quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Tu Amas?

Amor é uma palavra que pode ser encontrada em qualquer lugar, o tempo todo. Apenas no Google, em língua portuguesa, há quase dois bilhões de algum tipo de texto ou postagem sobre ela. Parece que todo mundo precisa falar de amor. A impressão que se tem é que todo mundo tem alguma coisa a falar sobre ele. Essa efusão e profusão de falas, infelizmente, tem uma coisa bastante peculiar, que caracteriza quase todas elas: um gigantesco e terrível equívoco. Estão confundindo amor com diversas coisas, principalmente afeto. Amar é cuidar. Expliquemos isso.

Tomemos o caso bíblico, em que o Cristo pede que nos amemos uns aos outros. Ele não pediu que nos fizéssemos carinho uns aos outros, muito menos que fiquemos nos dizendo "eu te amo" uns para os outros. Ainda que o Mestre Galileu tenha falado inúmeras vezes algo do tipo "assim como eu vos amo", ele não estava fazendo uma declaração de amor do jeito que imaginamos hoje. Ele estava se referindo ao cuidar.

O que fez o Cristo durante toda a sua vida? Exatamente: cuidava das pessoas. Cuidava de todo mundo. Desde o acordar ao dormir, passava o tempo todo cuidando das pessoas. E cuidava de inúmeras formas. Algumas vezes, dava de comer aos famintos; noutras vezes, dava de beber aos que tinham sede; inúmeras vezes consolava, com palavras que penetravam a alma; e muitas e muitas vezes, ensinava. Cristo agia o tempo todo. Não parava. Até chegou a dizer que o Criador amava mais do que ele porque Deus nunca parava de agir, criar, cuidar.

Por erro de tradução, os textos bíblicos tornaram a verdadeira fonte de transformação em algo banal. Agir é o que leva qualquer um para a frente. Mas não basta qualquer tipo de ação. A única que faz transformação é aquela ação que torna o outro feliz. Então agir para beneficiar o outro é a chave de tudo. É pela felicidade do outro que encontramos, nós, a nossa própria felicidade.

E temos que fazer aos outros aquilo que gostaríamos que fizessem por nós. Nossa ação tem que ser direcionada para essa lógica. Tornar o outro feliz como gostaríamos que nos fizéssemos felizes. Temos que agir sempre. E agir no bem. Daí ficaremos triplamente felizes. Primeiro, com o bem que fizemos ao outro; segundo, com o próprio ato de fazer o bem, no exato instante em que estamos fazendo o bem ficamos felizes; e terceiro, com o bem que to ato de ter feito o outro feliz nos faz felizes.

E não importa se o outro perceba o que fizemos por ele. Importa muito menos se o outro vai fazer alguma coisa por nós. A gente consegue ser feliz, amando, independentemente do outro. Somos nós que construímos a nossa felicidade porque somos nós que agimos. Não dependemos do outro para sermos felizes. Se dependermos, nunca seremos felizes.

É por essa razão que a pessoa que aprendeu a amar é aquela que aprendeu a cuidar dos outros e da natureza. Natureza e as outras pessoas são a matéria-prima com as quais treinamos nossa capacidade de fazer o bem, da mesma forma que faz o Criador. Um dia seremos deuses, disse Jesus. Então temos que treinar, exercitar agora, todos os dias, a cada oportunidade. Quanto mais treinamos, mais hábeis ficaremos na produção da felicidade. Da mesma forma que o primeiro a ser iluminado é aquele que acende a luz, o primeiro a ser feliz é aquele que produz a felicidade.

Não é difícil entender que há pessoas que são muito mais feliz, sim, do que a maioria da população do planeta. Essas pessoas felizes são aquelas que amam o maior número possível de vezes. Vale dizer, são aquelas que cuidam das pessoas o maior número de vezes. A cada vez que cuidam, a cada vez se sentem e se fazem felizes. Quanto menos cuidamos, menos felizes somos. E se não cuidamos, não tem outro jeito: a infelicidade será nossa companheira permanente.

Para servir, é preciso aprender. Quanto mais coisas sabemos, maior o número de formas diferentes de cuidar dos outros. E de nós mesmos. A felicidade, então, está associada, depende, do que sabemos. Mas não basta o saber. É preciso que tenhamos a vontade e a determinação de usar o que sabemos. É preciso praticar. É preciso aprender e colocar em prática os saberes. Só assim a felicidade vem.

Tu amas? Quantas vezes você faz o bem aos outros todos os dias? Veja se o primeiro foco de teu cuidar é cada membro da tua família; depois, dos teus amigos e colegas de trabalho. Faz um balanço diário de quantas vezes você fez o bem a cada um deles. E balanço significa quantas vezes você fez o bem e quantas vezes você recebeu o bem. Se recebes mais bem do que dás, és mais amado(a) do que amas. Mas é preciso aprender a ver bem tanto o que fazes quanto o que recebes, para não seres injusto(a).

O egoísta é aquele que ainda não aprendeu a amar, como mostraremos na próxima postagem. Veremos por que o egoísmo nos afasta do amor e de Deus. Entenderemos por que o egoísta é um parasita que mata todos os dias a si mesmo.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Críticas

Há algum tempo tem havido um movimento mundial para a promoção da crítica. Esse movimento pretende que a crítica faça parte do cotidiano das pessoas no mundo todo. Há, por exemplo, um braço filosófico, chamada filosofia crítica, e principalmente na educação, com diversas denominações. Embora louváveis algumas dessas iniciativas, é preciso muita cautela pelos impactos negativos que a maioria delas gera. Toda crítica é um veneno.

Pegue qualquer texto ou preste atenção ao discurso das pessoas que se dizem críticas. Pelo menos uma de três coisas serão percebidas. A primeira é o esforço de encontrar erros nos trabalhos e feitos dos outros. Neste particular, todo crítico é incapaz de perceber e compreender que o ser humano é imperfeito. Por mais genial que possa parecer, como nas obras de arte, tais como Michelangelo e Mozart, há sempre a possibilidade de se encontrar falhas, erros nelas.

Os críticos são incapazes de perceber a imperfeição na prática e no raciocínio. Tanto é que obras formidáveis são erigidas desconsiderando essa singela constatação. Exigem dos outros a perfeição que ninguém é capaz de alcançar. E não percebem o outro lado da crítica. Quem critica dá a impressão de que sabe mais do que o que fez o ato falho. E age como tal. Ora, se o crítico é tão genial assim, por que não faz perfeito o que considera falho? Vejamos alguns exemplos.

Há quem diga que Neymar é isso ou aquilo. Tudo bem, aceitemos por enquanto a crítica. Mas o crítico que o faz tem que ser capaz de jogar futebol tão bem ou melhor do que Neymar, em primeiro lugar, e, depois, agir com a retidão que exige do jogador. Isso o crítico não percebe: precisa ser capaz de colocar na prática aquilo que exige do outro. Se não fizer isso, é hipocrisia o que faz.

A segunda coisa é a inveja que está por trás de toda crítica. A inveja é aquela vontade inconsciente de ser ou fazer o que denuncia. Quando alguém diz que fulano é feio, no fundo quer ser fulano. Se outro diz que beltrano faz coisas reprováveis, muito provavelmente também gostaria de fazer. Quase tudo inconscientemente. É que o discurso diz coisas que não falamos. Ou falamos nas entrelinhas.

A inveja é um veneno que corrói o corpo, a mente e a sociedade. Quando ela está presente, provoca a produção de hormônios nocivos ao corpo, envenenando-o, matando-o aos poucos. E se o alvo da inveja se incomodar com ela, o mesmo efeito lhe é produzido, envenenando-o também. A razão disso é que a mente, que faz parte do corpo espiritual do invejoso, está doente. E a doença penetra no corpo, contaminando-o. Quanto mais pessoas se contaminarem com os efeitos do ato invejoso, a doença passa a fazer parte do corpo da sociedade, matando-a aos poucos.

Fica fácil compreender que todo crítico deseja ser o que critica. Portanto, a terceira coisa que o crítico não percebe é seu desejo de fazer o que denuncia. Isso significa que todo crítico é um incapaz. É alguém que torna pública a sua incapacidade de fazer. Como não sabe fazer, denuncia, critica.

Como superar a crítica? Há duas possibilidades, pelo menos. Para o que gosta de criticar, aprender. Todo crítico é carente de saber, entendido o saber como a) compreender a lógica das coisas, b) saber manusear a lógica das coisas e c) agir sempre em conformidade com a lógica da coisa. Vejamos alguns exemplos.

Se digo que Neymar deveria agir de determinada forma, primeiro devo aprender a jogar futebol tão bem quanto ele para galgar a fama que ele auferiu para experimentar a ação criticada no jogador. Aqui temos as três coisas a) entender a lógica de como jogar futebol tão bem quanto Neymar, b) saber jogar futebol tão bem quanto Neymar e agir da forma como eu critiquei e c) agir sempre da forma como eu critiquei, sabendo jogar futebol tão bem quanto Neymar.

Alguém poderá argumentar que o que foi criticado foi o fato de Neymar ser desrespeitoso com a imprensa. Sim, é verdade. Mas o desrespeito é consequência da fama extrema do jogador, que por sua vez é decorrente da sua brilhante habilidade de jogar futebol e que essa habilidade se mantém constante. Enquanto o brilhantismo se mantiver, provavelmente a fama se manterá e, não tão provavelmente assim, o desrespeito poderá se perpetuar.

A segunda coisa é em relação ao criticado. Jamais revidar. Jamais agir como crítico. Crítica é veneno. Como o crítico tem visão e interpretação limitadas, não se lhe deve dar ouvidos. Se a ação criticada foi com intenção do bem, continue a agir assim; se não o foi, corrija-a. Neste último caso, o crítico se lhe foi de alguma utilidade. Mas não se deixe influenciar por ele. Ele quer, inconscientemente, lhe envenenar porque ele lhe inveja.

A mente e a atitude dos críticos estão voltados para a destruição. Agindo assim, muitos até de boa vontade, acreditam que estejam contribuindo para melhorar as coisas. Suas habilidades estão voltadas para o ruim, que é o que lhes predomina interiormente, jamais para o bem. Se virem mil coisas boas e uma ruim, seus olhos captarão apenas o que é ruim, deixando de lado as mil outras. Por isso os críticos jamais serão sábios.

Para transformar qualquer crítico em pessoa normal, é necessário que sigam o caminho do saber. Primeiro precisam aprender a lógica das coisas que criticam, porque não a conhecem. Só criticam porque não sabem como ela funciona. Segundo, precisam aprender a prática dessa lógica. Geralmente o crítico tem ódio do fazer, do praticar, sem perceber que sem saber fazer não há saber. E terceiro, é preciso agir em conformidade com a lógica da coisa que se aprendeu a colocar em prática.

Todas as pessoas que fazem esse percurso deixam de ser críticas. E se transformam em pessoas normais. Se aprender mais um pouco sobre a lógica das coisas e do mundo, a pessoa vai se enchendo de amor por tudo o que aprende, deixando a crítica no passado distante. Passa a se amar e amar aos outros. O aprofundamento no saber pode lhe levar à sapiência. O sábio é aquele que percebe as inconsistências das coisas e, amorosamente, que aprendeu no estágio anterior, ensina a caminhar pelo exemplo. O sábio é aquele que faz o que fala. O crítico é aquele que fala do que não sabe fazer e se engana, pensando que sabe do que fala.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Treino é Treino

Podemos não perceber, mas o tempo todo estamos realizando alguma forma de treinamento. Treinar, aqui, significa todo tipo de coisas que fazemos com certa regularidade. Por outro lado, o termo também quer dizer que, como tudo o que fazemos, em breve ou no futuro distante algum resultado obteremos como consequência desse treinamento. Dormir constantemente é uma forma de treinar, assim como resolver problemas de matemática todos os dias. Falar mal dos outros é outro tipo de treinamento, da mesma forma que ajudar. O desafio, portanto, é saber em que estamos treinando e que resultados esse treino pode nos trazer.

Um amigo de infância, todas as vezes que terminávamos de jogar futebol nos gramados da minha cidade natal, subia no alto de uma caçada e nos fazia gargalhar. Hábil com a bola, tinha muito mais habilidade com as palavras e gestuais. Tantas eram as habilidades que quase todos nos surpreendíamos a cada apresentação. Só muito recentemente é que soube que aquela desenvoltura era resultado de treinamentos constantes, diários. Treinamentos e pensamentos. Pensava sobre como colocar em prática alguma ideia para atrair a atenção, de forma divertida, de todos. Fez-se excelente comunicador.

Também é interessante o caso do jovem apaixonado por resolver problemas. Comprava, sempre que podia, apostilas e livros com questões de concursos. Não distinguia entre provas de vestibular e de concursos públicos. Quanto mais desafiadoras eram as questões, maior o seu interesse. De tanto treinar, chegou a ponto de realizar feitos impressionantes. Conseguia resolver uma prova inteira de concurso em poucos minutos. Resolveu todas as questões de Analista do Banco Central em menos de 50 minutos. E todas as suas respostas estavam corretas.

Curiosa é a experiência da garota especialista em dormir. Sim, dormir. Sua habilidade nisso era tão grande que conseguia realmente dormir em poucos segundos. Dizia-se que bastava que fechasse os olhos para que os roncos fossem ouvidos. E permanecia assim por horas e horas. Isso não significava, contudo, que passasse muito tempo da vida dormindo. Era apenas uma habilidade adquirida com muito treinamento.

O menino mau é um caso interessante. Desde muito novinho sua atenção era para a maldade. Tentou matar o pai, prendeu o gato da família e jogou água fervente nele, dentre outras façanhas maléficas. Desapareceu da cidade. Imaginou-se que alguém o tinha tirado a vida. Trinta e poucos anos depois voltou à cidade incrivelmente transformado. Era um homem bom, amado por todos e pela família, que se dedicava a fazer o bem a todos. Como conseguiu isso? Treinando. Treinava todos os dias. Treina até hoje.

Dizem que Oscar, o Mão Santa, não jogava basquete até a adolescência. Viu um jogo, jogou uma fez e gostou. Convidado, começou a treinar. Treinou muito. Todos os dias. Treinava várias horas após todos terem ido embora. Todos os dias. Treinou tanto que passou a não errar arremessos que quase ninguém acertava com tanta frequência. Fez-se o gênio do basquete mundial, reverenciado em todo o planeta.

Lisbela sempre foi uma bela mulher. Bela e resmungona. Tinha a incrível habilidade de ver o lado ruim de tudo. Das flores nos jardins, via o espinho. Na beleza do azul do céu, incomodava-se com o calor. Se a noite estava estrelada, os mosquitos lhe inquietavam. Se alguém lhe fosse amável, a possibilidade de falsidade era aventada. A todo instante em família, o tempo todo com quem quer que seja, era assim a pobre garota. Não sabe por que ninguém lhe tem afeto, que não seja Arnaldo, o padeiro, que, segundo ela, só quer sexo.

Não importa quem sejamos. Importa saber que constantemente fazemos alguma coisa, pelo menos uma. Importa saber que coisa é e o que ela pode trazer como consequência. Se treinamos coisa boa, a possibilidade de consequências ruins advirem é pequena; se treinamos coisa ruim, a probabilidade de coisas boas advirem é baixa. Quem planta melancia não pode colher amendoim.

O que estamos treinando? O que esse treino poderá nos trazer amanhã ou no futuro distante? Saber a resposta hoje evita futuros desastrosos.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Referenciais Invertidos

Temos uma prática que parece natural, mas que nos traz muitos sofrimentos. É o hábito de nos comparar com os outros. O problema não é a comparação em si, que muito nos pode beneficiar, se feita de forma inteligente, mas a forma como procedemos. Esse procedimento provoca uma inversão na realidade, de maneira que vemos a aparência das coisas e as imaginamos como reais.

Maria vivia reclamando de José, seu marido. Acostumou-se a reclamar de uma forma tal, que se tornou um hábito. Reclamava quando ele trabalhava muito com tanta intensidade de quando ele não saía para trabalhar. Reagia com ódio ante qualquer tentativa do marido em fazê-la sorrir e tomava essas iniciativas como grosseria. Quando trocava algumas palavras com o parceiro, era para acusá-lo como responsável por toda a negatividade de sua vida.

Certo dia, um surto de sobriedade ventilou a mente da esposa. Algumas de suas amigas pareciam muito felizes e isso contribuía para aumentar sua infelicidade. Por que só ela sofria? - se perguntava. Decidida a deixar para traz a infelicidade, foi procurar o caminho para isso a partir de suas amigas. Aprenderia com elas a ser feliz também.

Liduína foi a primeira a ser consultada. Diante da pergunta da amiga, a esposa de cabelos ruivos deu uma imensa gargalhada. Nós, felizes? - surpreendeu-se a amiga visitada. Imagina, completou, que aquele cachorro do Zezu vive me traindo toda semana com umas colegas do trabalho. Ele pensa que eu não sei, mas eu vejo as mensagens que elas mandam para ele no celular. Enquanto a amiga falava, a esposa que se dizia infeliz pensava no seu caso e na confiança que seu marido tinha de lhe entregar o celular sem ressalvas. E estava convicto da sua fidelidade.

Tempos depois encontrou com Marcelina voltando da escola dos filhos. E diante da pergunta, a outra amiga respondeu com lágrimas nos olhos. Após enxugar as lágrimas, a amiga afrodescendente começou a relatar as várias agressões físicas que sofre quando o esposo chega bêbado em casa. E isso estava sendo bastante frequente nos últimos meses. Surpresa, Maria lembrava do marido, que não bebia e, mesmo ante as frases ácidas que recebia costumeiramente, jamais deu sinais de agressão.

Será que até Zenaide, pensou, teria uma vida infeliz, como as outras amigas? Novamente surpreendida, a amiga relatava as insuportáveis acusações de traidora que o marido lhe fazia, movido pela desconfiança do ciúme. Não podia olhar para ninguém na rua. Não tinha celular. Não podia nem falar com a família, que supostamente encobria as traições. E novamente a liberdade que Maria gozava lhe veio à mente, principalmente os incentivos que o marido lhe dava para que se relacionasse mais com a família e com os amigos.

À medida que a amiga prosseguia na sua investigação, aumentava a sua percepção de um fato curioso. Ela só via o que lhe chamava a atenção. E isso prendia tanto a sua atenção, que ela nem desconfiava que aquilo que gostava de ver nos outros era exatamente a encenação que escondia os traumas que as famílias sofriam. Liduína só recebia carinho, coisa que Maria gostava, quando seu marido queria reconciliação; Marcelina só recebia flores quando o  marido se recuperava do pobre e tomava ciência do que aprontou; e Zenaide só recebia presentes quando o marido percebia que tinha ido longe demais com as acusações.

As fotografias que via das famílias felizes postadas na internet representavam aquilo que gostariam que fosse constante, começou a desconfiar. E começou a investigar isso mais a fundo, sem que os amigos e amigas desconfiassem. E descobriu que todas elas têm algum ponto crucial de sofrimento, que nenhuma família é perfeita. E não são perfeitas porque as pessoas que as compõem são imperfeitas também.

Essas reflexões levaram a esposa rabugenta a reconhecer suas atitudes cruéis. Cometera injustiças com o marido esses anos todos. E o pior, reconhecia, é que as acusações tinham uma característica de certeza, convicção, que agora lhe surpreendia. Como pôde se deixar iludir? - refletia. Será que as acusações que fazia ao marido não eram características dela mesma? Não seria ela, a esposa, a imagem daquilo que colocava sob a responsabilidade do marido?

Se o marido pudesse lhe acusar de alguma coisa, que coisa seria essa? Durante vários dias procurou dele a resposta à questão. De tanto insistir, o marido lhe disse enfaticamente, como sempre fazia, e que a esposa confundia com grosseria: -- Maria, se seus defeitos fossem maiores do que as virtudes que vejo em você, tenha certeza de uma coisa: eu lhe diria. E completou: -- Enquanto eu os puder aturar, estamos juntos.

Surpreendida, a esposa passou a se dedicar, a cada dia, todos os dias, a ser uma esposa melhor. E começou impedindo que as ilusões de felicidades das outras famílias ocupasse a sua mente e o seu coração.

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Incrementalmente

Nesta semana inventei um tempinho, achei um dentista disponível e extraí um molar. Ainda com os efeitos da anestesia, senti um conforto muito grande com o encaixe da mandíbula com o maxilar, os ossos de cima e de baixo da boca. Depois que a anestesia passou, a sensação de bem estar aumentou e se consolidou depois que as dores da picada da agulha cessaram. Uma sensação de leveza tão grande tomou conta de mim, como se eu tivesse me renovado completamente. As dores e desconfortos daquele dente deram lugar àquela felicidade que eu sentia novamente e que nem mais me lembrava que sentira antes.

O que me levou à extração foram os profundos desconfortos a que eu estava me submetendo ao seguir as recomendações de vários dentistas, para que eu me esforçasse ao máximo para manter o dente. A cada inflamação mais grave da gengiva eu recorria aos dentistas, pedia que o retirassem, mas me convencia do esforço para mantê-lo. Muitas vezes, quando a bochecha toda inflamava, eu saía de casa resoluto para extraí-lo, mas me deixava convencer novamente. E nisso se foram oito longos anos desde a primeira vez que o quis retirá-lo definitivamente.

Mas o que levou esse dente a gerar tamanho desconforto? Eu suspeito que foi a extração do ciso, décadas atrás. Pela minha explicação ignorante, quando tirei o ciso o molar teve sua proteção retirada também, de maneira que, mesmo com as adequadas escovações diárias, a perda óssea foi, muito lentamente, progredindo. Creio que tirei o ciso no início da década de 2000, provavelmente no ano 2002. Há 17 anos.

Meus registros dizem que a primeira vez que tive desconforto mais intenso com o molar foi em 2011, oito anos atrás. Então, durante nove anos tive, progressivamente, muito lentamente, a evolução do meu problema. A imagem que faço desse processo é de um progresso infinitesimal, microscópico, praticamente imperceptível. Todos os dias, então, toda semana, todos os meses durante todos esses anos, progressivamente, muito lentamente, o desconforto foi se implantando. E tudo terminou nesta semana.

Essa experiência me fez pensar nos sucessos e fracassos da vida. Cada grande sucesso é construído muito lentamente ao longo de muito tempo. Lembro dos casos de Pelé e Oscar Mão Santa, atletas de renome mundial. Ambos, todos os dias, ficavam muitas horas a mais treinando, sozinhos, detalhes dos procedimentos que realizavam depois, nos treinos e nos jogos. Pelé repetia centenas de vezes o mesmo chute, o mesmo drible, todos os dias; Oscar arremessava, todos os dias, milhares de vezes a bola à cesta.

Repetiam cada jogada porque erravam muito. Suas repetições visavam justamente a reduzir ao máximo possível os erros. Miravam ao acerto, mas estudavam seus erros. E repetiam, repetiam, incessantemente, incansavelmente. Como o meu dente. A cada tempo que eu provavelmente demorava ou fazia inadequadamente minha higiene, a perda óssea progredia. Ela não tinha pressa. Estava apenas atenta aos meus erros, à minha despreocupação comigo mesmo.

Não apenas Pelé e Oscar são exemplos da quase perfeição que os esforços contínuos, lentos, incrementais trazem. Zico é outro exemplo. Mas sua preocupação era apenas com a cobrança de faltas e dribles desconcertantes. Pelé e Oscar tinham múltiplos desafios em mente. Pelé, por exemplo, era tão bom goleiro quanto atacante.

Um grande amoroso amigo sonhava em estudar doutorado em economia na Unicamp. Durante 17 longos anos foi reprovado no processo seletivo, apesar de estudar todos os dias, a cada tempo que tinha disponível. Lentamente, muito incrementalmente, sua capacidade competitiva aumentava e seu conhecimento econômico se consolidava. E o resultado foi sua aprovação. O mesmo aconteceu com a senhora que tentou por 26 anos entrar para o curso de medicina. O esforço incremental um dia leva ao sucesso.

Alguns dos meus alunos querem escrever bem com algumas poucas tentativas. E chegam a se irritar quando eu os conserto, quando mostro onde erraram. Certo dia perguntei a dois deles quanto tempo por semana eles dedicam à musculação, à academia. Responderam duas horas diárias, muitas vezes até no domingo, nos últimos dez anos. E lhes mostrei que o corpo esculpido deles era a consequência dessa dedicação. A cada esforço os músculos respondiam, lentamente, moldando-se, esculpindo-se incrementalmente.

Os fracassos são incompletude dos esforços. Fracassamos quando paramos. Somos fracassados quando desistimos de alcançar aquilo que queremos. Pelé não seria o atleta do século, se não se dedicasse horas e horas além do horário de treino a praticar o que praticou, Oscar não seria o maior cestinha de toda a história, Zico não seria o melhor cobrador de faltas de todos os tempos e tampouco meu amigo teria realizado o seu sonho de ser doutor em economia pela Unicamp.

Sonhos não acontecem do dia para a noite. Isso é fantasia. Sonhos são construídos lentamente, devagar, ao longo de muito tempo. Muitas vezes as dores e o próprio sangue são requisitos sem os quais o sucesso não vem. Vejam os casos dos grandes guitarristas. É muito dolorido, no início, o corte que as cordas provocam nos dedos e o sangue chega a marcar e a manchar os instrumentos. Mas é preciso persistir com a dor e com o sangue, se não a crosta, espécie de calo que os cortes vão gerar, não se instala nos dedos. E essa dor se prolonga por meses e até anos, dependendo do grau de precisão e inovação sonora que se pretende obter.

Sei que, ao retirar o molar, outro dente ficou desprotegido. Isso quer dizer que novo processo lento, incremental, se iniciou, da perda óssea desse dente desprotegido. E muito provavelmente em mais ou menos tempo eu terei que lidar com as consequências dessa lei universal irrevogável. Mas essa é uma batalha que, agora, eu estou disposto a enfrentar, cujo objetivo é retardar ao máximo o desconforto e prolongar essa maravilhosa sensação de bem estar que voltei a sentir.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Remendos

Muitas vezes batemos os olhos em alguém e uma força maior do que nossa capacidade de controle toma conta da gente e nos faz fazer coisas terríveis. Não que tenhamos a sordidez de planejar o mal que inconscientemente produzimos. Mas o fato é que fazemos e apenas o longo passar do tempo, quando por diversas vezes tivermos passado de sujeito a objeto da maldade, poderá nos fazer reconhecer o mal que causamos.

Uma boa parte da minha infância foi de muitas necessidades. Tínhamos dificuldades, meu pai e eu, até de conseguir comida para sobreviver. Almas caridosas surgiram e aliviaram o fardo do meu pai para com a minha sobrevivência. Ganhei comida. Ganhei roupas e calçados usados.

Fiquei tão maravilhado com aquelas roupas novas, aqueles sapatos bonitos, que na minha cabeça eram todos novinhos em folha. Na verdade, nem passava pela minha cabeça sequer pensar no tempo que aquelas dádivas tinham.

Eu não tinha o que vestir. Lembro com muita nitidez de ter apenas dois calções, ambos com furos na parte traseira de tanto sentar no chão porque onde eu habitava não tinha cadeiras ou o que quer que seja para sentar. Eu usava as roupas com a parte de trás para a frente. É claro que eu sentia vergonha quando de vez em quando meu órgão genital ficava saliente, mas eu podia fazer o quê? Quando o rasgo aumentava, cometia o erro de colocar um calção por cima do outro. Como consequência, tinha dias que eu ficava pelado em casa, para que os dois calções pudessem secar.

Blusa? Só tinha uma. Não lembro uma única vez de ter usado blusas nessa época. Nem eu e nenhum dos moleques da minha vizinhança. Era comum, então, brincarmos nus nos quintais, nas ruas. Não por que quiséssemos, mas porque não tínhamos o que vestir. As roupas rasgadas, acreditem, eram uma espécie de roupa para sair, passear.

Quando eu vesti as roupas usadas que ganhei, meus vizinhos ficaram encantados. Todos me admiravam. Como eu estava bonito, diziam alguns. Como eu fiquei diferente, diziam outros. Fiquei até um homenzinho, diziam os mais velhos. E, claro, eu me vi feliz porque o ambiente daquelas pessoas miseráveis era de felicidade por mim.

Vesti a roupa e fui para a casa da família que as me deu. Eu passaria o dia lá, ajudando em pequenos afazeres, faria as refeições, teria aulas particulares e à tarde voltaria para casa, com uma penela de comida para o meu pai jantar. Muitas vezes era a única alimentação que ele faria.

As pessoas que não me conheciam pareciam conhecer tudo da minha roupa. Viam defeitos na bermuda, manchas na blusa e até um pequeno buraco na parte das axilas. E não se contentavam apenas em ver os defeitos da minha roupa. Queriam mostrar que aquilo era muito importante, infinitamente reprovável, inadmissivelmente aceitável, profundamente humilhante.

Acho que, se não fosse a felicidade tão grande que eu estava sentindo por estar naquelas roupas, talvez eu tivesse dado ouvidos para o que as pessoas que não me conheciam falavam. E mais ainda: as pessoas caridosas, que as me deram, estavam mais felizes do que eu.

Mas aquilo me chamou a atenção de alguma forma. Eu comecei a aprender com tão pouca idade que há pessoas que se incomodam demais com os remendos na roupa dos outros. Se preocupam tanto com os outros que se esquecem de cuidar de si mesmas.

Muitas e muitas vezes vi pessoas humilharem as outras porque eram pretas ou porque eram brancas demais. Mas as pessoas que humilhavam não percebiam que elas também tinham suas particularidades. Um menino magro demais, apelidado de palito (apelido que ele detestava), humilhava uma menina porque ela alta demais. O garoto muito rico humilhava os que não tinham dinheiro, mas não percebia que sua boca fedia demais quanto ele falava.

Mas o mais inacreditável é que todas essas pessoas tinham coisas maravilhosas. Seus defeitos, seus remendos eram tão pequenos em relação à enormidade de coisas boas que apresentavam que fica difícil de acreditar que ficávamos cegos para o bem e com super-visão para ver o mal.

O tempo passou, andei por muitos e muitos lugares e a mesma constatação: somos muito bons para ver os remendos dos outros, mas não conseguimos ver os nossos remendos e tampouco as coisas boas que os outros apresentam. E isso é tão sério que tem até corrente de sábios dedicados exclusivamente à detectação dos remendos dos outros. É tão sério que se consideram os caras mais avançados do planeta. Tão avançados que ridicularizam todos os que não se consideram especialistas em ver os remendos dos outros. Igual ao que acontecia na minha infância.

A vida que tenho agora me ensinou que as pessoas que vencem na vida, que são felizes de verdade, não estão nem aí para o remendo dos outros. Os olhos deles estão voltados para aquela enormidade de coisas boas que acho que todo mundo tem. Quem vive dos remendos dos outros não tem tempo para ser feliz. Felicidade é uma coisa que se conquista, que é construída dia a dia, hora a hora, segundo a segundo.

Hoje, olho para trás à procura de imagens do meu passado e me flagro sorrindo muitas vezes... São momentos de felicidades com as lembranças da pureza infantil que os remendos das minhas roupas nunca conseguiram tapar.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Sorrisos

Pouca gente dá importância para o sorriso, mas dificilmente alguém consegue se livrar dos laços energéticos do bem que ele irradia. Muita gente diz, com acerto, que o sorriso é a porta (ou janela) da alma. Se já tivéssemos olhos de ver, como dizem as escrituras, perceberíamos, no mínimo, uma tênue luz levemente azulada a envolver todo o corpo físico dos indivíduos que vivem com sorriso no rosto.

Isso não quer dizer que vivam sorrindo. Ainda que estejam chorando, vêem-se com nitidez traço de sorrisos em suas fisionomias. A razão disso é que o corpo físico apenas expressa o que o corpo espiritual contém. Se o corpo espiritual sofre, a expressão física é de sofrimento; se sorri, o sorriso fica estampado no rosto em quaisquer circunstâncias.

É fundamental, contudo, não confundir sorriso com riso ou achar graça. Esses dois são expressões de contentamentos temporários, efêmeros, passageiros. Acontecem quando ouvimos uma piada ou nos deparamos com alguma situação engraçada. Achar graça ou rir é consequência da emotividade do corpo. Sorrir, não.

O sorriso é o encantamento da alma. E jamais é passageiro. É que a alma, quando alcançou determinado nível de elevação, consegue ver com nitidez a beleza divina em tudo com o que se depara. A alma não vê apenas com os olhos. Todo o corpo espiritual é capaz de, simultaneamente, captar todos os diversos sentidos físicos e os inúmeros sentidos extrafísicos, que nós, revestidos de corpos de carne, não conseguimos experimentar.

O êxtase é o encantamento da alma. É o mesmo que epifania. A diferença é que esta é passageira, enquanto aquele é permanente. O que significa que praticamente todos os indivíduos que ainda estão prisioneiros do corpo físico, em algum momento da vida, já tiveram o gostinho do estado permanente de felicidade que os espíritos evoluídos já alcançaram.

Evolução é, portanto, a palavra-chave. E no sentido pleno significa se despojar de tudo o que aprisiona. E o meio através do qual isso acontece não é outro que não seja o conhecimento. Conhecimento dos segredos da vida, do mundo, da alma. Por isso que jamais devemos confundir conhecimento com escolaridade. Tanto é assim que há incontáveis doutores que pouco sabem, de maneira que dezenas de anos de estudos não foram suficientes para lhes acrescentar uma pequena fagulha de sorriso nos seus tristes rostos.

O conhecimento que leva à evolução se materializa no verbo servir. É a servilitude (não confundir com servidão) que faz com que o indivíduo aprenda cada vez mais formas de servir. E aprender quer dizer estudar, testar, comprovar a eficiência e a eficácia do que foi aprendido, primeiro nele mesmo, para depois ajudar aos outros. Como consequência, o indivíduo que sorri é humilde.

E humildade é justamente o reconhecimento de que se sabe muito, mas esse muito não é suficiente para que sirva a todos que precisam de ajuda. Isso gera uma série de consequências, como a impossibilidade do indivíduo que sorri em julgar quem quer que seja, imputar aos outros quaisquer responsabilidades, ainda que a razão leve a isso, como nos casos dos crimes bárbaros. É humilde porque reconhece que já foi assim um dia e que não é fácil se libertar da animalidade que mata.

Quem coloca a culpa nos outros é triste e precisa de ajuda. E é em momentos como esse que o indivíduo que sorri chora. Foi o que aconteceu com Cristo, por exemplo, que chorou o que seus algozes estavam fazendo com eles mesmos ao imolarem-no na cruz. A dor física e a injustiça são irrelevantes diante de tantas dívidas que os outros terão que pagar a si mesmos um dia. Os indivíduos que sorriem choram a chegada da conta futura.

E isso lhes faz excelentes conselheiros. Excelentes conselheiros jamais são críticos. Crítica, aliás, é algo que não faz mais parte nem do pensamento e nem das atitudes das almas elevadas. Eles são amorosos. Quem é crítico não consegue amar porque são prisioneiros de um egoísmo tão profundo que não lhes permite ver e nem reconhecer suas ignorâncias. Não têm saber, têm crenças. Crença tão monoideísta que a única coisa que dizem saber é que a crítica tem que ser praticada. E quem critica não consegue obter a intimidade necessária aos aconselhamentos.

Como já percorreram uma distância muito superior aos seus irmãos de convívio, os indivíduos que sorriem sabem que a estrada tem muitos perigos. E sabem, acima de tudo, que os perigos são arquitetados por nós mesmos. Para que não sucumbissem no passado, obtiveram ajuda de inúmeros irmãos de caminhada e de benfeitores que fizeram o caminho de volta para ajudar. E a cada vez que presenciam esses atos de amor, sorriem.

Sorriem para o nascer do dia e a infinidade de cores que a luz do sol traz, mas também sorriem para as entidades da noite e a necessidade do repouso. Sorriem a graça da vida, assim como sorriem o fim da vida carnal, porque sabem que o espírito é imortal. A morte é apenas a volta para casa depois de uma curta temporada por aqui. Sorriem porque vêem em tudo a mão amorosa de Deus.

E quando você encontrar por aí com alguém com um sorriso permanente no rosto, aprecie-no. Você estará na frente de alguém com quem vale a pena a proximidade física por alguns instantes. Não fique muito tempo, não conviva com ele. É provável que você não o suporte. Eles são como espelho: refletem o que somos.

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...