quinta-feira, 29 de abril de 2021

Desculpas

Desculpa é uma palavra que tem ganhado muitos significados ultimamente. Isso é decorrente da enormidade de situações em que ela é empregada. Esse leque de situações varia desde o agressivo "Desculpaí", em tom de ironia, até a mais nobre atitude de reconhecimento de erro e consequente esforço em repará-lo. Duas situações estão centradas no outro e uma no próprio sujeito. Um olhar panorâmico permite ver um continuum no uso desse termo.

Certa vez a um funcionário de uma empresa foi solicitado que procurasse ver se estava tudo bem com o processo de produção de determinado produto muito importante para o seu faturamento. O funcionário voltou, dias depois, e disse verbalmente ao seu superior que estava tudo bem, mas que havia a falta de polietileno. Ficou visível a todos os que estavam na ampla sala da chefia o descontentamento do gerente.

-- Arnaldo, disse ele a um dos seus subordinados, vá à linha de produção e veja se está tudo bem.

Sob o olhar surpreso do funcionário a que a missão tinha sido dada, Arnaldo imediatamente saiu e voltou em poucos minutos. Pedindo permissão, sacou seu smartphone e começou a projetar na parede algumas fotos e vídeos que acabara de fazer sobre a linha de produção. Seu relato, que durou cerca de 15 minutos, apontou oito pontos de excelência do processo de produção, três questões graves sobre relacionamento entre os servidores e uma sobre o estoque de materiais, além de duas recomendações feitas pelo pessoal da área para melhorar o ambiente e o clima organizacionais.

-- Desculpaí, chefe, não pensei que você queria tantos detalhes assim, disser o servidor descomprometido. Aquele foi seu último dia de trabalho na organização.

Esse exemplo mostra o pedido de desculpa no sentido oposto do termo, que tem a finalidade ridicularizar quem descobriu alguma falha sobre seu comportamento. É uma atitude parecida com o que tem aquele que, mesmo sabendo que provocou algum problema, culpa o outro. É o que acontece nos acidentes de trânsito, quando alguém bate a traseira do veículo que lhe está na frente. A intenção é sempre culpar o outro porque "freou bruscamente", mesmo sabendo que a própria lei descreve essa situação como de responsabilidade por quem faz a batida por trás.  Como no caso da ironia, esta situação de culpa direta tem a finalidade de transferir para o outro a carga psíquica pela sua falha ou seu erro.

Essa atitude infantil é decorrente justamente disso: os indivíduos ainda estão nas fases preliminares de seu desenvolvimento moral. Entenda-se a moralidade como as atitudes de ações responsáveis orientadas para não ferir o outro ou lhe provocar dano. Ao culpar os outros pelos seus comportamentos essas atitudes têm o mesmo valor moral do que encontrar argumentos não nobres acerca do que fez imoralmente ou deixou de fazer algo moralmente.

-- Não pude fazer a tarefa de casa porque estava chovendo, professora, diz o aluno que teve dois meses para realizar a avaliação. Desculpa, infantil desculpa.

Encontram-se aqui todos aqueles que acusam os outros sobre os males do mundo. Todos os ativistas se encontram nessa situação. A causa da destruição da floresta é dos outros, assim como apenas os outros são intolerantes (não percebem que essa acusação é atitude intolerante). Isso não quer dizer que essas atitudes sejam ruins ou más, apenas que indivíduos plenamente maduros não agem assim.

O início da maturidade se dá quanto o indivíduo começa a cumprir com suas responsabilidades. Diferente do estágio anterior, aqui a intenção é fazer aquilo que foi prometido. E o que foi prometido é sempre algo digno, que não fere o outro. É um bem.

É um indivíduo maduro porque calcula, planeja deliberadamente aquilo que vai fazer. E quando não consegue cumprir o prometido, analisa o motivo de sua falta e busca evitá-lo. Com base nessa análise, presta contas com quem deveria receber o resultado do seu trabalho e se compromete a retificar o erro e a evitar que volte a acontecer. E cumpre efetivamente esse comprometimento.

-- Chefe, não consegui fazer a tradução do texto porque descobri que não sei lidar com termos específicos da área da medicina. Mas já me matriculei em um curso de tradução de termos médicos e dentro de um mês estarei preparado para enfrentar e superar o desafio de tradução nessa área, disse Marina, diante do fracasso da missão que lhe foi confiada. 

É assim que age alguém que já adentrou essa segunda etapa do desenvolvimento moral. Ele não dá desculpas. Ele explica o motivo que lhe levou a fracassar e aponta uma forma de anulação daquele motivo sob a forma de um projeto. Esse projeto representa a efetiva responsabilidade de agir sempre no sentido de cumprir o que promete.

A terceira fase é a plenitude da maturidade. Aqui, o indivíduo reconhece que o mal que causamos é consequência da nossa imaturidade e que toda imaturidade é a forma através da qual a nossa ignorância se manifesta. Entenda-se ignorância não como estupidez ou sordidez, mas como desconhecimento, falta de saber sobre determinada coisa ou relação de causa-efeito.

Na mente desses indivíduos está marcado que todo efeito tem pelo menos uma causa e toda causa tem pelo menos um efeito. Sua mente é logicamente ordenada e seu espírito é dirigido pela bondade. A bondade é consequência da confirmação empírica de que se um indivíduo sabe agir em conformidade com os princípios da bondade, jamais utilizará princípios da maldade, que é o que provoca sofrimento e dor. Ninguém quer sofrer. E por isso procura diminuir os riscos de sofrer.

A ação desses indivíduo não é o de julgar e condenar o outro pela sua falha, mas pela compreensão de que, se houve falha, houve também algum erro no equacionamento das causas com o resultado pretendido. E se houve falha na intenção deliberada de fazer o bem, não cabe a ideia de culpa e, consequentemente, a condenação. Ao invés disso, esses indivíduos plenamente maduro buscam encontrar uma forma de instruir quem falhou para que não falhe mais. 

Quem é plenamente desenvolvido moralmente pode até agir dessa forma por motivo egoísta. Afinal, se o outro só faz o mal por ignorância, ao instruir-lhe sobre como corrigir suas falhas corre-se menos riscos de sofrer as consequências danosas que os atos falhos podem causar. E o egoísmo se manifesta justamente no interesse individual, particular, egóico, de não querer ser prejudicado pelo outro. Mas esses são casos raros de quem chegou até aqui.

Na prática, quem se desenvolveu moralmente passou a amar as pessoas de fato. Amar não é um sentimento. Amar é ajudar. Amar é a prática efetiva de fazer o bem. Ao instruir o outro, está amando. E está amando também todas as vezes que vir alguém fazendo o mal e não o condenar porque essa atitude compreensiva é a manifestação expressa do seu conhecimento, de que o mal só é produzido pela mente e coração ignorantes. Para esse mal só há um remédio: conhecer. Conhecer e agir.


quarta-feira, 31 de março de 2021

Perspectivas e Percepções

Perspectivas e percepções são duas coisas que comandam a vida das pessoas, mas que são praticamente desconhecidas. Na verdade, são as duas causas primárias de todos os tipos de conflitos domésticos, relacionais e trabalhistas. É urgente, portanto, que se lance alguma luz sobre elas para que possamos dar um passo além na nossa capacidade de convivência e passar a ver nas dissonâncias grandes oportunidades de aprendizado.

Da mesma forma que comportamento gera comportamento, as nossas perspectivas influenciam sobremaneira as nossas percepções. Uma perspectiva é uma posição a partir da qual a gente observa alguma coisa. É como se fosse uma visada, como dizem os topógrafos. Se olho um automóvel a partir do seu lado esquerdo, percebo algumas coisas; como eu não consigo ver nada do que está na frente, atrás e do lado direito, nenhuma percepção eu consigo desenvolver. 

Perceber é ver, enxergar. Mas ver é diferente de olhar. Uma pessoa pode olhar uma figura inúmeras vezes, mas não consegue enxergar um gato cinza por entre as sombras das árvores. Um cientista iniciante pode olhar diversas vezes a mesma massa de dados e não conseguir enxergar praticamente nada ali.

Dependendo da perspectiva, a mesma cena pode ser vista de diferentes formas. Tomemos o caso de uma fotografia de uma casa de campo. Um biólogo vai enxergar com muita clareza coisas sobre os diversos tipos de vidas e ecossistemas que tem ali; o poeta vai ver inúmeras coisas apenas traduzíveis, muito distantemente, em poesias; um profissional de turismo perceberá naquele lugar um possível atrativo turístico. Cada um olha a mesma cena, mas tem diferentes percepções. Elas diferem justamente devido às perspectivas de cada um.

Mas vejamos agora algumas cenas muito comuns nos nossos cotidianos. O primeiro é o de uma bela família que tem um casal de filhos. Ela é muito sonhadora, no sentido exato do termo: sonha, como se estivesse dormindo, mesmo estando acordada. Certo dia, depois que ficou de férias, olhou seriamente para o esposo, e disse "Bem que a gente podia tirar pelo menos dez dias de férias e viajar, né?". O marido, já acostumado com aqueles momentos de delírios da esposa, apenas assentiu com a cabeça e continuou a trabalhar.

Como a esposa via as coisas? Qual era a sua perspectiva? Na sua mente deslizavam suavemente as belas praias e dunas de um lugar paradisíaco. Não fazia parte desse mundo mental um hotel de luxo, apenas um lugar decente e com alguns luxos singelos, se é que isso existe. Imaginava-se em restaurantes legais, com comidas saborosas e, se as crianças deixassem, alguns momentos em alguma boate interessante. Para as crianças pensava em passear nos parques temáticos e aproveitar momentos de descontração em algum shopping center. Evidentemente que algumas comprinhas não deveriam deixar de serem feitas. Nada além disso fazia parte da perspectiva daquela digna senhora. Depois de tanto estudar, era praticamente regra descansar e desfrutar.

Como o marido percebia a proposta da esposa? À medida que ela ia falando, vinha-lhe à tela mental as dificuldades de fechar as contas mensais. Em alguns dias o seu salário (o único da casa) não conseguia cobrir os gastos, quando precisava recorrer às economias que conseguia fazer, principalmente nos meses de recebimento do décimo terceiro salário e um terço de férias. Depois sua mente se concentrava no preço das passagens e hospedagens para quatro pessoas, mais as refeições, custos com passeios e compras. Se ela me ajudasse a economizar um pouco, ou, quem sabe, se encontrasse alguma forma de renda, pensava.

O conflito era inevitável porque o marido não conseguia ver as coisas da perspectiva da mulher, e muito menos a mulher do ponto de vista do marido. A esposa jamais imaginava que aquilo que ela queria custava pelo menos dois meses de salário líquido do marido. Para ela, bastaria entrar na internet e comprar as coisas, como se dinheiro caísse do céu. Aliás, dinheiro era algo que jamais fizera parte de sua tela mental quando deslizavam aquelas maravilhas de lugar onde queria estar. O marido, por sua vez, não conseguia entender como alguém é incapaz de não levar em consideração o custo daquilo que quer.

Mas os conflitos são fenômenos que estão em todos os lugares. E, quase sempre, as causas são as percepções e perspectivas dissonantes. João era o proprietário de uma pequena mercearia em uma periferia de capital amazônica. Como os trabalhos aumentaram, contratou um auxiliar, para ficar responsável pela estocagem e reposição de produtos. Luiz vivia com a cabeça na lua, reclamava João. O tempo todo precisava ser chamado a atenção porque alguma coisa fizera errado. Além do mais, chegava quase sempre exatamente na hora de abrir o comércio e queria sempre sair antes do horário.

João via em Luiz alguém que, no futuro, poderia ser um bom sócio. O jovem possuía o maior valor que o pequeno empresário sempre estimou, que é a honestidade. Sua perspectiva mostrava que em alguns anos o comércio ia crescer bastante e seria necessária a abertura de várias filiais na cidade. E quem mais poderia ser seu sócio no empreendimento que alguém honesto? Por isso percebia em Luiz aquele que o ajudaria a concretizar seu sonho.

Luiz, por outro lado, efetivamente era honesto. Sabia disso. Mas aceitou o emprego na mercearia porque precisava de dinheiro para o que mais gostava de fazer: treinar em academia e se mostrar para as mulheres. Se dependesse dele, jamais acordaria às seis da manhã, passar mais de uma hora dentro de um ônibus e ficar o dia inteiro em pé carregando produtos, todo suado e fedido. Estava ali por alguns momentos, dizia.

As pessoas maduras buscam entender a perspectiva do outro para entender as percepções que ele tem, mas sem pretender alterá-las. É algo mais ou menos assim: como você vê isso ou aquilo? Uma perspectiva ou percepção nada tem de certo ou errado. É apenas uma percepção e uma perspectiva que se relacionam. Nada mais do que isso. Se a mulher é sonhadora, paciência. Se o marido raciocina a partir da viabilidade financeira da diversão, também precisa ser compreendido. É a perspectiva deles com suas respectivas percepções.

Ninguém consegue mudar a percepção de ninguém. Apenas a própria pessoa consegue mudar a forma de ver as coisas ao mudar o seu ângulo de visão, a sua visada, a sua perspectiva. E todas as vezes que se faz isso, deixa-se de ver no outro um crápula ou criminoso. E deixa-se de lado o pedantismo de imaginar que a perspectiva do outro é limitada ou coisa assim, muito comum hoje em dia.

Aliás, todos os regimes totalitários, por exemplo, só aceitam uma única perspectiva e, portanto, uma única percepção. E regime totalitário não diz respeito apenas a governos, a países, mas também a relações entre marido e mulher e mãe e filhos. Regime vem do verbo reger, o que significa que o totalitarismo é regido por uma única visão do mundo. É o que acontece com os feministas, machistas, hedonistas, comunistas, capitalistas, fascistas, antifascistas e todo mundo que vê no outro, no que é diferente dele, a imagem do mal.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Pavio Curto

Ter pavio curto parece ser a característica de muita gente por aí. Mas a experiência tem mostrado que grande parte disso é fruto apenas da imaginação de quem não conhece de forma mais apurada quem tem seu pavio reduzido. Em tempo, pavio curto é como são denominados os indivíduos que se descontrolam com muita facilidade. O descontrole lhes é tão instantâneo que se tem a impressão de que é o próprio corpo que lhes domina. Palavrões e agressões físicas são as formas mais visíveis de reconhecer um pavio curto. Mas será que é sempre assim?

Nos meus tempos de infância, havia um certo senhor, lá pelas alturas dos seus sessenta e poucos anos, que no final da tarde passava pela parte de trás da sede do Aningal. Ali os moleques se reuniam para jogar futebol. Era aquela cerimônia: primeiro os mais novos, a partir das três da tarde; depois os mais velhos, em torno das quatro e meia. Próximo das cinco horas, quando os mais novos ainda não tinham ido para suas casas e os mais velhos já estavam se preparando para jogar, aquele senhor aparecia.

Ele tinha cerca de um metro e meio de altura. Não era pardo, como a maioria dos amazônidas, e se vestia com calças compridas e camisas mangas curtas sóbrias, discretas. Para se proteger do sol inclemente amazônico, mesmo e principalmente naquela hora da tarde, portava pequeno chapéu de palha, já um pouco surrado pelo tempo, protegendo-lhe sua pequena cabeça, harmonizada com seu corpo físico reduzido.

Quando era visto, a molecada toda se assanhava e cada um tomava o seu lugar. Uns ficavam por trás e outros, pela frente, com distância maior que dez metros, aproximadamente. E logo alguém perguntava, alto, em tom de deboche:

- Quer vender o chapéu?

Enquanto outro moleque da posição diferente, completava:

- Quanto quer no chapéu?

Aquele senhor, ao ouvir a primeira pergunta, se enchia de furor e partia para cima dos moleques, que corriam se divertindo. Logo que ouvia a segunda pergunta, o velhinho deixava se voltava para os outros. E ficavam nessa sordidez por algum tempo, até que algum adulto interviesse ou o velhinho se cansasse, prosseguindo seu caminho.

Há o caso também de uma senhora de idade que se enfurecia com os moleques. Ela tinha uma fisionomia de amargura, olhar triste. Andava cabisbaixa por causa de algum problema de coluna que a idade certamente tinha produzido, ou pelo menos ajudado a intensificar. Provavelmente também era sexagenária. E andava com um pedaço de madeira, parecendo um cabo de vassoura, que muitas vezes usava como apoio. Seus amigos e familiares a chamavam de Maroca. Não sei se era esse o seu nome ou uma forma amorosa de Maria.

Quando passava e os moleques a viam, gritavam:

- Ei, saiúda!!!

A pobre senhora se descontrolava imediatamente. Manuseava o pedaço de madeira como se fosse uma arma, um tacape, tentando acertar algum moleque. Provavelmente seria capaz de machucar alguém, mas nunca a vi fazer. Ainda é vívida na minha lembrança o seu rosto enfurecido, como se uma arma poderosa lhe tivesse acertado a alma. Seu corpo apenas parecia reagir àquela dor profunda que aquelas palavras provocavam.

Esses dois seriam típicos exemplos de pavios curtos. Mas será que são realmente? Será que existem pessoas que possam ser assim denominados? Ou será que o pavio curto não é característica de quase toda a população do planeta, incluindo você?

O homem do chapéu, para a família dele, era a pessoa mais doce do mundo. Nunca machucou ninguém, nunca espancou nenhum de seus filhos, coisa bastante habitual na educação familiar amazônica. Jamais chamou palavrão para ninguém. Sempre fôra uma pessoa solícita, disposta a ajudar quem dele precisasse, sem nada cobrar por isso. Sua vida foi de agricultor e se mudou para a cidade quando a economia baseada na juta se desfez em Alenquer. 

Mas de onde vinha o seu enfurecimento, o seu pavio curto? Vinha do fato de não aceitar a falta de respeito que era achincalhar alguém de idade. Sua trajetória moral sempre foi de respeito aos mais velhos. O irmão mais novo respeitando o mais velho, que respeitava os pais, que respeitava os avós, assim em cadeia. Um vivia em favor outro, como sempre praticou. Sua base moral era tão forte que o fazia se descontrolar.

No caso da Maroca, algo muito parecido acontecia. Quando ela estava junto dos seus, sempre foi muito doce, cativante, carente de atenção e carinho. Sempre foi muito respeitadora e humilde. Tão humilde que muitas vezes falava com os outros de cabeça abaixada, em sinal de profundo respeito. É como se o interlocutor fosse uma pessoa muito importante para ela, uma autoridade. Novamente, aqui, merecia respeito todas as pessoas, principalmente aquelas que lhe davam atenção, carinho e respeito. Novamente, aqui, era a força moral que induzia o seu comportamento.

Uma coisa acendia o pavio, o desrespeito. Mas outra coisa é surpreendente: o tempo que levou para que o pavio fosse aceso. O homem do chapéu não ficou furioso do dia para a noite, e muito menos Maroca, ao ser chamada de saiúda. Levou tempo. Foi somente depois de muita insistência, de inúmeras cenas de falta de respeito, que ambos começaram a se enfurecer. É a velha máxima: água mole em pedra dura, tanto bate até que o pavio encurtece.

Mas isso não aconteceu apenas com o senhor do chapéu e com a Maroca. Acontece com todo mundo. Conheço muita gente que se separou do marido e da mulher porque não aguentava tanta lamentação todas as horas do dia. Um dia o pavio encurtece. Sei de muita gente dócil que cometeu assassinato porque não suportou tanta infernização por parte do assassinado. Já vi gente amorosa se descontrolar porque não aguentou tantas agressões físicas. Ser pavio curto, ao que tudo indica, é sinal de ser humano na integralidade de suas imperfeições. Alguns demoram para explodir. Outros explodem de forma suave. Mas quase todos explodem.

Recentemente tivemos uma comprovação escancarada dessa humanidade, cometida por uma alta autoridade. Isso apenas prova que o pavio curto é característica que não escolhe cor, sexo, idade, escolaridade, posição social e outras características que não sejam espirituais (não confundir com religiosidade, por favor). Aliás, os governantes brasileiros são tão achincalhados pelos seus adversários, principalmente através das mídias e imprensa, que é raro não explodirem. E isso vale para quem se diz de direita, esquerda, centro, alto, baixo ou qualquer posição do espectro e planos políticos. Só para lembrar, que isso levou Getúlio Vargas e centenas de outros políticos ao suicídio, coisas que almejam os achincalhadores.

Mas há pessoas que, simplesmente, não têm pavio. São seres muito evoluídos. São tão evoluídos que respondem toda agressão, qualquer que seja ela, com atos de amor. Amor mesmo, de verdade, sem fingimento. Mas esse é um caso para outra postagem, assim como outros indivíduos ainda mais raros e superiores em amorosidade, que são os angelicais.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

O Imperativo da Gestão

Esse período de pandemia talvez seja o mais rico em novos aprendizados que já tivemos em toda a história. A maior delas, infelizmente, apenas é percebida pelos grandes cientistas, que é a necessidade de se começar o pensamento e o conhecimento dos procedimentos científicos na primeira infância. Esse será um esforço de não tentar mais barrar o desenvolvimento natural das habilidades genéticas que a maioria de nós traz, que é o de procurar explicações e soluções para o que não compreendemos. O segundo é o imperativo da gestão. Explico.

A ideia de imperativo é a combinação da obrigatoriedade com a necessidade. Contudo, para que essas duas palavras esquisitas sejam entendidas, é mais recomendável que comecemos explicando o que é gestão. Começaremos com exemplos, explorando seus diversos matizes compreensivos.

Certo dia, em uma de minhas aulas para alunos calouros de medicina, perguntei a cada um deles, dentre outras coisas importantes para o planejamento da disciplina, por que tinham escolhido aquele curso. Mais da metade deles responderam algo como "quero ser dono de hospital", "pretendo ser um grande dirigente na área da saúde pública" ou "quero ter meu próprio consultório". Os outros alunos falaram coisas voltadas para a prática da medicina, como "curar as pessoas", "encontrar cura para determinadas doenças" e assim por diante. Eu já tinha recebido muitas respostas similares com alunos de engenharia e direito, por exemplo.

O que essas respostas têm, digamos, de incomuns é o fato de que aqueles alunos talvez estivessem no curso errado. Quem quer ser dono de hospital, ter seu próprio negócio ou dirigir instituições deveria cursar administração. Ou então cursar medicina, engenharia, direito ou qualquer curso de sua vocação, mais administração. A administração serve, nesses casos particulares, para que o futuro profissional seja capaz de gerenciar sua própria vocação, sua vida e seu destino.

Certamente aqueles alunos e futuros profissionais não sabiam que precisavam de conhecimentos gerenciais para que pudessem saber como agir no exercício de suas profissões. Provavelmente estivessem desconfiados de que administração lida, em primeiro lugar, com alcançar objetivos, em saber para onde se está caminhando, onde se quer chegar. Mas jamais imaginariam que há inúmeras formas e procedimentos técnicos para escolher o objetivo mais adequado para determinadas situações. E aprender isso demanda anos, muito tempo. Não cabe em uma disciplina de 80 horas, como tentam fazer crer certas instituições.

Em inúmeras ocasiões, ex-alunos de outros campos me procuram com a mesma preocupação. Foram nomeados ou eleitos dirigentes de alguma coisa. O que fazer? Qual é a primeira coisa que um gerente de loja tem que fazer? O que um prefeito tem que fazer em primeiro lugar? Não sabem, certamente. Não foram treinados para isso. Foram formados para advogar, analisar instalações elétricas ou cuidar de idosos. Mas manusear recursos para alcançar objetivos que não existem, como no caso da maior parte dos municípios amazônicos, jamais. Nem sabem o que é isso. Confundem recursos com dinheiro.

Vamos esclarecer as coisas. Gerenciar é um conjunto de etapas que precisam ser seguidas para que os recursos disponíveis possam ser transformados em objetivos. Primeira tradução: administração não se faz de uma hora para outra, é feita em etapas. Essas etapas são: planejamento, organização, direção e controle. Segunda tradução: administração lida com recursos, que são tudo aquilo que o gestor precisa para fazer alguma coisa. Se é preciso fazer merenda escolar, os recursos são pão, queijo, presunto, suco, copos, pratos, talheres, fogão, gás e toda uma enormidade de coisas. Veja que não falamos em dinheiro. A razão disso é que dinheiro, em última análise, não é recurso (Dinheiro é meio de troca. Mas deixemos isso para lá). Terceira tradução: objetivos são as coisas que queremos realizar, os produtos que queremos produzir.

Depois de organizado os recursos, é hora de lidar com o mais difícil dos recursos, que é a força de trabalho. É preciso saber lidar com as pessoas para que elas transformem os recursos naquilo que se pretende realizar. Se queremos merenda, sem os esforços das pessoas nenhuma merenda vai sair. E não adianta pensar em robôs. Ainda com eles é necessário que haja pelo menos uma pessoa para cuidar dele. E isso se faz com motivação (a pilha das pessoas descarrega, às vezes muito rápido), liderança (e não mandar, como quase todo mundo pensa) e comunicação (todo bom gestor é um mestre do diálogo, como sempre demonstrou meu amado irmão e líder Antônio Venâncio Castelo Branco, saudoso reitor do Instituto Federal do Amazonas). É preciso esquematizar com as pessoas como vamos trabalhar para gerar os resultados pretendidos.

A última etapa do processo gerencial, na verdade, não é um término, mas um constante retorno: controle. Controlar nada tem a ver com mandar nas pessoas e tampouco controlar a vida delas. Os gestores controlam recursos, resultados e processos. É preciso controlar os recursos porque eles são raros, e se não forem controlados, não vão produzir os resultados desejados. Sem alcançar resultados, não há gestão. Gestão é a arte de fazer coisas, gerar resultados. E processos são as etapas que a gente percorre para fazer alguma coisa. Quanto mais etapas, mais longo o processo e mais caro, por exemplo.

O controle é feito em quatro etapas. A primeira é a padronização: precisamos saber como queremos os resultados, como vamos fazer as coisas e com que quantidade de recursos. A segunda é a mensuração: precisamos contar quantas coisas foram feitas para que o total pretendido não seja ultrapassado e nem tampouco a qualidade seja inferior à definida. A terceira é a avaliação, que é a comparação do que foi produzido com o que foi planejado. E a quarta é o replanejamento, que nada mais é do que consertar aquilo que saiu errado através do replanejamento do processo de produção, do processo de gestão.

Por incrível que pareça, eu tentei ser o mais sucinto possível e usei a linguagem mais popular existente, para que eu pudesse ser compreendido. Mas sei que dificilmente alguém entendeu bem. Isso é normal. Os administradores levam pelo menos 4 anos para compreender essa lógica e pelo menos igual período para aprenderem a colocá-la em prática. E aprendem diferentes formas de fazer isso. Por exemplo, esse esquema geral é aplicado a finanças (gestão financeira), materiais (gestão de materiais), pessoas (gestão de pessoas), meio ambiente (gestão ambiental) e centenas de outros campos, se não milhares deles. E cada um tem suas peculiaridades, suas distinções.

Agora eu te pergunto: você acha que teu prefeito, sem formação gerencial, é realmente capaz de gerenciar sua cidade? Que o diretor da sua escola, que é formado em pedagogia, tem conhecimentos de estratégias organizacionais (que exige raciocínio simultâneo de dezenas de áreas diferentes) suficientes para fazer de tua escola uma das melhores do país? Que o dono do hospital, que é médico, é capaz de te oferecer um serviço da qualidade que um gestor faria?

Mas o fato é que são essas pessoas que estão dirigindo grupos, instituições e organizações nos municípios e estados mais atrasados do País. Não que isso não aconteça em outros países. Acontece, sim, até nos mais ricos. Mas a concorrência de lá age rápido destruindo a organização que eles dirigem, colocando tudo nos devidos lugares. Mas já que eles estão dirigindo, e tendem a continuar por alguns anos mais, é necessário que comecemos já a preparar esses futuros dirigentes.

Imperativo significa que "não tem jeito": gente estranha à área de gestão vai continuar querendo gerenciar. E não queremos que as pessoas sob o comando dela se prejudiquem. Então é preciso começar a ensinar gestão a elas desde crianças, em doses homeopáticas. Podemos começar com a tendência natural que as crianças têm de fazer o bem e ensinar que esse deve ser o grande e maior objetivo de suas vidas. Gerenciar é alcançar objetivos. E todo objetivo tem que ser sempre um bem.

Ao longo do ensino fundamental podemos ensinar a ideia de recursos. São necessários recursos para tudo, principalmente para fazer o bem. Uma oração é um bem e a disposição e vontade de orar são os recursos. Nessa fase a finalidade é fazer com que as pessoas descubram a infinidade de recursos que estão à sua disposição e que não são usados. Tempo é recurso, fraternidade também; um sorriso é um recurso incalculável, assim como ouvir com atenção.

No ensino médio poderão ser ensinadas diferentes formas de escolher o bem a ser produzido e a forma mais adequada de uso de recursos. Principalmente para criar o novo necessário. Um novo cenário onde dormimos, um novo ambiente onde convivemos, um novo tipo de relacionamento mais cordial, uma nova forma de esperança e inúmeras maneiras inusitadas de amar.

Todos deveriam entrar no ensino superior apenas quando tivessem aprendido a amar. E nada mais interessante para fazer a seleção desses novos universitários do que um portfólio de suas grandes realizações desde a mais tenra idade. Todos os que soubessem amar teriam que ser admitidos. O amor não ocupa espaço porque é infinito. Sua missão na universidade seria única: inventar novas formas de amar. Nada de disciplinas isoladas e sem sentido. Na verdade, haveria apenas uma: superar desafios.

Quando falamos "necessidade" queremos dizer justamente isso: é necessário dar sentido à vida, ao viver, à vivência associada. E a vida só tem sentido quando dirigida ao bem do outro. A vida é alteridade. O outro é fundamental não para eu me exibir ou fazer ostentação, mas para o exercício da solidariedade e da caridade. São esses os tesouros dos novos tempos, que as sociedades tanto almejam, que as pessoas clamam enlouquecidas, mas que não sabem como produzi-los.

Como a pandemia tem mostrado, a gestão é fundamental. Sem ela não há futuro, o presente se desfaz e as esperanças se transformam em flagelos. E o primeiro alvo de todo o processo de gestão é a própria vida de quem deseja ser feliz de verdade. A vida do gestor é a grande embarcação que ele precisa aprender a comandar ante os mares enfurecidos do tempo presente rumo à segurança do cais do futuro que todos desejamos.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Sociedades de Negacionistas

 Tem aumentado visivelmente o número de pessoas que acusam outras de negacionistas. Com isso querem dizer duas coisas. A primeira é uma acusação um tanto quanto sórdida, de que os valores da ciência e sua grande contribuição para o bem estar da humanidade são criminosamente negados. A segunda é decorrente dessa: que eles, os acusadores, são fiéis seguidores da ciência e seus ditames? Será isso verdadeiro? Ou isso não passa de uma grande autoilusão a que os acusadores se aprisionaram?

Três são os centros das acusações contra os supostos negacionistas. O primeiro é a controversa negação da capacidade das vacinas em lidar com algumas patologias que assolam a humanidade, como o sarampo. A acusação é que as vacinas são medicamentos isentos de quaisquer malefícios ante os inúmeros benefícios que proporcionam a quem se vacina. O segundo é relativo à geometria do planeta, em que os supostos negacionistas divulgam a natureza plana da Terra. A nossa nave-mãe seria redonda, segundo os acusadores. E o terceiro diz respeito ao clima da terra, cuja acusação é de que os negacionistas discordam do aquecimento global.

Vamos olhar essas cenas de forma diferente. Vamos tentar agir como fazem os cientistas de verdade. A primeira providência seria levantar tudo o que a ciência sabe sobre os assuntos vacina, geometria do planeta e aquecimento global. Tudo mesmo. Tudo, naturalmente, que foi produzido com o uso do método científico. Produzido e publicado em revistas científicas confiáveis, o que significa ter sido submetido à avaliação dos outros cientistas dessas comunidades.

Não valem, aqui, por exemplo, textos de filosofia, por mais belos e críticos que eles sejam. Filosofia não é ciência. Também são desconsideradas até as próprias opiniões dos próprios cientistas. Opinião não é conhecimento científico. O que é publicado em jornal, revista e mídias sociais, então, nem pensar.

Quando isso é feito, tem-se o suprassumo do que efetivamente é confiável em termos de conhecimento. Daí uma coisa ia aparecer: a enormidade de constatações empíricas, práticas, diferentes feitas pela própria ciência. Constataríamos que não há consenso sobre grande parte do que o povo não científico considera certeza. Dada a diversidade de posições poderíamos até a nos convencer que, de fato, não há consenso. Mas os cientistas sabem que não é bem assim.

O que marca o conhecimento científico produzido com o seu célebre método é o erro. Todo conhecimento, para ser científico, tem que apresentar de forma explícita o erro que incorre. Os erros limitam aquilo que sabemos. Aliás, o que sabemos é tão pouco, tão reduzido ante a totalidade, que não seria irreal que considerássemos o pouco que sabemos como insignificante ante o que não sabemos. Mas é essa insignificância que ilumina um pouco e cada vez mais as sombras do que desconhecemos.

Se essa massa que acusa os outros de negacionistas soubesse disso, pensaria duas vezes antes de fazer qualquer acusação. É que as consequências são desastrosas. Vejamos apenas dois grandes e surpreendentes exemplos.

Dirigentes de instituições de pesquisas acusam os governantes de não levarem em consideração a ciência em suas decisões. Vale destacar, aqui, que essas acusações são relativas principalmente à pandemia, mas também para os investimentos em pesquisas. Na verdade, esses dirigentes são tão negacionistas quanto aqueles que eles acusam porque são alertados praticamente todos os dias sobre o amadorismo de suas gestões. Eles não levam em consideração o que a ciência da gestão sabe sobre gerenciamento. Acham que suas intuições e suas boas vontades são suficientes para o sucesso de suas gestões. E o resultado é o que se vê todo dia. Infelizmente, a maioria da população brasileira nem desconfia que o fato de não termos nenhum prêmio nobel é justamente devido ao negacionismo gerencial desses dirigentes.

Um número altamente considerável de acusadores dos negacionistas são professores. Mas eles nem desconfiam que são, eles próprios, os professores, os maiores negacionistas que existem. É muito difícil encontrar um professor universitário brasileiro que teve formação docente de base científica. E isso vale principalmente para os professores que cursaram licenciaturas, que deveriam saber como ensinar. Mas não sabem porque suas formações deixam de lado a ciência e se agarram na filosofia. Como consequência, sabem falar coisas desconexas sobre todas as coisas, mas são incapazes de fazer ciência porque desconhecem o método científico. Não sabem que o erro é o que caracteriza a ciência, não a verdade, que exigem a todo custo.

Evidentemente que não são apenas dirigentes institucionais e professores os negacionistas. Todos nós o somos. A ciência do Direito diz que devemos seguir as leis para que possamos viver em paz, mas não acreditamos nisso. Entendemos o que essa ciência fala, mas não acreditamos porque não pautamos nossa conduta em conformidade com as leis. Tanto é assim que não estudamos a legislação.

A neurociência diz que o cérebro tem um limite de armazenamento temporário de informações. E que colocar mais do que determinada capacidade é pura perda de tempo. Mas insistimos em estudar durantes horas e horas o mesmo assunto, simplesmente porque negamos as limitações físicas para tal. Resultado: em pouco tempo já não se sabe mais praticamente nada daquilo que consumiu nosso precioso tempo de vida.

A ciência médica diz que devemos exercitar nossas mentes e nossos corpos, para que diversas patologias fiquem distantes de nós. Entendemos a mensagem, mas não acreditamos na ciência. E ficamos anos e décadas no sedentarismos nos empanturrando de porcarias. E ainda nos revoltamos quando o corpo cobra seu preço através da invalidez permanente ou por intermédio da morte.

O que fica claro com esse  movimento de acusações de negacionismo é a profunda ignorância dos acusadores. Além de má fé, essas atitudes são criminosas. São, como dizem no Norte, os sujos falando mal dos mal lavados. É como um colega cientista falou: "quando vejo alguém acusando o outro de negacionismo, não tenho dúvida de que estou diante de alguém que desconhece completamente a ciência". Como é uma figura respeitada no mundo todo, parei para coletar evidências.

Para minha surpresa, os cientistas de verdade não acusam ninguém. Chamo cientista de verdade àqueles que têm dezenas de artigos científicos publicados em revistas de alta confiança internacional onde o método científico se destaca. Os grandes acusadores, além do povão, são pessoas que se dizem pesquisadoras, mas que seus currículos são recheados de textos sem relevância científica alguma. Quase sempre seus textos são difíceis de enquadrar até como filosofias. Eu diria, com grande chance de acertar, que são textos de opiniões. Noutras palavras, conhecem tanto a ciência quanto o povão que nunca foi à escola.

Por essas razões tenho uma recomendação para todos os não cientistas. Quando virem alguém falando suposta bobagem, algo como um negacionismo, que tentasse pensar assim "será que não falo tanta bobagem quanto essa pessoa?" ou "será que as coisas que eu penso que estejam de acordo com a ciência realmente estão?". Faça como Renée Descartes: desconfie de você mesmo. Desconfie daquilo que imagina que sabe. E, se você for corajoso(a), vá em frente. Aprenda tudo o que a ciência sabe sobre a suposta bobagem que você estava pronto(a) para acusar de negacionismo. Quem sabe se, com isso, você não teria a mesma atitude dos verdadeiros cientistas, de ficar calado(a) e entender que ninguém sabe tudo do pouco que a ciência explica?

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Tu Te Irritas?

Não sei se é impressão, mas parece que as pessoas estão se irritando cada vez mais a cada dia. E três têm sido as demonstrações incontestáveis de que a irritação passou a habitar a mente e o coração delas: expressão facial fechada, agressão verbal e agressão física, nos casos extremos. É preciso combater urgentemente essa doença, que já alcança abrangência pandêmica, como mostram relatos diários de suas manifestações em todo o globo.

A primeira coisa é saber com relativa precisão o que é irritação. De forma geral, é a impaciência e intolerância com alguma coisa que incomoda. E conhecer esse incômodo é fundamental para que a impaciência e a intolerância seja extirpada com vida da pessoa. Se isso não for possível, pelo menos que possa conviver com ela sem grandes e nocivas consequências.

Tanto a impaciência quanto a intolerância são uma maneira consciente ou inconsciente de dizer "não aguento mais". A pessoa se irrita porque não aguenta mais aquilo que lhe causa incômodo. Muitas vezes o incômodo provoca dores horríveis, físicas, mentais ou espirituais. Por essa razão, todo mundo que convive com alguém que vive irritado ou que sofre desse mal precisa saber disso: a pessoa se irrita porque não aguenta mais alguma coisa. E é preciso descobrir o que a irrita e o porquê.

Disso resulta algumas descobertas óbvias, mas importantes. A primeira é que a pessoa se irrita porque não aguenta mais enfrentar a causa do seu incômodo. A primeira obviedade é que ela não tem mais controle físico ou emocional para enfrentar a situação e conviver com ela. Provavelmente já tentou inúmeras alternativas, mas fracassou. A irritação, portanto, é a forma mais eficiente encontrada para pelo menos reduzir o impacto do incômodo.

A segunda obviedade é que a causa do incômodo continua ali, perto dela, física, mental ou espiritualmente. Isso é óbvio porque, se a causa estivesse distante, provavelmente a irritação diminuiria sensivelmente ou diminuiria. Se estiver perto fisicamente, o simples distanciamento seria suficiente para eliminar a irritação. Contudo, muitas vezes as causas estão distantes fisicamente, mas como para a mente e para o espírito não há distância, além de estarem perto estão dentro do corpo (físico e espiritual) de quem sofre.

E a terceira obviedade é consequência das outras e que aponta para o tratamento: o doente não consegue se separar da causa que o incomoda. No fundo, e isso parece ser estarrecedor, é o próprio doente que cria a doença. Quase sempre ele está em processo simbiótico com a causa, alimentando e sendo alimentado por ela. Há, portanto, uma relação de codependência entre eles.

Luzia não suportava músicas "barulhentas". Todas as vezes que seus parentes aumentavam o volume do som, parecia que ela se transformava em uma leoa. Certa vez, inclusive, chegou a quebrar completamente o aparelho de som. Dizia que tinha a impressão de que o barulho estava dentro dela e que sua intensidade fazia ferver todos os seus órgãos internos. Desesperada, tinha que dar fim ao incômodo de alguma maneira.

Jujuca ficava possesso de raiva quando alguém espirrava perto dele. Achava um profundo desrespeito. Além disso, questionava, quem garantia que não houvesse o espalhamento de doenças em cada espirro dado? Tinha pavor, na verdade, de ser contaminado com alguma doença respiratória, coisa que desconhecia completamente, antes de ser curado.

Por incrível que isso possa parecer, a cura da irritação só se dá com o conhecimento. Aprender, novamente, parece funcionar com precisão em todos os casos de irritação. O que o irritado desconhece e que precisa aprender? Vejamos algumas delas.

a) O mundo é feito de relações. Isso significa que nada está isolado. Tudo contribui para a existência e dinâmica de outras coisas. Tudo o que fazemos beneficia a nós e/ou aos outros. Há uma relação da gente para com nós mesmos e outras relações da gente para com outras pessoas. As relações, portanto, são inevitáveis. Essa é a primeira coisa a ser aprendida.

b) Somos alvo do bem o tempo todo. Se a gente parar para observar, veremos que a maioria das coisas acontecem para nos beneficiar. Quando elas nos prejudicam, o próprio prejuízo tem sempre pelo menos um aspecto benéfico. Por exemplo, se entro e saio várias vezes de ambientes frios e quentes, posso pegar um resfriado. E, se isso me acontece, esse conhecimento é confirmado mais uma vez em minha experiência. Assim, estar resfriado (que é aparentemente um mal) se faz um bem (aquisição de conhecimento). E provavelmente vai reforçar em mim a necessidade de encontrar uma forma de evitá-lo, gerando  mais saber.

c) Aquilo que me irrita é apenas uma visão distorcida da realidade. A primeira distorção é decorrente do desconhecimento da lei das relações, em que é obrigatório que eu me relacione com o mundo, o que inclui aquilo que me causa irritação. A segunda é o desconhecimento de que aquilo que me deixa irritado também me traz pelo menos um benefício. Esse benefício é desconhecido ou sua origem.

d) Se a fonte da minha irritação é uma ação de outra pessoa, o problema não é meu. Entenda-se como problema a obrigatoriedade de corrigir a causa de alguma consequência ruim. Se alguém coloca o som em volume alto e eu considero isso um mal, por que me irritar, se não sou eu que estou causando o mal? Aquilo que os outros fazem é obrigação deles corrigir. E não compete a mim obrigá-los a isso.

e) Se o som alto da outra pessoa me causa irritação, o problema não é o som, mas o que há em mim. O autoconhecimento é fundamental em todas as situações de irritação. A experiência tem mostrado que a irritação é apenas a reverberação, o aumento de intensidade, daquilo que habita no indivíduo que se irrita. Pode ser inveja por não poder fazer o mesmo barulho, por exemplo.

O que queremos mostrar é que a irritação é a incapacidade do indivíduo de se autocontrolar. Ele não consegue separar as coisas de fora e de dentro dele. Por extensão, não consegue distinguir entre as coisas que ele pode e as que não pode controlar. O que o torna irritado, então, é o desconhecimento do fato de que pode controlar os efeitos das causas externos agindo sobre seus recursos internos.

Ricardinho não suportava a voz rouca da sua chefa temporária, que veio de outra cidade; resolveu o problema colocando um fone de ouvido com músicas de Beethoven em tons baixos. Mariinha não aguentava a presença de sua cunhada em sua casa nos finais de semana, mas a irritação foi eliminada quando começou a imaginar uma aura de luz em volta do corpo da irmã de seu marido. Jozito deixou completamente de se ofender com as ironias de Vivinho quando soube que elas eram expressões de profundas invejas.

O conhecimento de que a irritação não é originária dos outros mas do que há em nós leva, necessariamente, à invenção de alguma estratégia de uso dos recursos internos para pelo menos frear aquilo que nos irrita. Não é o que está fora que me causa a irritação, mas a forma como eu reajo. Não posso impedir que o céu deixe de ser azul, mas posso inventar uma forma de não deixar que isso me irrite. E o que fazer com as aparentes causas distantes?

Dimitriva era altamente preconceituosa com os homens que tinham cabelos escorridos até os olhos. Achava todos criminosos. Tinha certeza disso. Bastava ver alguém com cabelos escorridos até os olhos que o ódio se lhe tomava conta a ponto de poder cometer assassinato antes que o outro o fizesses. Seções de psicanálise apontaram a causa do problema. Na infância, Dimitriva assistiu a dois assassinatos cometidos por um vizinho que tinha cabelos escorridos até os olhos. A cena foi tão forte que fugiu completamente de sua memória, mas permaneceu intocada nas gavetas de seu inconsciente.

Ainda que as causas estejam distantes, é sempre o conhecimento que gera a cura de todas as irritações. De forma mais precisa, é necessário autoconhecimento para que as nossas estruturas emocionais sejam inabaláveis contra as tempestades exteriores, porque as causas são todas internas. Mas é necessário conhecimento relacional dos fatos e fenômenos do mundo, tanto para ver a beleza das coisas quanto fortalecer o amor que passaremos a ter para com nós mesmos. E quem se ama não se irrita.

sábado, 12 de dezembro de 2020

Uma Dor muito Profunda

 Há pessoas que carregam dentro de si uma dor tão profunda que um olhar mais cuidadoso é capaz de percebê-la e até senti-la facilmente. Muitas vezes apresentam um olhar ferido em um rosto quase sempre franzido, como se olhassem o mundo e a vida com desgosto ou desdém. Quase não sorriem, a não ser para exteriorizar uma parte de sua dor em forma de sarcasmo ou cinismo. Têm muitas dificuldades em elogiar. Quando elogiam o fazem para aliciar ou puxar o saco. Não têm amor próprio. São profundamente doentes de um orgulho que exala de todos os seus poros físicos, mentais e espirituais.

João é uma pessoa bem sucedida. Conhecida no mundo todo por sua obra em várias áreas, resolveu incentivar a cultura de sua pequena cidade do interior amazônico. Convidou a todos para uma coletânea de textos. Não importava o tipo de texto. Por mais de três meses percorreu todas as redes sociais convidando possíveis autores para promover suas obras. Com muita dificuldade conseguiu completar a obra e a publicou.

Os poucos autores que atenderam ao convite ficaram muito felizes pela oportunidade. As milhares de pessoas da cidade e de outras comunidades se maravilharam com o talento daqueles conterrâneos. Muitas delas decidiram participar de uma segunda empreitada, caso ela ocorresse. E a obra começou a ser compartilhada para regiões mais distantes, elevando o conhecimento de sua existência e importância para o resgate da literatura daquela região brasileira.

Zezeco, em uma conversa a sós com João, demonstrou toda a sua fúria com a publicação de textos de autores desqualificados, plagiadores, vermes, nas suas palavras. O motivo da fúria? A obra não citou, em nenhum momento, o nome Zezeco. Aliás, toda a obra deveria estar voltada apenas para o nome dele. E ele não entendia por que João, uma pessoa considerada culta e muito importante em vários lugares do mundo, cometera um erro tão estúpido desse.

Noutra ocasião, um grupo de amigos resolveu coletar donativos de roupas e alimentos para que, mensalmente, pudesse aliviar a fome dos moradores de uma comunidade miserável amazônica e substituir os trapos que vestiam por vestimentas mais dignas. E assim fizeram. No primeiro mês, a felicidade daquela comunidade foi quase geral. Quase. 

Fulustreca, uma senhora de aparência repulsiva, ficou indignada com a marca do macarrão que estava sendo distribuído. Havia, argumentava a moradora, marcas mais famosas na cidade. Por que não estavam ali? Além disso, por que não davam mais roupas novas do que usadas? Por que ela teria que aceitar aquelas doações de última categoria, nas palavras dela?

Tanto o caso de Zezeco quanto o de Fulustreca, se vistos de forma superficial, podem ser tomados por atitudes normais. Mas não o são. O normal é agradecer a todo tipo de doação feita com intenção de bondade. Toda atitude centrada no bem, voltada para o bem, realizada para trazer alegria e contentamento precisa ser louvada. O que essas atitudes estranhas mostram, na verdade, é um descontentamento profundo que essas pessoas têm com elas mesmas.

A atitude de Zezeco é translúcida: ele queria ser o centro das atenções do livro de que ele não fez parte. Todos os textos deveriam falar dele, dos seus feitos, para que lhe pudessem trazer um pouco de contentamento - ou pelo menos não despertar seu descontentamento e sua fúria. Mas por que todos os textos do livro não falaram dele? Simplesmente porque nosso irmão é uma figura insignificante para ser retratada em um livro. Diante da realidade da insignificância e da fantasia de que ele é a pessoa mais importante do mundo surge uma lacuna abissal difícil de ser preenchida. A não ser, evidentemente, com ódio.

É essa mesma evidência que há em Fulustreca. Sua mente diz com nitidez que ela gosta de produtos de marcas famosas. Por quê? Talvez porque ela assim se veja intimamente ou porque se considere digna das coisas mais distintas e exclusivas do mundo, ainda que o mundo seja o universo daquela pequena cidade que habita. Noutras palavras, aquela moradora se vê como o centro do mundo e assim exige que seja tratada, ainda que inconscientemente, mas materializado nas suas atitudes.

A origem de tudo isso é o orgulho. Um orgulho tão profundo que não permite que as pessoas distinga a realidade de suas fantasias. Como o tempo todo suas fantasias estão sendo confrontadas com a realidade, o tempo todo estão se frustrando e o tempo todo estão demonstrando o seu descontentamento com aquilo que a realidade lhes mostra. É por isso que têm o rosto fechado, franzido, os olhos tristes, aquele ar raivoso e os sorrisos maquiavélicos.

As pessoas com orgulho profundo se veem como o centro de tudo, do mundo. Veem-se como os melhores escritores, mesmo sem escreverem uma frase sequer; como os melhores fotógrafos do planeta, ainda que suas fotografias tenham alguma qualidade; os melhores oradores do universo, mesmo que não consiga prender a atenção de ninguém; os raciocínios mais geniais da eternidade, ainda que os expressem com palavras chulas. Há sempre o confronto das suas fantasias com a realidade, em que suas ilusões são desfeitas, mas eles não veem. Na mente doente deles, quem está errado é o mundo e tudo o que nele existe.

E gente com orgulho profundo é o que não falta na face da terra. Eles não gostam de entrar nas filas, procuram um jeito de burlar a paciência dos demais; nas lojas, se algum problema acontece, querem logo falar com o dono da loja porque nenhum funcionário está à altura de ouvir suas vozes; nos grupos sociais são os que exigem mais visibilidade e puxassaquismo; no trabalho são os que querem ser promovidos sem mérito; e até nas suas relações com Deus, exigem uma mansão com inúmeros empregados, aqui e na outra vida.

Todas as vezes que o EU aparecer antes do NÓS, ali há alguém com dor profunda. EU tenho que ser servido primeiro, EU sou o único merecedor daquele prêmio, todos têm que ME obedecer, o MEU trabalho é o melhor. O orgulhoso doentio é o centro do mundo porque foi convencido por suas ilusões. Nele não há alteridade, essa desconfiança de que não somos melhores nem piores do que os outros, mas apenas diferentes. 

O orgulhoso profundamente doente vive em um mundo de fantasias. Felizmente para ele, a realidade trata de colocar as coisas nos seus devidos lugares o tempo todo. Consequentemente, o tempo todo eles estão descontentes, raivosos. Chegará o dia em que as ilusões darão lugar à realidade. Mas, até lá, muito sofrimento ainda haverá de haver.

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...