segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Estranho Amor

O que têm em comum as acusações de "Bolsonaro genocida" e "Luladrão", os desejos de ver alguém apodrecer na cadeia ou imaginar que o outro só ficou rico porque roubou ou faz tráfico de drogas? O que toda crítica, tanto as chamadas construtivas quanto as criminosamente destrutivas, todo ato invejoso, todas as atitudes de ciúmes e todas as fofocas comungam? Pode parecer estranho, mas são todas manifestações de amor. Sim, você não leu errado. Tudo isso são formas de amar. São maneiras estranhas, isso é incontestável, mas são atos de amor. Vejamos o porquê.

A primeira coisa que temos que fazer é saber o que é o amor. Para isso é necessário conhecer a sua fonte, que é o verbo amar. Muita gente acredita piamente que amar é um sentimento, algo que vem do coração. Pode até ser. Mas não é só isso. Quer dizer, amar é muito, mas muito mais do que isso. Talvez o sentimento seja apenas um reflexo tímido do que essa pequena palavra quer dizer e representar. A significação latina realmente diz que amar é um sentimento, mas línguas mais antigas vão além, como é o caso do hebraico e de outras línguas semitas.

Talvez a palavra portuguesa que mais represente com fidelidade o sentido do verbo amar é cuidar. É exatamente essa a significação, por exemplo, do pedido do Cristo para que amássemos ao nosso próximo, a nós e a Deus. Quando cuido de mim, aprendendo e agindo no bem, estou me amando. Quando cuido das pessoas que estão ao meu redor e outros mais além, também estou amando. Quando cuido de cada coisa que Deus fez, também estou amando o Criador. Então amar é fazer alguma coisa, agir, cuidar.

Quando estamos cuidando, estamos demonstrando amor. E quando esse cuidar é muito profundo, um sentimento de bem-estar nos invade e toma conta do nosso coração. É daí que vem a impressão de que o amor é um sentimento, quando, na verdade, é seu reflexo.

E o que seria a ausência do amor? Simples. Se amar é agir, cuidar, fazer alguma coisa, o não amor seria o não agir, o não cuidar, o não fazer alguma coisa, óbvio. Por essa razão, o contrário do amor é a indiferença. E ser indiferente quer dizer não se importar com o outro, não se importar consigo mesmo e nem com Deus. Ser indiferente é não fazer nada, absolutamente nada para nada e para ninguém. Essa é a segunda constatação que se tem que fazer. A primeira é que amar é agir.

Daí advém a conclusão de que o ódio, ciúme, inveja e toda forma de expressão maldosa contra nós mesmos, contra os outros e contra Deus não é desamor, não é indiferença. Quando estamos odiando, acusando, ofendendo, maltratando, enfim, fazendo maldade, não estamos sendo indiferentes. Estamos agindo. Estamos amando. Sim, isso é amor (lembre-se de que o contrário do amor é a indiferença). Só que é um amor enlouquecido, que perdeu a razão. É torpe, desditoso, sórdido. Mas é amor.

A ciência tradicional (como a psicologia e as neurociências) e as ciências espirituais mostram que a inveja é o desejo de ter o que o outro tem. E por essa razão é que odiamos quem tem o que eu não tenho e quero ter. O mesmo acontece com o ciumento, que tem medo de perder aquilo que ele imagina que é dele, como o milhão na sua conta bancária ou os prazeres de seu cônjuge. Em ambos os casos não há indiferença. Há ação. Ação desditosa, maldosa, sem dúvida, mas é ação.

O que acontece é que, na verdade, as pessoas odeiam não é quem tem aquilo que ela não tem, como no caso do ciumento, mas o que ela tem. Eu não odeio o João, que tem um milhão de reais em sua conta bancária. Eu odeio não ter um milhão na minha conta. José não sofre por causa de Maria. Seu sofrimento é motivado pela possibilidade (quase sempre fantasiosa) de perder a esposa. Ele tem medo da possibilidade, não de Maria.

É o que acontece com os que acusam Bolsonaro e Lula. Eles não odeiam Bolsonaro ou Lula. Eles odeiam não fazer e não ter o que esses dois irmãos têm. Se eles tivessem, não odiariam. A acusação de um e de outro é apenas subterfúgio do cérebro em busca de um culpado para aquilo que eu gostaria de ter, ser, fazer, enfim, praticar. É isso, na verdade, o que eles amam ou gostariam de amar.

Todo ódio, toda maldade, realizada ou manifesta em formas de acusações é sempre uma manifestação de desejo, como diz a psicanálise. É um amor que enlouqueceu porque quem odeia coloca essa possibilidade de amar (de ser presidente, de falar incivilidades como um é acusado, de roubar, conforme as acusações contra o outro) na ordem do impossível. Se fosse possível, procuraria um caminho para materializar a possibilidade. Como se vê incapaz, acusa, grita, ladra.

Alguém poderia perguntar, com toda razão, se é lícito deixar o maldoso impune, já que toda acusação é uma forma estranha, esquisita de amar. A resposta também é simples: esse é uma competência exclusiva da justiça, ainda que ela seja uma iniciativa sua. Outra coisa que pode ser feito é agir sempre, em todas as situações, de uma forma impecável, irrepreensível, dentro da lei e de forma amorosamente louvável. Mas, feito o seu papel ditosamente amoroso, continuar a esbravejar é manifestar seu amor sordidamente enlouquecido.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Acreditas na Ciência?

Parece haver uma grande contradição em um fato que tem se tornado corriqueiro: pessoas desesperadas querendo se apegar à verdade da ciência. Isso faz emergir da mente dos cientistas pelo menos duas indagações. A primeira é relativa à possibilidade de se acreditar em alguém ou algo que não se conhece. A segunda é ainda mais desoladora: como buscar a verdade em algo que não a pode garantir? Aqui vamos esclarecer essas duas indagações para que se possa decidir ou não acerca da possibilidade (ou não) de se acreditar na ciência.

Vejamos a possibilidade de se acreditar naquilo que não se conhece. Conhecer é explicar. Um conhecimento é uma explicação qualquer sobre alguém ou sobre alguma coisa. Quando digo que João é uma pessoa maravilhosa porque está sempre disposto a ajudar as pessoas, estou dando uma explicação da maravilha de João, que reside em sua disposição à generosidade. E quanto mais explicações eu consigo sobre as maravilhas de João e outros aspectos de sua vida, mais conhecimentos eu tenho sobre ele.

Mas não bastam apenas as quantidades de explicações. É preciso que elas tenham qualidade. João está sempre disposto a ajudar a carregar as compras, lavar o carro, limpar a calçada, lavar a casa e lavar as louças. Mas quando ele carrega as compras, quebra os produtos mais frágeis; quando lava o carro, molha os bancos de uma tal forma que eles ficam com cheiro insuportável; quando limpa a calçada, gasta material de higiene demais; e quando lava as louças, quebra a maior parte. Veja: a qualidade da ajuda de João é baixa.

Diante disso, volto novamente à questão: é possível confiar em algo que desconhecemos? É possível confiar na ciência, se não sei como ela funciona, não sei o que ela produz, não sei quem a produz, não sei como ter acesso a ela? Em termos comparativos: é possível confiar em um avião feito de papel, se não sei como ele funciona e nem quem vai pilotá-lo?

A ciência está em todo lugar. Está na política, na gestão pública, nas estrelas, no corpo humano, nas águas, nas árvores, enfim, em praticamente tudo. Quando eu digo que acredito na ciência, estou dizendo que sei como a ciência funciona em todos esses setores das vidas. Por exemplo, a ciência da Administração mostra que eleição não é a forma mais adequada de escolher gestores de organizações. Se as pessoas realmente acreditassem na ciência, não aceitariam as eleições para essa finalidade. 

Disso advém que as pessoas não acreditam ou acreditam na ciência. As pessoas simplesmente a aceitam ou a rejeitam, duas coisas muito diferentes. Acreditar ou não exige conhecimento. E não qualquer conhecimento, naturalmente, mas com a quantidade e a qualidade necessária para estabelecerem um juízo de fato, não de valor. Aceitar é menos oneroso porque é um ato que reflete um querer, vontade. Se eu quero comer laranja, eu aceito comê-la.

A segunda questão é desoladora. A ciência não consegue dar conta da verdade. Melhor ainda: a ciência não tem a mínima preocupação em dizer a verdade porque ela não consegue alcançar a verdade. A razão disso é muito simples: a verdade é uma condição de impossibilidade de erro. A verdade é sempre a perfeição. A explicação perfeita, o conhecimento infalível. E isso a ciência não consegue e não pode dar.

Tanto é assim que, para que um conhecimento possa ser considerado científico, tem que apresentar erro. É isso mesmo. O erro é uma das exigências de todo conhecimento científico porque permite que os outros cientistas (e não as pessoas que não são cientistas) afiram, confirmem ou não, a sua validade. O erro é sempre a diferença entre a realidade e o que supomos que ela seja. Dito de forma um pouco exagerada, é a diferença entre a verdade e o que a ciência diz. Um conhecimento é válido quando essa diferença é pequena e, portanto, aceitável pelos outros cientistas. Aliás, são os cientistas que determinam se um conhecimento é ou não válido.

Por causa justamente da bendita diferença entre a realidade e o que a ciência fala, que chamamos de margem de erro, há inúmeras explicações para o comportamento da mesma coisa. É o caso das vacinas. Tanto é plausível (palavra que quer dizer possibilidade real) que uma vacina tenha 50% de eficácia (palavra que quer dizer alcançar um objetivo, que no caso das vacinas é a imunização) e outra 90%. Tanto é possível que um procedimento pedagógico consiga fazer quase todos os alunos de uma turma serem gênios quanto noutra turma provocar um efeito expressivamente menor). Dito de forma mais clara: a ciência tem inúmeras explicações para a mesma coisa. E essas explicações podem até ser aparentemente contraditórias.

Se as pessoas acreditam na ciência devido a alguma ideia de verdade, estão redondamente enganadas. Se é a verdade que as pessoas procuram o distanciamento da ciência é o ato mais recomendado. Como lida com conhecimentos centrados na ideia de erro, tudo o que a ciência fala é extremamente limitado (outra exigência das explicações científicas) e variado. Assim, se acreditam na ciência, devem abandonar a noção de verdade e abraçar a concepção de probabilidade. E, por extensão, parar com a infantilidade de achar que o que o cientista A fala é a única explicação da ciência, em detrimento do conhecimento produzido pelos cientistas B, C, D e E, que afirma o contrário do que fala o cientista A. No fundo, a contradição é apenas aparente. Fruto justamente daquilo que a ciência tem de mais humano: a imperfeição traduzida na ideia de erro. Mas, apesar dos pesares, ainda é o conhecimento mais confiável que existe.

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Guarda tua Crítica

A crítica é tanto um termo quanto uma atitude que tem enganado a muitos, especialmente nas últimas duas décadas. Em algumas áreas do conhecimento ser crítico ou ter pensamento crítico parece ser o píncaro da glória ou fim a que todo ser pensante deveria alcançar. Consequentemente, quem não é crítico no mínimo não tem uma formação intelectual ou desenvolvimento cognitivo substancioso. Mas será que é isso mesmo? Não estão todos os que se agarram nas garras da crítica presos em uma grande ilusão? 

A palavra crítica vem do latim "critĭcus" que, dentre outras significações, quer dizer apreciação e julgamento. Apreciar é dar o devido valor, reconhecer o valor de alguma coisa, aquilo que ele tem de bom, de substantivo. Enquanto julgamento, o termo está se referindo não ao processo de condenar, de apontar as coisas ruins, mas justamente à capacidade de ver as coisas boas. É que sem a capacidade de julgar, as coisas boas não poderiam ser percebidas e, portanto, apreciadas.

E de onde vem, então, essa preocupação que os que se dizem praticar o pensamento crítico em ver apenas as partes ruins das coisas, das pessoas e do mundo? Da ignorância, simplesmente. Esse desconhecimento, naturalmente, é imperceptível por eles. Eles não desconfiam que têm limitações em conhecimento justamente porque se julgam além da capacidade daqueles que não denunciam como crime grave as falhas dos outros. E o que eles desconhecem? Simples também: que os fatos e fenômenos do mundo nunca têm apenas um lado, apenas uma perspectiva, ângulo ou ponto de vista.

Um amigo, apaixonado pela Revolta da Cabanagem, reuniu centenas de documentos sobre esse episódio histórico. Todas as vezes que ele me relatava uma nova descoberta, ele parecia estar em epifania, na maior das felicidades. O que ele relatava? As maiores atrocidades que eram cometidas durante o conflito. E eu perguntava: "não havia nenhuma pessoinha pelo menos um pouquinho bondosa nesse conflito? Ninguém, ninguém, ninguém?". E ele ficava sem ação. Logo depois ele explicava: a história é feita de tragédia. Ele se dizia um historiador crítico cujos textos só apontavam tragédias em forma de denúncia, consideradas por ele estudos científicos. Evidentemente que o método científico era completamente ignorado.

Tome outro caso, agora de alguém que explicava as subidas e descidas das águas dos rios amazônicos. Em duas ou três páginas havia relatos desse fenômeno natural, extremamente superficiais, e 15 outras denunciando praticamente todo o universo por supostos crimes cometidos contra uma comunidade indígena. Em todo o texto não havia sequer uma única virtude em ninguém que não fossem, naturalmente, os índios que, aliás, eram o oposto de todos os criminosos ali denunciados, ou seja, os índios não apresentavam nenhum vício ou imperfeição.

O entendimento de "Crítica" só é plenamente alcançado quando levada em consideração a palavra "Crise", uma vez que ambas vêm do mesmo verbo grego "krinein". Crise designa um lapso temporal entre dois instantes bem definidos, A e B. Em A, que é anterior a B, a realidade é percebida de um jeito, as pessoas praticam determinados esquemas lógicos para guiarem suas vidas. Em B, a realidade é muito diferente de A porque a realidade mudou como decorrência das mudanças nos esquemas lógicos e valores que sustentaram a realidade A. Tomemos o exemplo do mundo antes e depois da internet e das maravilhas tecnológicas que temos hoje. Praticamente tudo mudou, incluindo os valores familiares e a forma de pensar.

E o que é crise? Crise foi (e muito provavelmente ainda esteja acontecendo) aquele período em que os valores do momento A conviveram simultaneamente com os valores do momento B. Nessa convivência simultânea as pessoas não sabiam (e até hoje muitas não sabem) se baseavam seus pensamentos e ações nos valores do momento A (que ainda não tinha desaparecido) ou nos valores do momento B (que ainda não estava plenamente consolidado). Isso dá um nó na cabeça das pessoas, o que inclui os mais sábios. Crise é exatamente isso: a convivência simultânea de inúmeros valores, dos passados e dos futuros, que não se sabe ao certo aos quais seguir.

É justamente daí que vem a necessidade de se compreender a ideia e a prática de crítica. O indivíduo crítico é aquele que é capaz de avaliar as situações e julgar quais são as boas, aquelas que produzem ações benéficas, para que possa conduzir suas ações a partir delas. Diferentemente de um juiz (que em grego é dito "Krités") que julga as pessoas, o crítico (que em grego é dito "Kritikós") é o que é capaz de julgar não as pessoas, mas as coisas. O crítico não condena. Não condena por quê? Porque sua preocupação é com o bem, não com o mal. Ele sabe que a concentração no mal não leva ao bem. Apenas o bem gera o bem.

Daí vem a questão: existe crítica construtiva ou toda crítica é destrutiva? Sob o ponto de vista de quem se diz crítico ou diz praticar um pensamento crítico ou o que quer que o valha, não há possibilidade de haver crítica construtiva porque a própria forma como agem ou expõem seus pensamentos é destruidora. Não dialogam, acusam. Não pensam, condenam. Não há alguma nuance positiva no outro, apenas negação. Seus saberes e falas são perfeitas, puras expressões da verdade, contra a imperfeição e vícios criminosos dos outros.

O ideal grego de construir na terra a harmonia e a beleza que se via no céu noturno e na natureza foi completamente destruída pela subversão que se fez com a crítica. Não mais Areté, não mais paideia, não mais os mais sublimes ideais efetivamente buscados na prática da construção do bem. Em seu lugar se destaca o perverso, as coisas ruins, as falhas como origem de condenação. O kritikós se fez krités. A crítica se fez condenação sem julgamento.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Isanidade Geral

O ditado diz que de médico e louco todos temos um pouco. Mas, ao que tudo indica, a contemporaneidade parece ter exagerado nisso. Não da parte dos médicos, mas da dos loucos. Em nenhum momento histórico a loucura se fez tão plena e onipresente como agora. Isso não quer dizer, contudo, que ela não existira em profusão anteriormente. O que é inédito é que aquilo que era reservado, privado, delimitado se tornou aberto, público ilimitado. É como se nossa mente fosse atacada pela loucura geral, antes aprisionada nos seus recantos particulares, nos convidando ao bailado insano que tem no ódio a sua forma mais explícita (e imperceptível).

O que é a loucura, se não a ideia inquestionável de que estamos certos e todo o universo está errado? O indivíduo são, por exemplo, quando comete algum desatino fica a se perguntar se está louco. Esse tipo de reflexão é impensável ao insano. Se se questionar, certamente louco não está, diz tanto a psicologia quanto a psicanálise e a psiquiatria. A razão disso é que a autorreflexão (com o perdão do pleonasmo vicioso) é impossível no insano porque a insanidade é justamente esse revestimento da verdade. O louco veste a roupa da verdade. E isso quando ele não se considera a própria roupa e passa se comportar como a encarnação dela.

E a primeira consequência visível no insano é que só ele está certo. Todo o universo está errado. Se o louco vê um casal de namorados comprar uma caixa de cervejas, logo vê algum defeito inaceitável. Se compram camisas de cor laranja, o insano se enfeza porque é incorreto não comprar blusas de cor verde-limão-marciano. Quem compra camisas (e não blusas) cor de laranja certamente é algum alienado reacionário que precisa a ser revolucionário, ainda que seja à base de chicote ou baioneta. É por isso que o insano se vê no dever de mudar o mundo, consertá-lo, colocá-lo no caminho certo, por mais que não tenha ideia do que isso seja.

Mas ele não faz isso por outra razão que não seja o amor. Ah, como o insano é amoroso. Ele ama tanto que sofre demais, chora, perde o sono, se sacrifica. Tudo isso pelo bem do mundo. Sua mentalidade messiânica lhe faz um guerreiro solitário contra o universo conspirador cuja comprovação fascista é o fato de que cada indivíduo teima em ter sua própria individualidade (perdão novamente pelo pleonasmo). Se só ele é amor, porque é a verdade, todos os demais são ódio. E por isso precisam ser combatidos até a morte. A morte, afinal, é o que todos os que não pensam como ele pensa merecem. É preciso exterminar quem ousa pensar diferente para instaurar uma sociedade verdadeiramente democrata, onde todos pensam exatamente a mesma coisa da mesma forma.

Na sociedade mental em que vive, o insano vive efetivamente a democracia que deseja instaurar na realidade. Não suporta o autoritarismo individual, em que cada mente vê e interpreta o mundo a partir do estoque de conhecimentos e experiências que auferiu. Como as pessoas ousam não perceber que a democracia é a melhor coisa que existe, que a política é o caminho que leva àquela perfeição de mundo em que o insano vive e que a crítica sobre os adversários (que são todos os que pensam diferentes) é a principal arma de combate? Respeito à individualidade, tanto de pensamento quanto de ação, admissão de inúmeras formas de exercício da liberdade e necessidade de se pensar sobre qualquer coisa são crimes inaceitáveis à mentalidade verdadeiramente democrata do insano.

Quem pensa como ele ou diferente dele reaparece nos inúmeros adjetivos que o insano cria. Aliás, chega a inventar inúmeros outros significados para palavras já sedimentadas semanticamente. Isso o torna um fabricante inveterado, incontido, de ressignificações, ainda que não tenha ideia do que isso seja. Mas isso não importa porque somente ele sabe tudo e somente ele sabe a solução para tudo. Se o rio está poluído, há sempre um agente-inimigo certeiro da poluição. Se as cidades estão cheias de miseráveis, imediatamente consegue identificar quem são os criminosos. Se as nuvens do céu estão de cor alaranjadas e ele entende que aquilo é algo ruim, automaticamente consegue fazer um retrato falado dos autores reacionários.

Não é difícil imaginar que o insano não pode ser contestado. A contestação é a prova-crime incontestável de que é o outro que é louco. E loucura é algo inadmissível em uma mentalidade sadia, o que explica a necessidade de se alastrar para toda a humanidade a loucura que contagia, as ações que contaminam e os pensamentos que dilaceram. Por mínima que seja a diferença de ver as coisas, o máximo de precaução é necessária para que o mal não se alastre. A sanidade do insano produz a sociedade do medo, que se transforma em pavor, e que é creditado ao outro. O inferno é o outro, história contada e recontada que se transforma em verdade.

Mas talvez o que mais nos dá a garantia de estarmos diante de um insano é a necessidade que ele tem de debater, discutir, refletir, questionar, criticar, enfim, de falar. Sua necessidade de falar é tão grande que se tem a impressão de que se ele não for dono da palavra irá enlouquecer ao quadrado. E como fala o insano. Como fala demais, como é dominado pelas palavras, é incapaz de agir. O insano é aquele que não sabe fazer o que o seu discurso diz. A impressão que se tem é que os significantes vagabundos de que Lacan tanto falava entopem a garganta do insano e o impedem de agir.

Os alemães cunharam um termo que representa algo próximo à loucura e que é inadequadamente traduzida por alienação (Entfremdung). Não é que a palavra em português em si esteja errada, mas o seu significado está. O mais acertado, para efeito de equivalência semântica, pragmática e cultural, seria estranhamento. O insano está fora de si, como se seu corpo estivesse ali fazendo as coisas mas por vontade de outra entidade. Ele estranha o que o seu corpo e sua mente estão fazendo, mas não pode fazer nada. É esquisito, mas é mais ou menos isso. É como se o indivíduo estivesse assistindo às atrocidades (ou benesses) que seu corpo e mente estão fazendo, mas não pudesse fazer nada.

Nessa experiência esquisita que a palavra alienação toma há dois corpos e duas mentes separadas em planos diferentes. É exatamente isso o que quer dizer estranhamento. Não é alguém diferente que tomou de assalto o corpo e a mente do indivíduo insano, alienado. É o próprio corpo e a própria mente que ganharam autonomia para fazer aquilo que os "verdadeiros" corpo e mente não têm controle. É por isso que não se pode imputar responsabilidade civil ou legal ao insano. Seu eu sadio não consegue controlar seu eu doente.

Do ponto de vista da psicanálise, o insano é alguém controlado pelo seu inconsciente (id). Seu ego, que é o barramento que impede a invasão do id, foi completamente rompido. Não há processo civilizatório possível. É por isso que o discurso do louco é um discurso do todo. É sintético, sem capacidade efetiva de análise, de ver as partes e as inúmeras e impensáveis formas de as partes criarem e recriarem continuamente o todo. Por estar fora do mundo é que o insano consegue ver o mundo todo. Só não consegue ver a si mesmo. Por não conseguir ver a si mesmo, confunde-se com o mundo, e com a verdade e com a perfeição. O louco é perfeito no exato instante do seu discurso. Em seguida cai. E se torna o vazio.

Mas o que produz essa insanidade? A incapacidade de ser ver errado. O insano inventa mil narrativas (palavra que ele cria para ressignificar mentira) para contornar seu erro que todos veem, sem saber que para cada mentira inventada terá que inventar outras quando ela for descoberta. Engana-se quem acha que há insanos apenas de esquerda e de direita. Há-os também na ciência, na filosofia, na pederastia, na sodomia, na sonoplastia, nas harmonias, nas sacristias, nas astrologias, enfim, em tudo. A insanidade é universal e omnilateral. Está em tudo e em diferentes tonalidades. Está em todos nós.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

É Só Um Minutinho

Meu vizinho colocou o carro dele na saída da minha garagem. Ele o fez com tanta naturalidade, que me deu a sensação de que nem pensou no que fez. Parece que os ventos da razão não lhe sopraram a possibilidade de que algum carro que estivesse no interior da minha residência precisasse sair e tampouco as luzes da sua consciência puderam iluminar as sombras de sua visão de seu automóvel impedindo a saída. E o incrível é que todo o espaço da frente de sua casa estava limpo e aberto a qualquer estacionamento. Se eu não o conhecesse com certa profundidade, teria todos os motivos para imaginar que ele tivesse feito isso justamente para impedir a minha saída de casa para buscar as crianças na escola.

 E por falar em escola, um segundo exemplo vem de lá. A escola dos meus filhos fica em uma rua isolada de um conjunto habitacional periférico de um bairro da periferia. A rua é tão estreita que dois carros conseguem passar um pelo outro sem tocar apenas com muito cuidado. Assim, dois automóveis não podem ficar estacionados próximos uns dos outros em ambos os lados da rua. A escola fica do lado direito da rua, cuja única saída é para a esquerda com a distância de cerca de quarenta metros da entrada. O perímetro que vai da esquina à saída da rua, à esquerda, deve ter uns 50 metros, que comporta cerca de 12 automóveis para estacionamento temporário. E é aí que está o problema.

A impressão que se tem é que a maioria dos pais de alunos não consegue ver aquele espaço todo para estacionamento temporário. E o que eles fazem? Simplesmente param o carro na frente da entrada da escola e ficam esperando os filhos saírem. Enquanto isso, outros automóveis vão parando e esperando a sua vez de ficar na frente da entrada para que seus filhos possam sair e entrar na escola.

Sabendo disso, chego antes de abrir a escola e coloco o carro próximo à saída da rua, à esquerda. Assim que o portão abre, entrego as crianças e vou embora, antes que o furdunço tenha início. Mas certa vez, para obter dados para saciar minha sede de compreensão dessas coisas bizarras, resolvi deixar o carro na rua principal, bem longe das confusões, e assistir ao que se passava.

Descobri que cada carro ficava obstruindo a passagem da rua por mais ou menos trinta segundos. Como os carros chegavam quase simultaneamente, a fila chegava facilmente aos trezentos metros. E os conflitos pouco a pouco iam surgindo. Festivais de palavrões e ameaças, inclusive com o disparo de arma de fogo.

Você deve estar se perguntando: mas, sim, o que isso quer dizer? Simples: essa é uma demonstração de até onde pode chegar o orgulho humano. O orgulhoso é movido por uma força, muitas vezes inconsciente, de que é superior aos outros, que é mais importante, que tem mais direitos e assim por diante. É preciso que nos concentremos a isso com mais detalhes.

Há orgulhosos que têm consciência do seu orgulho. Têm consciência de que exigem mais poder que os outros, como é o caso de muitos juízes que mesmo fora do horário do expediente querem ser tratados como se em expediente estivessem. Quando há a consciência, o orgulho se torna um indivíduo sórdido, vil, cuja intenção deliberada é prejudicar os outros para que o seu orgulho não seja ferido. É esse orgulho vi, por exemplo, que leva muitos homens a cometer assassinatos de mulheres por ego ferido.

Os dois exemplos que detalhei aqui são atitudes orgulhosas inconscientes. E esse é um problema sério porque tudo o que está armazenado no inconsciente é extremamente difícil de reconhecer. O orgulhoso sórdido sabe, tem consciência de sua sordidez, mas o vizinho e os colegas que nos aviltam a vida com seus orgulhos não percebem o aviltamento.

Quando eu falei ao meu vizinho que ele me fez chegar atrasado à escola por causa do seu carro na saída da minha garagem ele apenas riu e disse que "foi só um minutinho". Ele não tem consciência de que todos os minutos têm exatamente 60 segundos, de maneira que não há minutos maiores e menores. Disse a ele que eu fiquei por exatos 5 minutos batendo na sua porta, depois ele levou exatos 3 minutos para me atender e mais exatos 4 minutos para vestir sua roupa e exatos 3 minutos para tirar o carro, totalizando 15 minutos. Ele ouviu atentamente, sempre sorrindo, sem levar a sério o que eu dizia. Os 15 minutos de vida que ele me tirou não têm a mínima importância. O que tem importância para o orgulhoso é sempre ele, os interesses dele, os objetivos dele, as coisas dele. Os outros e o mundo, que se lixe.

Esse comportamento sórdido é encontrado em todos os lugares onde a vida não tem o mínimo valor, como é o caso do Norte do Brasil. Em lugares onde a lei impera, essas ocorrências são mínimas. E já se contam às centenas as cidades e comunidades em que o respeito predomina sobre o desrespeito. Mas por aqui pelas bandas equatoriais ainda predomina essa tristeza.

Certa vez o cadeirante foi retirado do seu automóvel a pontapés por um orgulhoso porque o irmão com dificuldades de locomoção teria furado a fila e estacionado na vez dele. O orgulhoso viu que ali as vagas eram reservadas, viu o cartão de identificação que atestava a qualificação do cadeirante para estacionar ali mas, ainda assim, achou que aquela vaga era dele, sem nenhuma dificuldade de se locomover, na altura de seus trinta e poucos anos. Seu argumento? Ele iria estacionar ali só um minutinho para pegar a esposa.

Todas as vezes que ouço essa bendita frase me vem uma curiosidade enorme que eu não consigo controlar, que é a de olhar o rosto de quem a pronuncia. "Vou deixar aqui só um minutinho, tá? Já volto". Quando esse aviltamento é realizado com automóveis, geralmente o aviltador deixa o pisca-alerta ligado. Esse aviltador já deu um passo em direção à consciência de seu ato vil. A sinalização é a materialização de que sua consciência já começou a dar sinal de existência.

Outra vez o dono de um minimercado resolveu colocar um vagão de lixo na rampa de acesso da rua para a calçada. Isso impedia que portadores de necessidades e idosos conseguissem andar na calçada, dada a altura da calçada para a rua. Mostrei para ele a dificuldade de uma senhora idosa. Ele sorriu (sempre esse bendito sorriso de sordidez e descaso) e me disse: "é só um minutinho, professor". Daí eu disse que a lei não distingue minutinho de minutão. É proibido e ponto. Aquele vagão ficou lá por mais de oito longos meses.

Não é fácil lidar com o orgulhoso. Tanto é assim que quase todos preferem ignorar essas ocorrências, deixar para lá. Talvez estejam corretos porque mais cedo ou mais tarde cada qual terá a colheita que semeia. Conheci um que encontrou um orgulhoso ainda maior, aquele consciente. Teve o crânio penetrado por seis tiros. Mas eu tenho mania de professor. E professor, também inconsciente ou conscientemente, tem a mania de esclarecer o que supõe não estar claro. E todos esses casos se tornam momentos propícios para levar o esclarecimento aos aviltadores. Talvez essa minha atitude também seja outra forma do orgulho se manifestar.

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Ou Apenas Crês?

 A crença parece ser algo essencialmente humano. Em maior ou menor grau, todos os homens e mulheres viventes ou que já passaram por aqui viveram seus cotidianos baseados em crenças. Alguns creram nos poderes divinos dos trovões e dos fenômenos da natureza, enquanto outros ainda hoje juram de pés juntos que comer pirarucu ou camarão quando se está doente é certeza de agravamento da doença, que pode redundar até em morte. Na Amazônia essa crença chega a englobar todos os peixes sem escama, os chamados peixes-lisos. Note que as crenças não nos impedem de viver. Mas elas precisam ser vencidas para que possamos avançar na nossa intimidade com as coisas do mundo.

Fé e crença são duas coisas diferentes, mas interligadas. A fé é um termo que está vinculado à palavra grega pistis (πιστις), que é também a palavra que dá origem ao conceito episteme. E aqui está o segredo da palavra e da afirmativa do Cristo quando dizia "povo de pouca fé". Esses termos são utilizados para representar um tipo de conhecimento que vem do esforço do indivíduo em saber. Não é algo dado por Deus. É fruto do esforço humano. Tanto é assim que a palavra episteme significa o conhecimento científico, que é aquele confiável porque pode ser demonstrado.

Epistemologia, por extensão, significa o estudo dos conhecimentos que mais se aproximam da realidade. Os conhecimentos científicos são objeto de estudo da epistemologia, que busca apontar seus limites, profundidades, métodos e principalmente as suas lacunas, que são os buracos no tecido científico que ainda não foram tapados, preenchidos. Contudo, originalmente, episteme estava vinculada à ideia de aleteia.

Aleteia designa a ideia de verdade. A verdade seria o fim último a que todo conhecimento busca. Cada episteme é uma tentativa de falar a verdade, de dizer a verdade. Assim, a fé enquanto episteme é um tipo de explicação que muito se aproximaria da verdade, da aleteia. É diferente, então, de um outro tipo de conhecimento, que não é fruto do esforço humano. A razão é simples: ele é herdado.

Esse conhecimento é representado na mentalidade grega pelo doxa. A palavra portuguesa que mais se aproxima do entendimento de doxa é opinião. Opinião é qualquer fala que a gente faz sem se preocupar se ela é verdadeira ou falsa. O doxa não tem compromisso com a verdade. Se tivesse, não seria doxa. Vamos ver uns exemplos.

Quando uma comunidade diz que é remoso comer peixe liso quando a gente está doente, esse é um tipo de conhecimento porque é uma explicação sobre a realidade. Nessa explicação há uma relação de causa-efeito: se comer peixe liso, a doença vai agravar e o doente pode morrer. E essa explicação não é apenas das comunidades primitivas da Amazônia: muitos médicos e dentistas amazônicos, por exemplo, fazem essa recomendação explicitamente, por escrito. Mas os médicos que habitam regiões distantes da Amazônia e do Brasil não fazem isso. Por quê?

Muitos ribeirinhos amazônicos olham o céu de manhã e dizem se vai ou não chover à tarde. A explicação é que a coloração das nuvens têm a ver com a chuva, dizem eles. Não conseguem explicar além disso. Se alguém atento acompanhar os resultados verá que haverá muitos acertos e muitos erros nas previsões. E não adianta qualquer argumento em sentido contrário a essa mentalidade. Dificilmente algum deles acreditará.

Esses são dois exemplos típicos do que se chama doxa. Opinião é todo tipo de explicação que não tem uma forma de comprovação, de demonstração a partir do que chamamos padrões válidos. A gente simplesmente acredita naquilo que falamos porque é o costume, a tradição, enfim, a mentalidade com a qual convivemos que diz e confiamos. É a isso que chamamos de crença: acreditar. Acreditamos simplesmente porque nem percebemos aquilo que dizemos.

É essa a grande matriz da confiança, das crenças: a tradição, o costume, a cultura de um povo. A crença não é algo ruim. Acreditar que existe a mãe do mato não faz mal a ninguém, da mesma forma que admitir a existência do saci-pererê. Mas existem certas crenças que podem trazer consequências danosas. Um exemplo é negar a eficácia de determinados medicamentos, da mesma forma que a crença que diz que se deve pagar sempre na mesma moeda: se recebemos o mal, devemos fazer o mal.

O fato é que ninguém consegue sobreviver sem eliminar o doxa, a opinião, a crença pura. Uma das razões é que a ciência, principal fonte da episteme, só consegue explicar (às vezes de forma muito rudimentar) uma pequena parte da realidade. Quase tudo está ainda por explicar, ainda carece de explicação confiável. E como a gente precisa viver, a gente vai confiando nas nossas intuições, nos conselhos dos pais e amigos, nas recomendações de profissionais (que quase sempre também são movidos mais por crenças do que por episteme), enfim, no que a nossa comunidade considera o certo e o errado.

Há um grande contingente de pessoas, contudo, que tenta submeter boa parte da realidade ao crivo da episteme. Eles não se contentam apenas com as opiniões, porque são falhas. Tentam se guiar mais pela fé, que é a opinião racionalizada, passada pelo crivo da razão, do que pelo instinto bruto, que chamamos de crença. Quando a crença tem uma base sólida, o bem é o que emerge, mas quando não é traz problema.

Cristo disse muitas vezes "Crede em mim". Essa frase foi solicitada porque o Messias sabia que a mente daquele povo não conseguiria entender a explicação real, a episteme, sofre a realidade da qual queriam explicação. Por exemplo, não entendiam como ele curou o cego de nascença. Evidentemente que alguma ciência houve naquele procedimento, Cristo usou alguma episteme. As pessoas queriam saber, mas não havia capacidade cognitiva para tal. Por esse motivo o seu pedido significa o seguinte "se eu explicar, vocês não vão entender. Mas acredita em mim, faz o que eu peço, que vocês vão se dar bem". Aqui está o sentido perfeito das crenças: a gente confia porque alguém que tem o conhecimento sobre aquilo que estamos repetindo falou ou nos disse. E como tem autoridade ou é alguém importante, não tem erro ou problema eu repetir. Ler um ou dois textos comentando um assunto não te dá episteme. Tens que ler tudo o que já foi escrito e conduzir teus próprios experimentos. É preciso muito esforço para que se fuja das crenças.

Aquelas pessoas que apenas creem são como as folhas ao vento e pequenos corpos nas ondas do mar. Podem cair em lugar agradável, mas quase sempre o que lhes reserva é dor e sofrimento. Não é por acaso que a maior parte dos que sofrem são os que têm poucos saberes, pouca episteme. E ter saber não é e jamais será ter anos e anos de escola. É, simplesmente, usar a sua capacidade de compreender as coisas, encontrar lógica e razão no comportamento da realidade. Há iletrados sábios e letrados estúpidos.

Os sábios não se deixam conduzir pelas frases bonitas dos outros, e muito menos concordam com baboseiras só porque foi alguém famoso que disse. Respeitosos, eles ouvem a todos com carinho e atenção, mas tudo submetem ao crivo da razão. Não é porque todo mundo está gritando "Viva o SUS" que ele vai gritar também. Ele vai constatar, por exemplo, que praticamente todo mundo que está gritando isso ficou calado quando o SUS estava sendo desmontado. Ele vai perceber que todo comportamento de crença cega é irracional e gera mais sofrimentos.

Um deles certo dia viu um grupo de pessoas que se consideravam antifascistas gritarem brados a um grupo minoritário. Alguns pedestres que assistiam à manifestação se uniram aos manifestantes. O sábio apenas assistiu, sem desrespeito àquilo tudo. Viu que aquelas pessoas faziam exatamente o que acusavam, inclusive com o punho direito erguido acima da cabeça. É isso o que acontece a todos os que apenas creem: se tornam escravos de seus instintos mais primitivos.

domingo, 23 de maio de 2021

Tens Fé?

 Às vezes eu paro para pensar nas pessoas que se dizem cheias de fé. Recentemente foram alvos das minhas reflexões as que dizem aos quatro cantos do mundo que têm fé na ciência. Estas são aquelas que amiúde postam qualquer coisa e acrescentam "Viva a Ciência". Antigamente eram meus alvos os membros de igrejas. Minha preocupação não era exatamente a pessoa em si, o indivíduo, mas o seu entendimento de fé. Mas o que eu via, os fatos que eu coletava, contradizia abissalmente os discursos que eu lia. Dito de outra forma, o que as pessoas postavam era um verdadeiro contrassenso, algo como "A ciência é uma grande mentira" junto com a assinatura "Viva a ciência". Vejamos isso de perto.

Fé vem do latim fide. Essa também é a origem da palavra fidelidade e fiel. Como o transcurso histórico alterou a significação de fide, quer dizer, multiplicou-a, é possível fazer uma reconstrução reversa do termo para compreender com precisão o que essa palavra significa hoje. Atualmente, fé é confiar, e fidelidade é não trair, não contrariar a confiança de alguém. Guardemos essas duas significações.

A origem latina de fé designa um tipo muito especial de confiança. Essa especialidade é decorrente do fato de que fide é algo incondicional. Quem confia, confia absolutamente. A confiança é de uma ordem tal que pode ser facilmente considerada sinônima de verdade. Isso quer dizer que quem confia incondicionalmente tem fé de uma certa maneira que tudo aquilo que emana da fonte da confiança é considerado verdadeiro. E tudo o que é verdadeiro é inquestionável. Resumindo: quem tem fé não pode desconfiar, apenas executar o conteúdo da confiança.

A fé no sentido moral, que é aquela que se aplica em relação ao outro, tem essa mesma conotação: a verdade. Eu sou fiel e pratico a fidelidade porque seus princípios são incontestáveis. Um desses princípios pode ser o fato de que não traindo obrigo o meu parceiro ou parceira a não trair. Se eu traio, não sou fiel, não consigo aplicar em mim aquilo que eu sustento como fé, como uma atitude verdadeira, digna de confiança.

Vejamos o que acontece, na realidade, fora dos âmbitos compreensivos dos conceitos. É possível ter fé naquilo que não conhecemos? É possível confiar em uma pessoa que não conhecemos? É possível ser fiel a algo ou alguém de que não temos a mínima ideia do que seja? Os resultados das minhas reflexões e análises me levaram a concluir que a resposta a todas essas questões é um grande Não.

O segredo desse mistério não está na língua latina, mas na grega. E vem de um termo maravilhoso: Aleteia. Este termo está presente na afirmativa de Cristo de que ele é o caminho, a verdade e a vida. Essa verdade de que fala Jesus é Aleteia, que significa o que é verdade, que não está escondido, aquilo que é exatamente como a realidade mostra.

Não é difícil compreender, então, que apenas poucas pessoas são capazes de entender os fatos e fenômenos do mundo de forma aproximada de como eles verdadeiramente são. Exemplo. Muitas pessoas acham que a gravidade é uma força que atrai os corpos para o centro da terra. A "verdade" é que a gravidade é a queda das coisas em direção a um corpo mais pesado. A maçã cai da árvore em direção à terra, que é mais pesada. O planeta terra cai em direção ao sol, que é mais pesado, da mesma forma que a lua cai em direção à terra a todo instante. A consequência da queda em direção ao sol são as estações do ano, enquanto as marés e fases da lua são o resultado da queda em direção à terra.

Aleteia é isso: saber o porquê das coisas, desvendar, tirar as vendas dos olhos, ver as coisas do jeito que elas são e não da forma como elas aparecem para nós. Quando a ciência mostrou que seres invisíveis (vírus e bactérias) eram a causa de muitas doenças, muita gente se revoltou. Quando a ciência mostrou a possibilidade de vacinas conterem epidemias, muita gente também se revoltou. Aleteia é sempre uma revolução aos olhos de quem não a compreende.

Quando Cristo disse "Gente de pouca fé" ele estava dizendo que as pessoas tinham pouco conhecimento. Traduzindo para uma linguagem comum, Jesus disse que as pessoas não sabiam como as coisas do mundo acontece e por isso não entendiam o que ele fazia. E quando ele pediu que tivéssemos fé no que ele dizia não estava pedindo para a gente crer nas palavras dele, mas que deveríamos, por nossos próprios esforços, usar a nossa razão e a nossa determinação em conhecer a verdade, em saber tudo de Aleteia. E o que fizemos? As palavras do rabi entrou por um ouvido e saiu pelo outro de quase todos os seres viventes da Terra.

É difícil de acreditar (depois explicarei o que é crença), mas os cientistas são os indivíduos que mais praticam a fé. São os únicos seres capazes de explicar e demonstrar aquilo de que falam. Quando dizem que a terra cai em direção ao sol produzindo a sensação de gravidade, eles mostram o fenômeno tanto matematicamente quanto fisicamente. São capazes de reproduzir o fenômeno para que todos o compreendam (jamais para convencer alguém; cientista não busca convencer ninguém, se não, não teriam fé). E têm fé por causa de duas coisas. Primeiro, porque amam aprender; segundo, porque fazem qualquer coisa para continuar aprendendo.

E o que faz a maior parte da população do planeta? Crê. E por isso são alvos fáceis de qualquer discurso. Qualquer pessoa que fala bonitinho arrasta diversas multidões. Quando alguém fala "Viva a ciência" não está sendo desonesta, mas explicitando apenas a ignorância dela sobre esse área de ação humana. Se ela soubesse que a ciência tem inúmeras explicações válidas para o mesmo fenômeno, não diria isso. E o que ela faria? Ela agiria. E o agir da ciência é sempre o mesmo: estudar, compreender e agir bem. Se gritar por aí, está demonstrando que não entende a ciência.

Mas tem uma coisa a favor do grito. Os cientistas só têm fé na sua ciência. Por exemplo, pouquíssimos, raríssimo, são os cientistas da área médica (e muitos poucos médicos são cientistas) não dão ouvidos para os cientistas da contabilidade e da administração no Brasil, para ficar em apenas duas ciências diferentes. Isso explica em grande parte o caos da saúde no Brasil. Como não sabem lidar construir o futuro agora (coisas de gestores) e tampouco determinar com precisão as entradas e saídas de todos os tipos de recursos de agora para algumas décadas (coisa de contabilidade), acham irrelevante o que essas ciências sabem. Noutras palavras: os cientistas também são serem crentes. Eles só têm fé na ciência que fazem. Noutra oportunidade vou mostrar que lógica, matemática e estatística são os instrumentos com as quais construímos em nós a fé.

Voltando à nossa questão de origem, todos nós somos crentes. Quase ninguém tem fé. E os poucos que têm fé são fiéis apenas àquilo de que se ocupam. Poucos são os cientistas em relação ao total da população do planeta. Poucos são os que seguem fielmente o pedido do Cristo, de aprender e melhorar sempre suas condutas.

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...