quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Pavio Curto

Ter pavio curto parece ser a característica de muita gente por aí. Mas a experiência tem mostrado que grande parte disso é fruto apenas da imaginação de quem não conhece de forma mais apurada quem tem seu pavio reduzido. Em tempo, pavio curto é como são denominados os indivíduos que se descontrolam com muita facilidade. O descontrole lhes é tão instantâneo que se tem a impressão de que é o próprio corpo que lhes domina. Palavrões e agressões físicas são as formas mais visíveis de reconhecer um pavio curto. Mas será que é sempre assim?

Nos meus tempos de infância, havia um certo senhor, lá pelas alturas dos seus sessenta e poucos anos, que no final da tarde passava pela parte de trás da sede do Aningal. Ali os moleques se reuniam para jogar futebol. Era aquela cerimônia: primeiro os mais novos, a partir das três da tarde; depois os mais velhos, em torno das quatro e meia. Próximo das cinco horas, quando os mais novos ainda não tinham ido para suas casas e os mais velhos já estavam se preparando para jogar, aquele senhor aparecia.

Ele tinha cerca de um metro e meio de altura. Não era pardo, como a maioria dos amazônidas, e se vestia com calças compridas e camisas mangas curtas sóbrias, discretas. Para se proteger do sol inclemente amazônico, mesmo e principalmente naquela hora da tarde, portava pequeno chapéu de palha, já um pouco surrado pelo tempo, protegendo-lhe sua pequena cabeça, harmonizada com seu corpo físico reduzido.

Quando era visto, a molecada toda se assanhava e cada um tomava o seu lugar. Uns ficavam por trás e outros, pela frente, com distância maior que dez metros, aproximadamente. E logo alguém perguntava, alto, em tom de deboche:

- Quer vender o chapéu?

Enquanto outro moleque da posição diferente, completava:

- Quanto quer no chapéu?

Aquele senhor, ao ouvir a primeira pergunta, se enchia de furor e partia para cima dos moleques, que corriam se divertindo. Logo que ouvia a segunda pergunta, o velhinho deixava se voltava para os outros. E ficavam nessa sordidez por algum tempo, até que algum adulto interviesse ou o velhinho se cansasse, prosseguindo seu caminho.

Há o caso também de uma senhora de idade que se enfurecia com os moleques. Ela tinha uma fisionomia de amargura, olhar triste. Andava cabisbaixa por causa de algum problema de coluna que a idade certamente tinha produzido, ou pelo menos ajudado a intensificar. Provavelmente também era sexagenária. E andava com um pedaço de madeira, parecendo um cabo de vassoura, que muitas vezes usava como apoio. Seus amigos e familiares a chamavam de Maroca. Não sei se era esse o seu nome ou uma forma amorosa de Maria.

Quando passava e os moleques a viam, gritavam:

- Ei, saiúda!!!

A pobre senhora se descontrolava imediatamente. Manuseava o pedaço de madeira como se fosse uma arma, um tacape, tentando acertar algum moleque. Provavelmente seria capaz de machucar alguém, mas nunca a vi fazer. Ainda é vívida na minha lembrança o seu rosto enfurecido, como se uma arma poderosa lhe tivesse acertado a alma. Seu corpo apenas parecia reagir àquela dor profunda que aquelas palavras provocavam.

Esses dois seriam típicos exemplos de pavios curtos. Mas será que são realmente? Será que existem pessoas que possam ser assim denominados? Ou será que o pavio curto não é característica de quase toda a população do planeta, incluindo você?

O homem do chapéu, para a família dele, era a pessoa mais doce do mundo. Nunca machucou ninguém, nunca espancou nenhum de seus filhos, coisa bastante habitual na educação familiar amazônica. Jamais chamou palavrão para ninguém. Sempre fôra uma pessoa solícita, disposta a ajudar quem dele precisasse, sem nada cobrar por isso. Sua vida foi de agricultor e se mudou para a cidade quando a economia baseada na juta se desfez em Alenquer. 

Mas de onde vinha o seu enfurecimento, o seu pavio curto? Vinha do fato de não aceitar a falta de respeito que era achincalhar alguém de idade. Sua trajetória moral sempre foi de respeito aos mais velhos. O irmão mais novo respeitando o mais velho, que respeitava os pais, que respeitava os avós, assim em cadeia. Um vivia em favor outro, como sempre praticou. Sua base moral era tão forte que o fazia se descontrolar.

No caso da Maroca, algo muito parecido acontecia. Quando ela estava junto dos seus, sempre foi muito doce, cativante, carente de atenção e carinho. Sempre foi muito respeitadora e humilde. Tão humilde que muitas vezes falava com os outros de cabeça abaixada, em sinal de profundo respeito. É como se o interlocutor fosse uma pessoa muito importante para ela, uma autoridade. Novamente, aqui, merecia respeito todas as pessoas, principalmente aquelas que lhe davam atenção, carinho e respeito. Novamente, aqui, era a força moral que induzia o seu comportamento.

Uma coisa acendia o pavio, o desrespeito. Mas outra coisa é surpreendente: o tempo que levou para que o pavio fosse aceso. O homem do chapéu não ficou furioso do dia para a noite, e muito menos Maroca, ao ser chamada de saiúda. Levou tempo. Foi somente depois de muita insistência, de inúmeras cenas de falta de respeito, que ambos começaram a se enfurecer. É a velha máxima: água mole em pedra dura, tanto bate até que o pavio encurtece.

Mas isso não aconteceu apenas com o senhor do chapéu e com a Maroca. Acontece com todo mundo. Conheço muita gente que se separou do marido e da mulher porque não aguentava tanta lamentação todas as horas do dia. Um dia o pavio encurtece. Sei de muita gente dócil que cometeu assassinato porque não suportou tanta infernização por parte do assassinado. Já vi gente amorosa se descontrolar porque não aguentou tantas agressões físicas. Ser pavio curto, ao que tudo indica, é sinal de ser humano na integralidade de suas imperfeições. Alguns demoram para explodir. Outros explodem de forma suave. Mas quase todos explodem.

Recentemente tivemos uma comprovação escancarada dessa humanidade, cometida por uma alta autoridade. Isso apenas prova que o pavio curto é característica que não escolhe cor, sexo, idade, escolaridade, posição social e outras características que não sejam espirituais (não confundir com religiosidade, por favor). Aliás, os governantes brasileiros são tão achincalhados pelos seus adversários, principalmente através das mídias e imprensa, que é raro não explodirem. E isso vale para quem se diz de direita, esquerda, centro, alto, baixo ou qualquer posição do espectro e planos políticos. Só para lembrar, que isso levou Getúlio Vargas e centenas de outros políticos ao suicídio, coisas que almejam os achincalhadores.

Mas há pessoas que, simplesmente, não têm pavio. São seres muito evoluídos. São tão evoluídos que respondem toda agressão, qualquer que seja ela, com atos de amor. Amor mesmo, de verdade, sem fingimento. Mas esse é um caso para outra postagem, assim como outros indivíduos ainda mais raros e superiores em amorosidade, que são os angelicais.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

O Imperativo da Gestão

Esse período de pandemia talvez seja o mais rico em novos aprendizados que já tivemos em toda a história. A maior delas, infelizmente, apenas é percebida pelos grandes cientistas, que é a necessidade de se começar o pensamento e o conhecimento dos procedimentos científicos na primeira infância. Esse será um esforço de não tentar mais barrar o desenvolvimento natural das habilidades genéticas que a maioria de nós traz, que é o de procurar explicações e soluções para o que não compreendemos. O segundo é o imperativo da gestão. Explico.

A ideia de imperativo é a combinação da obrigatoriedade com a necessidade. Contudo, para que essas duas palavras esquisitas sejam entendidas, é mais recomendável que comecemos explicando o que é gestão. Começaremos com exemplos, explorando seus diversos matizes compreensivos.

Certo dia, em uma de minhas aulas para alunos calouros de medicina, perguntei a cada um deles, dentre outras coisas importantes para o planejamento da disciplina, por que tinham escolhido aquele curso. Mais da metade deles responderam algo como "quero ser dono de hospital", "pretendo ser um grande dirigente na área da saúde pública" ou "quero ter meu próprio consultório". Os outros alunos falaram coisas voltadas para a prática da medicina, como "curar as pessoas", "encontrar cura para determinadas doenças" e assim por diante. Eu já tinha recebido muitas respostas similares com alunos de engenharia e direito, por exemplo.

O que essas respostas têm, digamos, de incomuns é o fato de que aqueles alunos talvez estivessem no curso errado. Quem quer ser dono de hospital, ter seu próprio negócio ou dirigir instituições deveria cursar administração. Ou então cursar medicina, engenharia, direito ou qualquer curso de sua vocação, mais administração. A administração serve, nesses casos particulares, para que o futuro profissional seja capaz de gerenciar sua própria vocação, sua vida e seu destino.

Certamente aqueles alunos e futuros profissionais não sabiam que precisavam de conhecimentos gerenciais para que pudessem saber como agir no exercício de suas profissões. Provavelmente estivessem desconfiados de que administração lida, em primeiro lugar, com alcançar objetivos, em saber para onde se está caminhando, onde se quer chegar. Mas jamais imaginariam que há inúmeras formas e procedimentos técnicos para escolher o objetivo mais adequado para determinadas situações. E aprender isso demanda anos, muito tempo. Não cabe em uma disciplina de 80 horas, como tentam fazer crer certas instituições.

Em inúmeras ocasiões, ex-alunos de outros campos me procuram com a mesma preocupação. Foram nomeados ou eleitos dirigentes de alguma coisa. O que fazer? Qual é a primeira coisa que um gerente de loja tem que fazer? O que um prefeito tem que fazer em primeiro lugar? Não sabem, certamente. Não foram treinados para isso. Foram formados para advogar, analisar instalações elétricas ou cuidar de idosos. Mas manusear recursos para alcançar objetivos que não existem, como no caso da maior parte dos municípios amazônicos, jamais. Nem sabem o que é isso. Confundem recursos com dinheiro.

Vamos esclarecer as coisas. Gerenciar é um conjunto de etapas que precisam ser seguidas para que os recursos disponíveis possam ser transformados em objetivos. Primeira tradução: administração não se faz de uma hora para outra, é feita em etapas. Essas etapas são: planejamento, organização, direção e controle. Segunda tradução: administração lida com recursos, que são tudo aquilo que o gestor precisa para fazer alguma coisa. Se é preciso fazer merenda escolar, os recursos são pão, queijo, presunto, suco, copos, pratos, talheres, fogão, gás e toda uma enormidade de coisas. Veja que não falamos em dinheiro. A razão disso é que dinheiro, em última análise, não é recurso (Dinheiro é meio de troca. Mas deixemos isso para lá). Terceira tradução: objetivos são as coisas que queremos realizar, os produtos que queremos produzir.

Depois de organizado os recursos, é hora de lidar com o mais difícil dos recursos, que é a força de trabalho. É preciso saber lidar com as pessoas para que elas transformem os recursos naquilo que se pretende realizar. Se queremos merenda, sem os esforços das pessoas nenhuma merenda vai sair. E não adianta pensar em robôs. Ainda com eles é necessário que haja pelo menos uma pessoa para cuidar dele. E isso se faz com motivação (a pilha das pessoas descarrega, às vezes muito rápido), liderança (e não mandar, como quase todo mundo pensa) e comunicação (todo bom gestor é um mestre do diálogo, como sempre demonstrou meu amado irmão e líder Antônio Venâncio Castelo Branco, saudoso reitor do Instituto Federal do Amazonas). É preciso esquematizar com as pessoas como vamos trabalhar para gerar os resultados pretendidos.

A última etapa do processo gerencial, na verdade, não é um término, mas um constante retorno: controle. Controlar nada tem a ver com mandar nas pessoas e tampouco controlar a vida delas. Os gestores controlam recursos, resultados e processos. É preciso controlar os recursos porque eles são raros, e se não forem controlados, não vão produzir os resultados desejados. Sem alcançar resultados, não há gestão. Gestão é a arte de fazer coisas, gerar resultados. E processos são as etapas que a gente percorre para fazer alguma coisa. Quanto mais etapas, mais longo o processo e mais caro, por exemplo.

O controle é feito em quatro etapas. A primeira é a padronização: precisamos saber como queremos os resultados, como vamos fazer as coisas e com que quantidade de recursos. A segunda é a mensuração: precisamos contar quantas coisas foram feitas para que o total pretendido não seja ultrapassado e nem tampouco a qualidade seja inferior à definida. A terceira é a avaliação, que é a comparação do que foi produzido com o que foi planejado. E a quarta é o replanejamento, que nada mais é do que consertar aquilo que saiu errado através do replanejamento do processo de produção, do processo de gestão.

Por incrível que pareça, eu tentei ser o mais sucinto possível e usei a linguagem mais popular existente, para que eu pudesse ser compreendido. Mas sei que dificilmente alguém entendeu bem. Isso é normal. Os administradores levam pelo menos 4 anos para compreender essa lógica e pelo menos igual período para aprenderem a colocá-la em prática. E aprendem diferentes formas de fazer isso. Por exemplo, esse esquema geral é aplicado a finanças (gestão financeira), materiais (gestão de materiais), pessoas (gestão de pessoas), meio ambiente (gestão ambiental) e centenas de outros campos, se não milhares deles. E cada um tem suas peculiaridades, suas distinções.

Agora eu te pergunto: você acha que teu prefeito, sem formação gerencial, é realmente capaz de gerenciar sua cidade? Que o diretor da sua escola, que é formado em pedagogia, tem conhecimentos de estratégias organizacionais (que exige raciocínio simultâneo de dezenas de áreas diferentes) suficientes para fazer de tua escola uma das melhores do país? Que o dono do hospital, que é médico, é capaz de te oferecer um serviço da qualidade que um gestor faria?

Mas o fato é que são essas pessoas que estão dirigindo grupos, instituições e organizações nos municípios e estados mais atrasados do País. Não que isso não aconteça em outros países. Acontece, sim, até nos mais ricos. Mas a concorrência de lá age rápido destruindo a organização que eles dirigem, colocando tudo nos devidos lugares. Mas já que eles estão dirigindo, e tendem a continuar por alguns anos mais, é necessário que comecemos já a preparar esses futuros dirigentes.

Imperativo significa que "não tem jeito": gente estranha à área de gestão vai continuar querendo gerenciar. E não queremos que as pessoas sob o comando dela se prejudiquem. Então é preciso começar a ensinar gestão a elas desde crianças, em doses homeopáticas. Podemos começar com a tendência natural que as crianças têm de fazer o bem e ensinar que esse deve ser o grande e maior objetivo de suas vidas. Gerenciar é alcançar objetivos. E todo objetivo tem que ser sempre um bem.

Ao longo do ensino fundamental podemos ensinar a ideia de recursos. São necessários recursos para tudo, principalmente para fazer o bem. Uma oração é um bem e a disposição e vontade de orar são os recursos. Nessa fase a finalidade é fazer com que as pessoas descubram a infinidade de recursos que estão à sua disposição e que não são usados. Tempo é recurso, fraternidade também; um sorriso é um recurso incalculável, assim como ouvir com atenção.

No ensino médio poderão ser ensinadas diferentes formas de escolher o bem a ser produzido e a forma mais adequada de uso de recursos. Principalmente para criar o novo necessário. Um novo cenário onde dormimos, um novo ambiente onde convivemos, um novo tipo de relacionamento mais cordial, uma nova forma de esperança e inúmeras maneiras inusitadas de amar.

Todos deveriam entrar no ensino superior apenas quando tivessem aprendido a amar. E nada mais interessante para fazer a seleção desses novos universitários do que um portfólio de suas grandes realizações desde a mais tenra idade. Todos os que soubessem amar teriam que ser admitidos. O amor não ocupa espaço porque é infinito. Sua missão na universidade seria única: inventar novas formas de amar. Nada de disciplinas isoladas e sem sentido. Na verdade, haveria apenas uma: superar desafios.

Quando falamos "necessidade" queremos dizer justamente isso: é necessário dar sentido à vida, ao viver, à vivência associada. E a vida só tem sentido quando dirigida ao bem do outro. A vida é alteridade. O outro é fundamental não para eu me exibir ou fazer ostentação, mas para o exercício da solidariedade e da caridade. São esses os tesouros dos novos tempos, que as sociedades tanto almejam, que as pessoas clamam enlouquecidas, mas que não sabem como produzi-los.

Como a pandemia tem mostrado, a gestão é fundamental. Sem ela não há futuro, o presente se desfaz e as esperanças se transformam em flagelos. E o primeiro alvo de todo o processo de gestão é a própria vida de quem deseja ser feliz de verdade. A vida do gestor é a grande embarcação que ele precisa aprender a comandar ante os mares enfurecidos do tempo presente rumo à segurança do cais do futuro que todos desejamos.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Sociedades de Negacionistas

 Tem aumentado visivelmente o número de pessoas que acusam outras de negacionistas. Com isso querem dizer duas coisas. A primeira é uma acusação um tanto quanto sórdida, de que os valores da ciência e sua grande contribuição para o bem estar da humanidade são criminosamente negados. A segunda é decorrente dessa: que eles, os acusadores, são fiéis seguidores da ciência e seus ditames? Será isso verdadeiro? Ou isso não passa de uma grande autoilusão a que os acusadores se aprisionaram?

Três são os centros das acusações contra os supostos negacionistas. O primeiro é a controversa negação da capacidade das vacinas em lidar com algumas patologias que assolam a humanidade, como o sarampo. A acusação é que as vacinas são medicamentos isentos de quaisquer malefícios ante os inúmeros benefícios que proporcionam a quem se vacina. O segundo é relativo à geometria do planeta, em que os supostos negacionistas divulgam a natureza plana da Terra. A nossa nave-mãe seria redonda, segundo os acusadores. E o terceiro diz respeito ao clima da terra, cuja acusação é de que os negacionistas discordam do aquecimento global.

Vamos olhar essas cenas de forma diferente. Vamos tentar agir como fazem os cientistas de verdade. A primeira providência seria levantar tudo o que a ciência sabe sobre os assuntos vacina, geometria do planeta e aquecimento global. Tudo mesmo. Tudo, naturalmente, que foi produzido com o uso do método científico. Produzido e publicado em revistas científicas confiáveis, o que significa ter sido submetido à avaliação dos outros cientistas dessas comunidades.

Não valem, aqui, por exemplo, textos de filosofia, por mais belos e críticos que eles sejam. Filosofia não é ciência. Também são desconsideradas até as próprias opiniões dos próprios cientistas. Opinião não é conhecimento científico. O que é publicado em jornal, revista e mídias sociais, então, nem pensar.

Quando isso é feito, tem-se o suprassumo do que efetivamente é confiável em termos de conhecimento. Daí uma coisa ia aparecer: a enormidade de constatações empíricas, práticas, diferentes feitas pela própria ciência. Constataríamos que não há consenso sobre grande parte do que o povo não científico considera certeza. Dada a diversidade de posições poderíamos até a nos convencer que, de fato, não há consenso. Mas os cientistas sabem que não é bem assim.

O que marca o conhecimento científico produzido com o seu célebre método é o erro. Todo conhecimento, para ser científico, tem que apresentar de forma explícita o erro que incorre. Os erros limitam aquilo que sabemos. Aliás, o que sabemos é tão pouco, tão reduzido ante a totalidade, que não seria irreal que considerássemos o pouco que sabemos como insignificante ante o que não sabemos. Mas é essa insignificância que ilumina um pouco e cada vez mais as sombras do que desconhecemos.

Se essa massa que acusa os outros de negacionistas soubesse disso, pensaria duas vezes antes de fazer qualquer acusação. É que as consequências são desastrosas. Vejamos apenas dois grandes e surpreendentes exemplos.

Dirigentes de instituições de pesquisas acusam os governantes de não levarem em consideração a ciência em suas decisões. Vale destacar, aqui, que essas acusações são relativas principalmente à pandemia, mas também para os investimentos em pesquisas. Na verdade, esses dirigentes são tão negacionistas quanto aqueles que eles acusam porque são alertados praticamente todos os dias sobre o amadorismo de suas gestões. Eles não levam em consideração o que a ciência da gestão sabe sobre gerenciamento. Acham que suas intuições e suas boas vontades são suficientes para o sucesso de suas gestões. E o resultado é o que se vê todo dia. Infelizmente, a maioria da população brasileira nem desconfia que o fato de não termos nenhum prêmio nobel é justamente devido ao negacionismo gerencial desses dirigentes.

Um número altamente considerável de acusadores dos negacionistas são professores. Mas eles nem desconfiam que são, eles próprios, os professores, os maiores negacionistas que existem. É muito difícil encontrar um professor universitário brasileiro que teve formação docente de base científica. E isso vale principalmente para os professores que cursaram licenciaturas, que deveriam saber como ensinar. Mas não sabem porque suas formações deixam de lado a ciência e se agarram na filosofia. Como consequência, sabem falar coisas desconexas sobre todas as coisas, mas são incapazes de fazer ciência porque desconhecem o método científico. Não sabem que o erro é o que caracteriza a ciência, não a verdade, que exigem a todo custo.

Evidentemente que não são apenas dirigentes institucionais e professores os negacionistas. Todos nós o somos. A ciência do Direito diz que devemos seguir as leis para que possamos viver em paz, mas não acreditamos nisso. Entendemos o que essa ciência fala, mas não acreditamos porque não pautamos nossa conduta em conformidade com as leis. Tanto é assim que não estudamos a legislação.

A neurociência diz que o cérebro tem um limite de armazenamento temporário de informações. E que colocar mais do que determinada capacidade é pura perda de tempo. Mas insistimos em estudar durantes horas e horas o mesmo assunto, simplesmente porque negamos as limitações físicas para tal. Resultado: em pouco tempo já não se sabe mais praticamente nada daquilo que consumiu nosso precioso tempo de vida.

A ciência médica diz que devemos exercitar nossas mentes e nossos corpos, para que diversas patologias fiquem distantes de nós. Entendemos a mensagem, mas não acreditamos na ciência. E ficamos anos e décadas no sedentarismos nos empanturrando de porcarias. E ainda nos revoltamos quando o corpo cobra seu preço através da invalidez permanente ou por intermédio da morte.

O que fica claro com esse  movimento de acusações de negacionismo é a profunda ignorância dos acusadores. Além de má fé, essas atitudes são criminosas. São, como dizem no Norte, os sujos falando mal dos mal lavados. É como um colega cientista falou: "quando vejo alguém acusando o outro de negacionismo, não tenho dúvida de que estou diante de alguém que desconhece completamente a ciência". Como é uma figura respeitada no mundo todo, parei para coletar evidências.

Para minha surpresa, os cientistas de verdade não acusam ninguém. Chamo cientista de verdade àqueles que têm dezenas de artigos científicos publicados em revistas de alta confiança internacional onde o método científico se destaca. Os grandes acusadores, além do povão, são pessoas que se dizem pesquisadoras, mas que seus currículos são recheados de textos sem relevância científica alguma. Quase sempre seus textos são difíceis de enquadrar até como filosofias. Eu diria, com grande chance de acertar, que são textos de opiniões. Noutras palavras, conhecem tanto a ciência quanto o povão que nunca foi à escola.

Por essas razões tenho uma recomendação para todos os não cientistas. Quando virem alguém falando suposta bobagem, algo como um negacionismo, que tentasse pensar assim "será que não falo tanta bobagem quanto essa pessoa?" ou "será que as coisas que eu penso que estejam de acordo com a ciência realmente estão?". Faça como Renée Descartes: desconfie de você mesmo. Desconfie daquilo que imagina que sabe. E, se você for corajoso(a), vá em frente. Aprenda tudo o que a ciência sabe sobre a suposta bobagem que você estava pronto(a) para acusar de negacionismo. Quem sabe se, com isso, você não teria a mesma atitude dos verdadeiros cientistas, de ficar calado(a) e entender que ninguém sabe tudo do pouco que a ciência explica?

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Tu Te Irritas?

Não sei se é impressão, mas parece que as pessoas estão se irritando cada vez mais a cada dia. E três têm sido as demonstrações incontestáveis de que a irritação passou a habitar a mente e o coração delas: expressão facial fechada, agressão verbal e agressão física, nos casos extremos. É preciso combater urgentemente essa doença, que já alcança abrangência pandêmica, como mostram relatos diários de suas manifestações em todo o globo.

A primeira coisa é saber com relativa precisão o que é irritação. De forma geral, é a impaciência e intolerância com alguma coisa que incomoda. E conhecer esse incômodo é fundamental para que a impaciência e a intolerância seja extirpada com vida da pessoa. Se isso não for possível, pelo menos que possa conviver com ela sem grandes e nocivas consequências.

Tanto a impaciência quanto a intolerância são uma maneira consciente ou inconsciente de dizer "não aguento mais". A pessoa se irrita porque não aguenta mais aquilo que lhe causa incômodo. Muitas vezes o incômodo provoca dores horríveis, físicas, mentais ou espirituais. Por essa razão, todo mundo que convive com alguém que vive irritado ou que sofre desse mal precisa saber disso: a pessoa se irrita porque não aguenta mais alguma coisa. E é preciso descobrir o que a irrita e o porquê.

Disso resulta algumas descobertas óbvias, mas importantes. A primeira é que a pessoa se irrita porque não aguenta mais enfrentar a causa do seu incômodo. A primeira obviedade é que ela não tem mais controle físico ou emocional para enfrentar a situação e conviver com ela. Provavelmente já tentou inúmeras alternativas, mas fracassou. A irritação, portanto, é a forma mais eficiente encontrada para pelo menos reduzir o impacto do incômodo.

A segunda obviedade é que a causa do incômodo continua ali, perto dela, física, mental ou espiritualmente. Isso é óbvio porque, se a causa estivesse distante, provavelmente a irritação diminuiria sensivelmente ou diminuiria. Se estiver perto fisicamente, o simples distanciamento seria suficiente para eliminar a irritação. Contudo, muitas vezes as causas estão distantes fisicamente, mas como para a mente e para o espírito não há distância, além de estarem perto estão dentro do corpo (físico e espiritual) de quem sofre.

E a terceira obviedade é consequência das outras e que aponta para o tratamento: o doente não consegue se separar da causa que o incomoda. No fundo, e isso parece ser estarrecedor, é o próprio doente que cria a doença. Quase sempre ele está em processo simbiótico com a causa, alimentando e sendo alimentado por ela. Há, portanto, uma relação de codependência entre eles.

Luzia não suportava músicas "barulhentas". Todas as vezes que seus parentes aumentavam o volume do som, parecia que ela se transformava em uma leoa. Certa vez, inclusive, chegou a quebrar completamente o aparelho de som. Dizia que tinha a impressão de que o barulho estava dentro dela e que sua intensidade fazia ferver todos os seus órgãos internos. Desesperada, tinha que dar fim ao incômodo de alguma maneira.

Jujuca ficava possesso de raiva quando alguém espirrava perto dele. Achava um profundo desrespeito. Além disso, questionava, quem garantia que não houvesse o espalhamento de doenças em cada espirro dado? Tinha pavor, na verdade, de ser contaminado com alguma doença respiratória, coisa que desconhecia completamente, antes de ser curado.

Por incrível que isso possa parecer, a cura da irritação só se dá com o conhecimento. Aprender, novamente, parece funcionar com precisão em todos os casos de irritação. O que o irritado desconhece e que precisa aprender? Vejamos algumas delas.

a) O mundo é feito de relações. Isso significa que nada está isolado. Tudo contribui para a existência e dinâmica de outras coisas. Tudo o que fazemos beneficia a nós e/ou aos outros. Há uma relação da gente para com nós mesmos e outras relações da gente para com outras pessoas. As relações, portanto, são inevitáveis. Essa é a primeira coisa a ser aprendida.

b) Somos alvo do bem o tempo todo. Se a gente parar para observar, veremos que a maioria das coisas acontecem para nos beneficiar. Quando elas nos prejudicam, o próprio prejuízo tem sempre pelo menos um aspecto benéfico. Por exemplo, se entro e saio várias vezes de ambientes frios e quentes, posso pegar um resfriado. E, se isso me acontece, esse conhecimento é confirmado mais uma vez em minha experiência. Assim, estar resfriado (que é aparentemente um mal) se faz um bem (aquisição de conhecimento). E provavelmente vai reforçar em mim a necessidade de encontrar uma forma de evitá-lo, gerando  mais saber.

c) Aquilo que me irrita é apenas uma visão distorcida da realidade. A primeira distorção é decorrente do desconhecimento da lei das relações, em que é obrigatório que eu me relacione com o mundo, o que inclui aquilo que me causa irritação. A segunda é o desconhecimento de que aquilo que me deixa irritado também me traz pelo menos um benefício. Esse benefício é desconhecido ou sua origem.

d) Se a fonte da minha irritação é uma ação de outra pessoa, o problema não é meu. Entenda-se como problema a obrigatoriedade de corrigir a causa de alguma consequência ruim. Se alguém coloca o som em volume alto e eu considero isso um mal, por que me irritar, se não sou eu que estou causando o mal? Aquilo que os outros fazem é obrigação deles corrigir. E não compete a mim obrigá-los a isso.

e) Se o som alto da outra pessoa me causa irritação, o problema não é o som, mas o que há em mim. O autoconhecimento é fundamental em todas as situações de irritação. A experiência tem mostrado que a irritação é apenas a reverberação, o aumento de intensidade, daquilo que habita no indivíduo que se irrita. Pode ser inveja por não poder fazer o mesmo barulho, por exemplo.

O que queremos mostrar é que a irritação é a incapacidade do indivíduo de se autocontrolar. Ele não consegue separar as coisas de fora e de dentro dele. Por extensão, não consegue distinguir entre as coisas que ele pode e as que não pode controlar. O que o torna irritado, então, é o desconhecimento do fato de que pode controlar os efeitos das causas externos agindo sobre seus recursos internos.

Ricardinho não suportava a voz rouca da sua chefa temporária, que veio de outra cidade; resolveu o problema colocando um fone de ouvido com músicas de Beethoven em tons baixos. Mariinha não aguentava a presença de sua cunhada em sua casa nos finais de semana, mas a irritação foi eliminada quando começou a imaginar uma aura de luz em volta do corpo da irmã de seu marido. Jozito deixou completamente de se ofender com as ironias de Vivinho quando soube que elas eram expressões de profundas invejas.

O conhecimento de que a irritação não é originária dos outros mas do que há em nós leva, necessariamente, à invenção de alguma estratégia de uso dos recursos internos para pelo menos frear aquilo que nos irrita. Não é o que está fora que me causa a irritação, mas a forma como eu reajo. Não posso impedir que o céu deixe de ser azul, mas posso inventar uma forma de não deixar que isso me irrite. E o que fazer com as aparentes causas distantes?

Dimitriva era altamente preconceituosa com os homens que tinham cabelos escorridos até os olhos. Achava todos criminosos. Tinha certeza disso. Bastava ver alguém com cabelos escorridos até os olhos que o ódio se lhe tomava conta a ponto de poder cometer assassinato antes que o outro o fizesses. Seções de psicanálise apontaram a causa do problema. Na infância, Dimitriva assistiu a dois assassinatos cometidos por um vizinho que tinha cabelos escorridos até os olhos. A cena foi tão forte que fugiu completamente de sua memória, mas permaneceu intocada nas gavetas de seu inconsciente.

Ainda que as causas estejam distantes, é sempre o conhecimento que gera a cura de todas as irritações. De forma mais precisa, é necessário autoconhecimento para que as nossas estruturas emocionais sejam inabaláveis contra as tempestades exteriores, porque as causas são todas internas. Mas é necessário conhecimento relacional dos fatos e fenômenos do mundo, tanto para ver a beleza das coisas quanto fortalecer o amor que passaremos a ter para com nós mesmos. E quem se ama não se irrita.

sábado, 12 de dezembro de 2020

Uma Dor muito Profunda

 Há pessoas que carregam dentro de si uma dor tão profunda que um olhar mais cuidadoso é capaz de percebê-la e até senti-la facilmente. Muitas vezes apresentam um olhar ferido em um rosto quase sempre franzido, como se olhassem o mundo e a vida com desgosto ou desdém. Quase não sorriem, a não ser para exteriorizar uma parte de sua dor em forma de sarcasmo ou cinismo. Têm muitas dificuldades em elogiar. Quando elogiam o fazem para aliciar ou puxar o saco. Não têm amor próprio. São profundamente doentes de um orgulho que exala de todos os seus poros físicos, mentais e espirituais.

João é uma pessoa bem sucedida. Conhecida no mundo todo por sua obra em várias áreas, resolveu incentivar a cultura de sua pequena cidade do interior amazônico. Convidou a todos para uma coletânea de textos. Não importava o tipo de texto. Por mais de três meses percorreu todas as redes sociais convidando possíveis autores para promover suas obras. Com muita dificuldade conseguiu completar a obra e a publicou.

Os poucos autores que atenderam ao convite ficaram muito felizes pela oportunidade. As milhares de pessoas da cidade e de outras comunidades se maravilharam com o talento daqueles conterrâneos. Muitas delas decidiram participar de uma segunda empreitada, caso ela ocorresse. E a obra começou a ser compartilhada para regiões mais distantes, elevando o conhecimento de sua existência e importância para o resgate da literatura daquela região brasileira.

Zezeco, em uma conversa a sós com João, demonstrou toda a sua fúria com a publicação de textos de autores desqualificados, plagiadores, vermes, nas suas palavras. O motivo da fúria? A obra não citou, em nenhum momento, o nome Zezeco. Aliás, toda a obra deveria estar voltada apenas para o nome dele. E ele não entendia por que João, uma pessoa considerada culta e muito importante em vários lugares do mundo, cometera um erro tão estúpido desse.

Noutra ocasião, um grupo de amigos resolveu coletar donativos de roupas e alimentos para que, mensalmente, pudesse aliviar a fome dos moradores de uma comunidade miserável amazônica e substituir os trapos que vestiam por vestimentas mais dignas. E assim fizeram. No primeiro mês, a felicidade daquela comunidade foi quase geral. Quase. 

Fulustreca, uma senhora de aparência repulsiva, ficou indignada com a marca do macarrão que estava sendo distribuído. Havia, argumentava a moradora, marcas mais famosas na cidade. Por que não estavam ali? Além disso, por que não davam mais roupas novas do que usadas? Por que ela teria que aceitar aquelas doações de última categoria, nas palavras dela?

Tanto o caso de Zezeco quanto o de Fulustreca, se vistos de forma superficial, podem ser tomados por atitudes normais. Mas não o são. O normal é agradecer a todo tipo de doação feita com intenção de bondade. Toda atitude centrada no bem, voltada para o bem, realizada para trazer alegria e contentamento precisa ser louvada. O que essas atitudes estranhas mostram, na verdade, é um descontentamento profundo que essas pessoas têm com elas mesmas.

A atitude de Zezeco é translúcida: ele queria ser o centro das atenções do livro de que ele não fez parte. Todos os textos deveriam falar dele, dos seus feitos, para que lhe pudessem trazer um pouco de contentamento - ou pelo menos não despertar seu descontentamento e sua fúria. Mas por que todos os textos do livro não falaram dele? Simplesmente porque nosso irmão é uma figura insignificante para ser retratada em um livro. Diante da realidade da insignificância e da fantasia de que ele é a pessoa mais importante do mundo surge uma lacuna abissal difícil de ser preenchida. A não ser, evidentemente, com ódio.

É essa mesma evidência que há em Fulustreca. Sua mente diz com nitidez que ela gosta de produtos de marcas famosas. Por quê? Talvez porque ela assim se veja intimamente ou porque se considere digna das coisas mais distintas e exclusivas do mundo, ainda que o mundo seja o universo daquela pequena cidade que habita. Noutras palavras, aquela moradora se vê como o centro do mundo e assim exige que seja tratada, ainda que inconscientemente, mas materializado nas suas atitudes.

A origem de tudo isso é o orgulho. Um orgulho tão profundo que não permite que as pessoas distinga a realidade de suas fantasias. Como o tempo todo suas fantasias estão sendo confrontadas com a realidade, o tempo todo estão se frustrando e o tempo todo estão demonstrando o seu descontentamento com aquilo que a realidade lhes mostra. É por isso que têm o rosto fechado, franzido, os olhos tristes, aquele ar raivoso e os sorrisos maquiavélicos.

As pessoas com orgulho profundo se veem como o centro de tudo, do mundo. Veem-se como os melhores escritores, mesmo sem escreverem uma frase sequer; como os melhores fotógrafos do planeta, ainda que suas fotografias tenham alguma qualidade; os melhores oradores do universo, mesmo que não consiga prender a atenção de ninguém; os raciocínios mais geniais da eternidade, ainda que os expressem com palavras chulas. Há sempre o confronto das suas fantasias com a realidade, em que suas ilusões são desfeitas, mas eles não veem. Na mente doente deles, quem está errado é o mundo e tudo o que nele existe.

E gente com orgulho profundo é o que não falta na face da terra. Eles não gostam de entrar nas filas, procuram um jeito de burlar a paciência dos demais; nas lojas, se algum problema acontece, querem logo falar com o dono da loja porque nenhum funcionário está à altura de ouvir suas vozes; nos grupos sociais são os que exigem mais visibilidade e puxassaquismo; no trabalho são os que querem ser promovidos sem mérito; e até nas suas relações com Deus, exigem uma mansão com inúmeros empregados, aqui e na outra vida.

Todas as vezes que o EU aparecer antes do NÓS, ali há alguém com dor profunda. EU tenho que ser servido primeiro, EU sou o único merecedor daquele prêmio, todos têm que ME obedecer, o MEU trabalho é o melhor. O orgulhoso doentio é o centro do mundo porque foi convencido por suas ilusões. Nele não há alteridade, essa desconfiança de que não somos melhores nem piores do que os outros, mas apenas diferentes. 

O orgulhoso profundamente doente vive em um mundo de fantasias. Felizmente para ele, a realidade trata de colocar as coisas nos seus devidos lugares o tempo todo. Consequentemente, o tempo todo eles estão descontentes, raivosos. Chegará o dia em que as ilusões darão lugar à realidade. Mas, até lá, muito sofrimento ainda haverá de haver.

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Supersimplificações

Quase todos nós temos uma tendência a generalizar as nossas ideias. E isso até que é natural. Mas é preciso tomar muito cuidado para que não passemos a acreditar que aquilo que a gente acredita seja a própria realidade. Uma coisa é imaginar a realidade, outra coisa é como ela é de fato. Quase sempre há desencontro entre o que imaginamos e como o mundo é realmente. Quase sempre nossa imaginação é plantada em nós e nos aprisiona.

Por muito tempo se imaginou que a terra era o centro do universo. Todos os outros astros, incluindo o sol em toda a sua majestade, giravam ao redor do nosso planeta. Não se admitia a existência de outros mundos. As estrelas, por exemplo, estavam presas, suspensas, em um gigantesco arco de cristal. E assim essa imaginação coletiva perdurou por mais de dois milênios.

Uma imaginação tão grande como essa passa a dominar todas as nossas esferas de vida. Os deuses gregos, por exemplo, eram todos invenções dessa forma de imaginar e por isso executavam os papéis de ordenadores do mundo dos homens. Aquela harmonia que se verificava no céu (no cosmos) também deveria ser reproduzida no mundo dos homens. Era um mundo de certeza e estabilidade. Qualquer outra imaginação que estivesse em desacordo com essa grande imaginação poderia até causar a morte, como aconteceu com Sócrates.

Ao longo da história, não foi apenas essa grande imaginação que tomou conta e dominou a mente e a forma de viver das pessoas. Inúmeras outras, tão fantasiosas quanto essa, apareceram e desapareceram, como sói de acontecer. O que faz as nossas fantasias se desvanecerem são a racionalidade e as evidências fáticas, dois palavrões que precisam ser conhecidos.

Racionalidade é o descobrimento ou invenção de relações de causa e efeito em duas ou mais coisas. Se sei que comer muito carboidratos pode provocar diabetes, digo que o diabetes é efeito do excesso de carboidratos, sua causa. Assim, para que eu reduza ao máximo a probabilidade de ficar diabético, tenho que reduzir o consumo de carboidrato apenas ao que é necessário, uma vez que sua ausência também é prejudicial. Note, aqui, outra relação causa-efeito: ausência de carboidrato é causa de outras doenças, que são seus efeitos.

Evidências fáticas são demonstrações da realidade daquilo que a racionalidade inventa, explica. As evidência comprovam ou reprovam os esquemas racionais. Por exemplo, se um milhão de indivíduos come carboidratos em excesso e quase todos eles têm diabetes, isso é forte evidência de que a explicação racional é válida. Note que eu falei "quase todos" e não "todos". A razão disso é que haverá sempre uma margem de erro aceitável nas explicações racionais. 

Tanto na proposição de uma racionalidade quanto nas demonstrações dos fatos, podemos errar. E essa é uma das características fundamentais que reduzem em muito a possibilidade de nossas ilusões nos aprisionar. Quem se ilude não admite erros, de forma que tudo o que fala passa a ser verdade. Verdade é a ausência de erros e de sua possibilidade. É por isso, por exemplo, que a ciência não trata e nem lida com a verdade. Uma explicação, para ser científica, tem que apresentar uma margem de erro aceitável. Não existe ciência sem erro.

Vejamos duas grandes ilusões do nosso tempo que teima em continuar aprisionando a cabeça de muita gente por aí, principalmente pessoas importantes que se consideram (e são consideradas) sábias. A primeira é que há um grupo de pessoas opressoras que domina e oprime a maioria das outras pessoas. Nesta supersimplificação, quem não é opressor necessariamente é oprimido. Inversamente, quem é oprimido, necessariamente não é opressor. É outra versão ainda mais infantilizada de ricos e pobres, burgueses e proletários, explorado e explorador e assim por diante.

A ciência tem demonstrado que cada pessoa executa em diversos momentos de sua vida e até dos seus dias ações de opressão e também é oprimida. Ainda que os gênios dessa dualidade não definam o que é ser oprimido e nem o que é ser opressor, vamos imaginar (e isso é imaginação, não é ciência) que opressor é quem causa dor e oprimido é quem recebe a ação do opressor, quem sofre a dor. E vamos imaginar que só haja dor proposital, planejada, como os sábios dessa oposição imaginam.

Quando um pai pune o filho de alguma maneira, está sendo opressor, se o filho achar que aquilo lhe é doloroso. Inversamente, quando o filho desaponta o pai com alguma atitude indesejada, está sendo opressor. Olhando de outra forma, se o pai deixa o filho de castigo para que ele reflita sobre sua ação indesejada, o pai é opressor ou amigo? Se o filho reconhece que sua atitude prejudicou várias pessoas e que se não fosse a ação do pai não aprenderia a lição, estaria sendo oprimido?

Mais ainda: se outro filho, que não tem pai e que teve atitude semelhante com consequências semelhantes, toma para si a responsabilidade de consertar seu erro, estaria sendo opressor de si mesmo ou estaria sendo oprimido? Alguém que sofre de bulimia, que faz sofrer seu corpo e sua mente, seria opressor ou oprimido?

Outra supersimplificação é o discurso que só tem sucesso quem se dedica com afinco ao trabalho. Essa é outra imaginação tão frágil que basta ver que em todo lugar tem os desonestos. Desonesto é aquele que burla as leis ou esquemas morais para se dar bem. E muito desonestos são bem sucedidos. Muitos deles são milionários, têm os bens que querem, têm o poder que desejam, muitos são muito famosos.

O trabalho honesto sempre é um bem. Isso é fato. O trabalho honesto beneficia (palavra derivada de benefício, bem) pelo menos o seu executor ou quem o está recebendo. Mas a ideia de sucesso é tão variada quanto o comportamento das pessoas. Se João considera sucesso "ser ou ficar milionário", Maria pode considerar "Ser famosa", enquanto para José pode ser "ser feliz". Na cabeça de João, a imaginação pode lhe dizer "Que adianta ser famosa e feliz, se não é milionário?". A cabeça de Maria pode lhe dizer "De que adianta ser milionário e feliz, se não é famosa?". A cabeça de José pode lhe advertir "De que adianta ser milionário e famosa, se não é feliz?".

Os inventores de supersimplificações têm completa ignorância sobre o universo interior das pessoas. Eles imaginam que o mundo é do jeito que suas cabeças orientam. Cada gênio da supersimplificação pensa como José, Maria e João de nossos exemplos, de maneira bem rasteira, como as crianças o fazem. São adultos infantis. Só que eles não sabem disso. Como as crianças, eles se imaginam revolucionários em suas fantasias.

Mas eles têm muitos seguidores, milhões podem falar de forma consistente. É verdade, não há de se negar. Mas são todos infantis, já que seguem pensamentos infantis? Infelizmente a resposta é sim. Alguns as seguem por infantilidade, enquanto outros o fazem por esperteza, desonestidade. Felizmente, os que são mais infantis do que desonestos são a maioria. O que lhes falta é conhecimento. 

Com os espertos é mais difícil de lidar. Como se veem em um papel de salvar o mundo, fazem de tudo para que suas ideias ilusórias sejam conhecidas por todos. E criam formas de "ensiná-las" a todos. E fazem denúncias e manifestações de todo tipo. Agem exatamente da forma como denunciam seus ilusórios adversários de fazê-lo. Afinal, segundo eles, seus opositores nunca dormem. Estão sempre a inventar novos artifícios para espalhar suas maldades.

E o que se deve fazer? Primeiro, desconfiar da forma como todo mundo pensa. Se a maioria das pessoas pensa de um jeito, tente imaginar a possibilidade de elas estarem equivocadas. Faça o teste da racionalidade (causa-efeito) e das evidências dos fatos. Se reprovar em um desses testes, procure outras explicações. Provavelmente você encontrará várias delas.

Em segundo lugar, veja se as pessoas que pensam dessa forma admitem pelo menos uma mínima possibilidade de estarem erradas. Quanto menos possibilidades elas apresentarem, maiores as chances de estarem se iludindo. Se não apresentarem nenhuma possibilidade e só enxergarem coisas boas no que dizem, esteja certo de que elas estão se enganando.

Em terceiro lugar, veja se acusam pessoas, grupos de pessoas, instituições ou coisas abstratas como "sistema" ou algo parecido como a causa do que denunciam. Como os gênios das supersimplificações são perfeitos, todas as causas de maldade e coisas ruins estão sempre fora deles, estão nos outros. Inversamente, como são deuses, tudo o que falam é a verdade e tudo o que orientam só traz o bem.

Em quarto e último lugar, veja se eles reconhecem alguma virtude em quem pensa diferente. Quanto menos virtude forem reconhecidas, maiores as probabilidades de ilusão. Se não houver alguma virtude nos seus adversários (eles sempre apontam algum adversário, preferencialmente com o uso de palavras abstratas, que ao mesmo tempo em que engloba muita gente não identifica ninguém, outra prova de ilusão).

domingo, 22 de novembro de 2020

Sangue de Barata

Uma das coisas que sempre me impressionou ao longo de quase toda a minha infância foi a expressão "ter sangue de barata". Eu entendia tanto o seu sentido sintático quanto semântico. O que me incomodava era um dos sentidos pragmáticos. Eu entendia que aquele que não tinha sangue de barata tinha muita facilidade de ficar com raiva de alguém a ponto de praticar qualquer tipo de agressão verbal ou física. 

Meu conhecimento era vivido, vivenciado, experimentado nos exemplos dos outros. Mas outro sentido exigiu muito do meu cérebro e da minha mente. Vejamos alguns exemplos, para que se compreenda o que quero mostrar.

Tínhamos um amigo muito, muito calmo. Vivia quase o tempo todo sorrindo. Saudava as pessoas quase sempre com um sorriso, dado que não era de muitas palavras. Jogador de futebol mediano, jamais se ofereceu para integrar uma ou outra equipe. Ficava sempre na dele. Se lhe convidassem, aceitava o convite com dedicação; se o convite não chegasse, tudo bem. Era notória a alegria dele de apenas acompanhar a molecada na sua diversão.

Certo início de noite, quando nos encontrávamos para as brincadeiras de bandeirinha, esse amigo se sentou ao meu lado. Como sempre, chegou, sorriu e ficou ali, calado. Em seguida, um outro amigo se aproximou e começou a azucrinar a vida do amigo calmo. Durante toda a brincadeira, o tempo todo ele foi importunado. Teve até agressão verbal, sem qualquer reação que não fosse o pedido em forma de súplica "vai embora, rapá".

No final das brincadeiras, quando os primeiros moleques já começavam a ir embora dormir, o importunador resolveu empurrar o menino calmo. Nesse instante, algo impressionante aconteceu. Como um gato, no mesmo segundo em que começou a escorregar pela sarjeta, o garoto sorridente desferiu um violento chute no rosto do importunador. Imediatamente o sangue começou a jorrar.

De forma inacreditável, ao invés de cair na sarjeta, com a violência do chute, o menino calmo caiu ao lado do corpo inerte do seu adversário. Como eu estava perto, alertei a todos que o golpe havia tornado imóvel o outro moleque, sem sucesso. Com muita rapidez o menino calmo começou a agredir com tamanha violência o outro que quase esmagou o meu braço, ao tentar pelo menos amenizar seus golpes. Meus gritos de dor convenceram os demais.

Quanto mais eu me agarrava ao menino calmo descontrolado, mais percebia que sozinho eu jamais conseguiria contê-lo. Além disso, meus apelos não moviam seus olhos do seu importunador. Parecia sair faíscas daqueles olhar avermelhado, enlouquecido, ensandecido, criminoso. Com a ajuda dos outros, o corpo do menino foi arrastado para longe do menino calmo que, como se nada tivesse acontecido, pegou sua camisa da batente de uma das portas daqueles casarões antigos e se foi, calmamente. Nada falou.

Com os outros moleques era diferente. A explosão começava quase imediatamente à importunação. Se alguém falasse alguma maldade da mãe do outro, no mesmo instante as agressões verbais e físicas começavam, não necessariamente nessa ordem. Bastava uma pequena faísca e logo as agressões aconteciam. 

Noutras vezes era preciso, digamos assim, uma certa maquinação. Por exemplo, desenhavam-se duas imagens no chão e dizia-se que eram as mães (sempre elas) de um e de outro adversário. Aí um pisava na imagem da mãe do outro para provocar-lhe até que se chegasse às vias de fato. 

Esses dois casos ilustram a ideia mais óbvia da expressão "não ter sangue de barata", que pode ser considerada sinônima de "Não levar desaforo para casa". Quem não tem sangue de barata agride quando é agredido. Mas também agride quando não é agredido. Se sua interpretação da realidade é de não agressão, ele não agride. Mas, se for de agressão, ainda que de fato não tenha sido essa a realidade, ele agride também.

Parece ser o instinto a faísca que acende o ódio que domina todos aqueles que não têm sangue de barata. A dimensão racional das faculdades humanas ainda não está razoavelmente desenvolvida a ponto de lhes dar um sinal de que as coisas talvez não sejam da forma como elas se aparentam. E tampouco que pagar o mal com o mal seja a saída mais inteligente que existe.

Aqueles que reagem de forma automática são os mais deficientes racionais, mais dominados pelo instinto. Tanto é assim que parece que é são os seus corpos que reagem no exato instante em que eles levam um tapa. O lapso de tempo é tão curto que não é possível sequer acompanhar com os olhos. É com se fosse zás(tapa)-trás(revide).

Certa vez uma mãe pediu à filha de cerca de cinco anos lhe trazer um copo d´água. Irritada, a criança respondeu "por que você não vai pegar?". Quando a criança pronunciou a última sílaba da última palavra seu rosto foi acertado por um violento tapa da sua genitora, totalmente tomada de ódio, exatamente como o menino calmo ficou quando tentava tirar a vida do seu importunador.

Aqueles indivíduos do "vai embora, rapá", "me deixa em paz" e "não mexe comigo" já evoluíram um pouco na longa escada de acesso ao andar do completo controle emocional. Já não reagem automaticamente. Já se conhecem um pouco mais, sabem do que são capazes de fazer, caso percam o domínio de suas emoções. A diferença entre eles e os outros é apenas na quantidade de carga (ou faíscas) de estresse necessária para que seu instinto criminoso deixe de lado seus ainda tênues recursos racionais.

E quem são os que têm sangue de barata. Algumas vezes são indivíduos evoluídos, que sabem que as agressões, quaisquer que sejam elas, são apenas combustíveis de novas agressões. Sabem que as agressões de revide podem demorar, mas que elas virão. Podem levar até gerações ou séculos, mas um dia serão acesas, caso a evolução moral não alcancem a mente e a alma dos agredidos.

É por essa razão, por exemplo, que mesmo que sejam cruelmente espancados, são capazes de cuidar dos agressores. Ainda que suas famílias sejam dizimadas, encontram tempo para se dedicarem aos seus assassinos. Eles sabem que os outros fazem essas atrocidades porque precisam de ajuda. E como conhecimento gera ação, a consequência natural é o cuidar, verdadeira essência do verbo amar. Amar principalmente aos inimigos. 

Quem ama, na verdade, não tem inimigo, ainda que outros assim o considerem. Podem até sentir raiva, mas praticamente no segundo seguinte a razão e o sentimento nobre já lhe dominaram completamente o resquício de instinto que ainda lhes remanesce. Quem tem sangue de barata é evoluído, mas isso não quer dizer que sejam santos, que sejam perfeitos. Algumas pontinhas de imperfeições ainda existem neles.

Os demais que não têm sangue de barata são variados, tais como os covardes, dissimulados e zombeteiros. Estão mais para a covardia do que para a nobreza de espírito. Não têm coragem de reagir às agressões verbais, por exemplo, pelo menos quando estão ao alcance dos seus agressores por medo das consequências físicas. Mas o ódio permanece na sua mente por longo tempo, esperando uma oportunidade para se manifestar de alguma forma que o agressor não perceba sua ação.

Como são fracos, alguns internalizam de forma tal as agressões não revidadas que somatizam seus horrores psíquicos em patologias fatais. Surgem aí alguns deprimidos, suicidas, vítimas da síndromes de pânico, dentre muitas outras consequências nefastas. Em síntese, a outra parte dos que têm sangue de barata são dissimuladores.

A grande descoberta, então, foi essa. Os que se vangloriam de não ter sangue de barata são nossos irmãos que ainda estão nos primeiros degraus da escala evolutiva moral e espiritual. Veem defeitos e horrores em tudo e em todos. E, na primeira oportunidade, estão praticando os seus revides. Agridem verbalmente, agridem fisicamente, agridem moralmente, agridem espiritualmente, agridem mentalmente. Onde há agressão, manifesta ou reprimida, ali está a ausência do sangue de barata. E na ausência desse sangue da elevação há a presença do ódio.

E como tudo evolui, também evoluiu a forma de não se ter sangue de barata. A agressão pode vir dissimulada de análises técnicas, científicas, filosóficas, religiosas, éticas, morais, dentre inúmeras outras formas. E quanto mais doente for o agressor, mais sórdidas e inconscientes as agressões. Tanto é assim que jamais ele reconheceria que está agredindo, principalmente quando ele se coloca a etiqueta de defensor de alguma coisa. São os pseudossábios, pseudoespecialistas, pseudoconhecedores. São escravos de um tirano para eles desconhecidos: a ausência (não a falta) de amor.

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...