Se alguém sabe lavar pratos e lava os pratos para alguém, faz o bem para esse alguém; se sabe promover a paz entre as pessoas e efetivamente torna inimigos amigos, todas as vezes que o faz está fazendo o bem, está servindo. A cada coisa que se saiba fazer e que se faz em proveito do outro, estará sempre sendo exemplo dessa visão sobre o poder.

Há indivíduos, portanto, que sabem fazer muito poucas coisas. Muitos são até geniais nas únicas coisas que sabem fazer, como os jogadores de futebol e enxadristas; outros sabem fazer muitas coisas, muitas mesmo, desde limpar privadas e cozinhar a cálculos complexos de matemática e esquemas complicadíssimos de explicações científicas. Quanto mais coisas alguém sabe fazer, maior é o seu potencial de fazer o bem, maior a probabilidade de ter poder.

Uma coisa é saber fazer, outra é fazer. Sei andar de bicicleta, mas não pratico há décadas. Há quem saiba consolar as pessoas, mas fazem essa prática apenas raramente. Mas todas as vezes que alguém pratica o que sabe em benefício de outro estará demonstrando poder, ainda que o beneficiado não valorizar o bem recebido (e isso é muito corriqueiro). Poder de fazer. Poder de servir. Poder de ser acionado sempre que necessário.

O indivíduo poderoso, portanto, não é o que subjuga os outros. Quem subjuga provavelmente só sabe fazer isso: subjugar. Aquele que age de formas variadas para produzir o bem, que tem grande estoque de conhecimentos e os utiliza efetivamente quase sempre, tem um poder de mobilização, influência, referência, atenção, consideração e uma série de características subjetivas que lhe são benéficas que lhe transformam em pessoa muito poderosa. Muito mais poderosa do que quem tem o poder de influência. Aliás, o poder do bem influencia até quem tem o poder de influência. É muito mais poderoso

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Visão Limitada

Se tem uma coisa que pode ser considerada natural em todos os seres humanos é a sua limitada capacidade de ver e perceber as coisas. Somos imperfeitos. E a principal característica da imperfeição é justamente a nossa limitação. No entanto, ao invés disso ser visto como algo triste ou ruim, representa também um desafio que podemos nos colocar, que é o de ampliar os nossos limites. Isso é mais uma confirmação de que tudo o que se nos apresenta como algo ruim, de fato, não o é. Ser limitado, portanto, é a sinalização de que podemos nos ampliar. E ao realizar a ampliação, podemos ver e perceber melhor.

Meu filho de cinco anos fez recentemente duas grandes descobertas. Primeiro ele descobriu que toda conta de subtração parte do todo para as partes. Diminuir é retirar certa quantidade de um todo. Por exemplo: se tenho 15 laranjas e retiro 10, sobram 5. Ele ficou maravilhado com o esquema lógico: as coisas diminuem de tamanho porque perdem suas partes. Na verdade, não é bem uma perda, mas uma distribuição, uma forma de divisão, compartilhamento, como certamente ele descobrirá mais tarde.

A segunda descoberta foi no sentido contrário: somar começa com as partes e termina com o todo. Ele descobriu isso todo feliz ao ver que as 8 pedras de dominó que tinha nas mãos se transformaram em 12, quanto sua irmãzinha de 3 anos lhe deu as 4 que estava segurando. Ele tinha uma parte das pedras e sua irmãzinha outra parte. Quando juntaram suas partes, formou-se um todo, muito parecido com o todo das contas de subtração, que ele aprendera antes. Somar é crescer, descobriu entusiasmado.

Sua irmãzinha ainda não consegue raciocinar nesse nível de abstração. Ela só consegue ver as pedras que tem nas mãos ou nas mãos do irmão. Está impossibilitada, ainda, de ver a soma delas. Não tem ideia de todo e de partes. Sua visão está restrita apenas às partes (que é o mesmo que dizer o todo que cada parte, sozinha, representa). É só isso que ela percebe, por enquanto.

O que minhas duas crianças estão aprendendo é o segredo das coisas. Um segredo muito profundo que, infelizmente, poucos pais têm condições de compartilhar com seus filhos justamente porque lhes falta esse tipo de visão. Isso não quer dizer, contudo, que não compartilhem seus segredos, suas outras visões com seus filhos. Estou apenas querendo dizer que essas coisas complicadas são de consciência (que é a percepção ampliada e aprofundada) de poucas pessoas no planeta terra, de tão difícil que é compreender.

E o segredo é: tudo na vida tem diferentes formas de estar certo. Veja alguns exemplos. Se tenho 10 laranjas e dou 5, fico com 5. Se tenho 8 bananas e dou 3, me restam 5. Se tenho 30/3 de melancias e dou 15/3, fico com 5 melancias. Portanto, há infinitas formas de chegar ao mesmo resultado: 5 objetos.

O mesmo acontece com qualquer coisa. Digamos que quero saber como resolver o problema do analfabetismo. Faço meu estudo e demonstro minha solução a partir do caminho A. Outro cientista, com o mesmo intuito, demonstra que o caminho B é tão viável quanto o meu, apesar de seu caminho ser contrário ao meu. Ele está errado? Estou certo? Não. Cada destino, cada chegada, cada objetivo apresenta inúmeras possibilidades de ser alcançado.

Vejamos outro exemplo. Tem gente que acha que a filosofia do autor Alfa é a mais humana que existe, por n motivos, mas há quem considere que a filosofia de Beta é que é a mais humana, por z motivos, da mesma forma que muitos acham que é a filosofia de Gama a mais humana, pelos motivos y. Só que tem um porém: cada filosofia é contrária às outras. Estão todos errados? Não.

Os fatos e fenômenos do mundo apresentam inúmeras nuances, de maneira que cada indivíduo consegue ver apenas uma delas, isoladamente. É como olhar um automóvel. Quem está na esquerda não consegue ver o que está na frente, atrás e na direita, nem embaixo e nem em cima. Quem está embaixo do carro não consegue ver o que as pessoas que estão na esquerda, direita, na frente, atrás e em cima veem. E todas elas veem coisas diferentes uma das outras. Elas estão erradas? Não. Todas descrevem verdadeiramente o que existe. A diferença é apenas a perspectiva.

Muitos de nossos cientistas e filósofos (e praticamente todo o restante da população do planeta) parecem nem desconfiar disso. Ficam na infantilidade de imaginar que o que veem é o todo e que o que os outros veem não existe, é fantasia, ilusão. É isso o que se chama arrogância: achar que o que veem é a única verdade; prepotência é querer enfiar goela abaixo essa visão monolítica e limitada das coisas.

Pessoas com visões monolíticas não aceitam as visões discordantes dos outros. São ainda tão limitadas que é preciso muita paciência para lidar com elas. Diferentemente da forma como tratam os outros, precisamos, ao lidar com elas, compreender suas limitações. Não carecem de desprezo, porque desprezo é coisa de quem tem visão limitada. Precisam de carinho e compreensão, esses dois ingredientes fundamentais para ampliar a nossa visão limitada.

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...