segunda-feira, 31 de maio de 2021

Ou Apenas Crês?

 A crença parece ser algo essencialmente humano. Em maior ou menor grau, todos os homens e mulheres viventes ou que já passaram por aqui viveram seus cotidianos baseados em crenças. Alguns creram nos poderes divinos dos trovões e dos fenômenos da natureza, enquanto outros ainda hoje juram de pés juntos que comer pirarucu ou camarão quando se está doente é certeza de agravamento da doença, que pode redundar até em morte. Na Amazônia essa crença chega a englobar todos os peixes sem escama, os chamados peixes-lisos. Note que as crenças não nos impedem de viver. Mas elas precisam ser vencidas para que possamos avançar na nossa intimidade com as coisas do mundo.

Fé e crença são duas coisas diferentes, mas interligadas. A fé é um termo que está vinculado à palavra grega pistis (πιστις), que é também a palavra que dá origem ao conceito episteme. E aqui está o segredo da palavra e da afirmativa do Cristo quando dizia "povo de pouca fé". Esses termos são utilizados para representar um tipo de conhecimento que vem do esforço do indivíduo em saber. Não é algo dado por Deus. É fruto do esforço humano. Tanto é assim que a palavra episteme significa o conhecimento científico, que é aquele confiável porque pode ser demonstrado.

Epistemologia, por extensão, significa o estudo dos conhecimentos que mais se aproximam da realidade. Os conhecimentos científicos são objeto de estudo da epistemologia, que busca apontar seus limites, profundidades, métodos e principalmente as suas lacunas, que são os buracos no tecido científico que ainda não foram tapados, preenchidos. Contudo, originalmente, episteme estava vinculada à ideia de aleteia.

Aleteia designa a ideia de verdade. A verdade seria o fim último a que todo conhecimento busca. Cada episteme é uma tentativa de falar a verdade, de dizer a verdade. Assim, a fé enquanto episteme é um tipo de explicação que muito se aproximaria da verdade, da aleteia. É diferente, então, de um outro tipo de conhecimento, que não é fruto do esforço humano. A razão é simples: ele é herdado.

Esse conhecimento é representado na mentalidade grega pelo doxa. A palavra portuguesa que mais se aproxima do entendimento de doxa é opinião. Opinião é qualquer fala que a gente faz sem se preocupar se ela é verdadeira ou falsa. O doxa não tem compromisso com a verdade. Se tivesse, não seria doxa. Vamos ver uns exemplos.

Quando uma comunidade diz que é remoso comer peixe liso quando a gente está doente, esse é um tipo de conhecimento porque é uma explicação sobre a realidade. Nessa explicação há uma relação de causa-efeito: se comer peixe liso, a doença vai agravar e o doente pode morrer. E essa explicação não é apenas das comunidades primitivas da Amazônia: muitos médicos e dentistas amazônicos, por exemplo, fazem essa recomendação explicitamente, por escrito. Mas os médicos que habitam regiões distantes da Amazônia e do Brasil não fazem isso. Por quê?

Muitos ribeirinhos amazônicos olham o céu de manhã e dizem se vai ou não chover à tarde. A explicação é que a coloração das nuvens têm a ver com a chuva, dizem eles. Não conseguem explicar além disso. Se alguém atento acompanhar os resultados verá que haverá muitos acertos e muitos erros nas previsões. E não adianta qualquer argumento em sentido contrário a essa mentalidade. Dificilmente algum deles acreditará.

Esses são dois exemplos típicos do que se chama doxa. Opinião é todo tipo de explicação que não tem uma forma de comprovação, de demonstração a partir do que chamamos padrões válidos. A gente simplesmente acredita naquilo que falamos porque é o costume, a tradição, enfim, a mentalidade com a qual convivemos que diz e confiamos. É a isso que chamamos de crença: acreditar. Acreditamos simplesmente porque nem percebemos aquilo que dizemos.

É essa a grande matriz da confiança, das crenças: a tradição, o costume, a cultura de um povo. A crença não é algo ruim. Acreditar que existe a mãe do mato não faz mal a ninguém, da mesma forma que admitir a existência do saci-pererê. Mas existem certas crenças que podem trazer consequências danosas. Um exemplo é negar a eficácia de determinados medicamentos, da mesma forma que a crença que diz que se deve pagar sempre na mesma moeda: se recebemos o mal, devemos fazer o mal.

O fato é que ninguém consegue sobreviver sem eliminar o doxa, a opinião, a crença pura. Uma das razões é que a ciência, principal fonte da episteme, só consegue explicar (às vezes de forma muito rudimentar) uma pequena parte da realidade. Quase tudo está ainda por explicar, ainda carece de explicação confiável. E como a gente precisa viver, a gente vai confiando nas nossas intuições, nos conselhos dos pais e amigos, nas recomendações de profissionais (que quase sempre também são movidos mais por crenças do que por episteme), enfim, no que a nossa comunidade considera o certo e o errado.

Há um grande contingente de pessoas, contudo, que tenta submeter boa parte da realidade ao crivo da episteme. Eles não se contentam apenas com as opiniões, porque são falhas. Tentam se guiar mais pela fé, que é a opinião racionalizada, passada pelo crivo da razão, do que pelo instinto bruto, que chamamos de crença. Quando a crença tem uma base sólida, o bem é o que emerge, mas quando não é traz problema.

Cristo disse muitas vezes "Crede em mim". Essa frase foi solicitada porque o Messias sabia que a mente daquele povo não conseguiria entender a explicação real, a episteme, sofre a realidade da qual queriam explicação. Por exemplo, não entendiam como ele curou o cego de nascença. Evidentemente que alguma ciência houve naquele procedimento, Cristo usou alguma episteme. As pessoas queriam saber, mas não havia capacidade cognitiva para tal. Por esse motivo o seu pedido significa o seguinte "se eu explicar, vocês não vão entender. Mas acredita em mim, faz o que eu peço, que vocês vão se dar bem". Aqui está o sentido perfeito das crenças: a gente confia porque alguém que tem o conhecimento sobre aquilo que estamos repetindo falou ou nos disse. E como tem autoridade ou é alguém importante, não tem erro ou problema eu repetir. Ler um ou dois textos comentando um assunto não te dá episteme. Tens que ler tudo o que já foi escrito e conduzir teus próprios experimentos. É preciso muito esforço para que se fuja das crenças.

Aquelas pessoas que apenas creem são como as folhas ao vento e pequenos corpos nas ondas do mar. Podem cair em lugar agradável, mas quase sempre o que lhes reserva é dor e sofrimento. Não é por acaso que a maior parte dos que sofrem são os que têm poucos saberes, pouca episteme. E ter saber não é e jamais será ter anos e anos de escola. É, simplesmente, usar a sua capacidade de compreender as coisas, encontrar lógica e razão no comportamento da realidade. Há iletrados sábios e letrados estúpidos.

Os sábios não se deixam conduzir pelas frases bonitas dos outros, e muito menos concordam com baboseiras só porque foi alguém famoso que disse. Respeitosos, eles ouvem a todos com carinho e atenção, mas tudo submetem ao crivo da razão. Não é porque todo mundo está gritando "Viva o SUS" que ele vai gritar também. Ele vai constatar, por exemplo, que praticamente todo mundo que está gritando isso ficou calado quando o SUS estava sendo desmontado. Ele vai perceber que todo comportamento de crença cega é irracional e gera mais sofrimentos.

Um deles certo dia viu um grupo de pessoas que se consideravam antifascistas gritarem brados a um grupo minoritário. Alguns pedestres que assistiam à manifestação se uniram aos manifestantes. O sábio apenas assistiu, sem desrespeito àquilo tudo. Viu que aquelas pessoas faziam exatamente o que acusavam, inclusive com o punho direito erguido acima da cabeça. É isso o que acontece a todos os que apenas creem: se tornam escravos de seus instintos mais primitivos.

domingo, 23 de maio de 2021

Tens Fé?

 Às vezes eu paro para pensar nas pessoas que se dizem cheias de fé. Recentemente foram alvos das minhas reflexões as que dizem aos quatro cantos do mundo que têm fé na ciência. Estas são aquelas que amiúde postam qualquer coisa e acrescentam "Viva a Ciência". Antigamente eram meus alvos os membros de igrejas. Minha preocupação não era exatamente a pessoa em si, o indivíduo, mas o seu entendimento de fé. Mas o que eu via, os fatos que eu coletava, contradizia abissalmente os discursos que eu lia. Dito de outra forma, o que as pessoas postavam era um verdadeiro contrassenso, algo como "A ciência é uma grande mentira" junto com a assinatura "Viva a ciência". Vejamos isso de perto.

Fé vem do latim fide. Essa também é a origem da palavra fidelidade e fiel. Como o transcurso histórico alterou a significação de fide, quer dizer, multiplicou-a, é possível fazer uma reconstrução reversa do termo para compreender com precisão o que essa palavra significa hoje. Atualmente, fé é confiar, e fidelidade é não trair, não contrariar a confiança de alguém. Guardemos essas duas significações.

A origem latina de fé designa um tipo muito especial de confiança. Essa especialidade é decorrente do fato de que fide é algo incondicional. Quem confia, confia absolutamente. A confiança é de uma ordem tal que pode ser facilmente considerada sinônima de verdade. Isso quer dizer que quem confia incondicionalmente tem fé de uma certa maneira que tudo aquilo que emana da fonte da confiança é considerado verdadeiro. E tudo o que é verdadeiro é inquestionável. Resumindo: quem tem fé não pode desconfiar, apenas executar o conteúdo da confiança.

A fé no sentido moral, que é aquela que se aplica em relação ao outro, tem essa mesma conotação: a verdade. Eu sou fiel e pratico a fidelidade porque seus princípios são incontestáveis. Um desses princípios pode ser o fato de que não traindo obrigo o meu parceiro ou parceira a não trair. Se eu traio, não sou fiel, não consigo aplicar em mim aquilo que eu sustento como fé, como uma atitude verdadeira, digna de confiança.

Vejamos o que acontece, na realidade, fora dos âmbitos compreensivos dos conceitos. É possível ter fé naquilo que não conhecemos? É possível confiar em uma pessoa que não conhecemos? É possível ser fiel a algo ou alguém de que não temos a mínima ideia do que seja? Os resultados das minhas reflexões e análises me levaram a concluir que a resposta a todas essas questões é um grande Não.

O segredo desse mistério não está na língua latina, mas na grega. E vem de um termo maravilhoso: Aleteia. Este termo está presente na afirmativa de Cristo de que ele é o caminho, a verdade e a vida. Essa verdade de que fala Jesus é Aleteia, que significa o que é verdade, que não está escondido, aquilo que é exatamente como a realidade mostra.

Não é difícil compreender, então, que apenas poucas pessoas são capazes de entender os fatos e fenômenos do mundo de forma aproximada de como eles verdadeiramente são. Exemplo. Muitas pessoas acham que a gravidade é uma força que atrai os corpos para o centro da terra. A "verdade" é que a gravidade é a queda das coisas em direção a um corpo mais pesado. A maçã cai da árvore em direção à terra, que é mais pesada. O planeta terra cai em direção ao sol, que é mais pesado, da mesma forma que a lua cai em direção à terra a todo instante. A consequência da queda em direção ao sol são as estações do ano, enquanto as marés e fases da lua são o resultado da queda em direção à terra.

Aleteia é isso: saber o porquê das coisas, desvendar, tirar as vendas dos olhos, ver as coisas do jeito que elas são e não da forma como elas aparecem para nós. Quando a ciência mostrou que seres invisíveis (vírus e bactérias) eram a causa de muitas doenças, muita gente se revoltou. Quando a ciência mostrou a possibilidade de vacinas conterem epidemias, muita gente também se revoltou. Aleteia é sempre uma revolução aos olhos de quem não a compreende.

Quando Cristo disse "Gente de pouca fé" ele estava dizendo que as pessoas tinham pouco conhecimento. Traduzindo para uma linguagem comum, Jesus disse que as pessoas não sabiam como as coisas do mundo acontece e por isso não entendiam o que ele fazia. E quando ele pediu que tivéssemos fé no que ele dizia não estava pedindo para a gente crer nas palavras dele, mas que deveríamos, por nossos próprios esforços, usar a nossa razão e a nossa determinação em conhecer a verdade, em saber tudo de Aleteia. E o que fizemos? As palavras do rabi entrou por um ouvido e saiu pelo outro de quase todos os seres viventes da Terra.

É difícil de acreditar (depois explicarei o que é crença), mas os cientistas são os indivíduos que mais praticam a fé. São os únicos seres capazes de explicar e demonstrar aquilo de que falam. Quando dizem que a terra cai em direção ao sol produzindo a sensação de gravidade, eles mostram o fenômeno tanto matematicamente quanto fisicamente. São capazes de reproduzir o fenômeno para que todos o compreendam (jamais para convencer alguém; cientista não busca convencer ninguém, se não, não teriam fé). E têm fé por causa de duas coisas. Primeiro, porque amam aprender; segundo, porque fazem qualquer coisa para continuar aprendendo.

E o que faz a maior parte da população do planeta? Crê. E por isso são alvos fáceis de qualquer discurso. Qualquer pessoa que fala bonitinho arrasta diversas multidões. Quando alguém fala "Viva a ciência" não está sendo desonesta, mas explicitando apenas a ignorância dela sobre esse área de ação humana. Se ela soubesse que a ciência tem inúmeras explicações válidas para o mesmo fenômeno, não diria isso. E o que ela faria? Ela agiria. E o agir da ciência é sempre o mesmo: estudar, compreender e agir bem. Se gritar por aí, está demonstrando que não entende a ciência.

Mas tem uma coisa a favor do grito. Os cientistas só têm fé na sua ciência. Por exemplo, pouquíssimos, raríssimo, são os cientistas da área médica (e muitos poucos médicos são cientistas) não dão ouvidos para os cientistas da contabilidade e da administração no Brasil, para ficar em apenas duas ciências diferentes. Isso explica em grande parte o caos da saúde no Brasil. Como não sabem lidar construir o futuro agora (coisas de gestores) e tampouco determinar com precisão as entradas e saídas de todos os tipos de recursos de agora para algumas décadas (coisa de contabilidade), acham irrelevante o que essas ciências sabem. Noutras palavras: os cientistas também são serem crentes. Eles só têm fé na ciência que fazem. Noutra oportunidade vou mostrar que lógica, matemática e estatística são os instrumentos com as quais construímos em nós a fé.

Voltando à nossa questão de origem, todos nós somos crentes. Quase ninguém tem fé. E os poucos que têm fé são fiéis apenas àquilo de que se ocupam. Poucos são os cientistas em relação ao total da população do planeta. Poucos são os que seguem fielmente o pedido do Cristo, de aprender e melhorar sempre suas condutas.

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Elevação Moral

Todos nós já temos percorrido algum tanto na escala evolutiva. Alguns estão bem no início, enquanto outros estão um pouco mais avançados. A maioria, pelo que se pode perceber nas ações cotidianas, está nos seus primeiros momentos de aprendizado. Há também um número significativo que já fez alguns percursos. Afinal, como visualizar essa escala evolutiva? Em que altura eu estou hoje?

Certa vez um senhor distinto, calmo, se sentiu ofendido porque uma senhora lhe disse algo constrangedor: que ele precisava tomar um banho devido ao cheiro que estava exalando naquele determinado momento. Com a mesma frieza que lhe era característico, foi até sua casa e voltou minutos depois para se encontrar com a mulher. Sem que ela esperasse, desferiu naquela jovem senhora mais de uma dezena de perfurações com uma faca pontuda. Algo que ela jamais imaginou ofensivo foi o motivo de sua morte.

Esse é um caso extremo de baixa elevação moral. A elevação é tão baixa que o bem mais preciso da vida de alguém, que é a sua própria vida, de nada tem valor. Uma observação factual foi tomada como uma agressão tão grave que não havia outra forma de ser sanada, revista, que não fosse com o fim da existência da agressora. Nesses indivíduos não há distinção entre julgamento de valor de julgamento de valor. O valor é o próprio fato.

Casos menos graves como esses acontecem o tempo todo todos os dias. A diferença é que a reação não é a morte. Pelo menos não se mata mais todas as vezes que isso acontece. Certa vez um aluno estava falando algumas bobagens imaginando estar filosofando e seu colega lhe disse que citar alguém famoso não vale como argumento. Não é porque Pelé ou Ronaldinho Gaúcho indicam determinado creme dental que eu devo confiar neles e comprar o produto. Isso vale para ideias também. 

O aluno se sentiu agredido e reagiu com agressão. Iludido na forma como se expressava passou a criticar o seu colega. Ele não percebeu que dizer que seu colega é feio e pobre não retira o fato de que o que ele tinha falado antes eram bobagens. Se Fulano diz que uma porta é amarela e Beltrano não gostar, ainda que Beltrano diga que Fulano é feio e tenha olhos azuis não retira o fato de que a porta é amarela. Da mesma forma, recorrer a uma autoridade é tão falso argumento ou comprovação quanto recorrer a críticas a alguém e não ao fato.

A mais baixa elevação moral tem isso: o melindre, o se sentir ofendido, agredido por coisas que nada tem a ver com ele. Como se consideram ofendidos, exigem reparações, geralmente em forma de perdão e seu complemento financeiro. Para essas pessoas, dizer que "seu corpo está exalando mau cheiro" ou que "argumentos falaciosos não são válidos" é a mesma coisa que dizer que elas são malcheirosas e falaciosas. Elas tomam aquele fato particular, episódico, como sinônimo delas. Tomam o fato como se fossem elas.

Um estágio mais elevado age diferente porque ele já sabe que a observação não é sobre ele, mas a determinada situação ou fato. Nos nossos exemplos, um indivíduo com esta elevação tomaria a observação da jovem senhora como um fato simples. Em seguida, poderia até confirmar o fato, cheirando-se, para ver se está cheirando mal realmente. Se estivesse, procuraria se lavar, sem qualquer problema. Além disso, os mais elevados desse estágio intermediário, até agradeceriam o alerta daquela bondosa senhora.

No caso do nosso estudante, alguém com mais elevação tomaria a observação como um fato. Ele saberia que o seu colega não estaria lhe fazendo uma acusação, mas uma importante observação sobre os falsos argumentos. Por essa razão, analisaria o que tinha falado para se certificar do alerta do colega. Se não soubesse o que são falácias, procuraria, antes, estudar e aprender sobre elas. Se confirmasse que seu argumento era falacioso, consertá-lo-ia e também agradeceria ao colega, se tivesse mais elevação moral; se não, deixaria tudo como está.

Quem já evoluiu um pouco moralmente não se ofende mais com as observações sobre os fatos do mundo que os outros lhe façam, ainda que esses fatos estejam muito próximo deles, como estar com mal cheiro. Eles podem até ficar constrangidos por estarem naquela situação, mas não ficam agressivos porque não se ofendem. Há uma grande diferença entre estar envergonhado e estar ofendido. Envergonhado é característica de quem já tem elevação; ofensa o é de quem está nos estágios iniciais.

Mas há um estágio em que a elevação moral já é muito significativa. Indivíduos neste estágio não se ofendem e também não se ofendem com as observações que lhes fazem. Reagem imediatamente com um pedido de perdão e procuram sanar ou superar a situação. No nosso primeiro caso, um indivíduo com essa elevação pediria perdão e iria quase que imediatamente se lavar, fazer sua higiene, para que o mal cheiro desaparecesse. Ele sabe que, no fundo, a senhora estava fazendo um pedido com a sua observação. O mesmo procedimento o aluno prepotente teria se tivesse esta elevação: pediria perdão ao seu colega e imediatamente retificaria os seus argumentos. Ele interpretaria a observação como uma solicitação.

Qual é o segredo da elevação moral? Simples: conhecimento aplicado. Os indivíduos com pouco conhecimento sobre a vida e as coisas do mundo têm também dificuldade em agir em conformidade com o que sabem. Confundem informação com conhecimento. Sabem de cor muitos trechos de autores famosos, por exemplo, mas não os utilizam para agirem com nobreza, com beleza, gentileza. Mas, como suas mentes são entidades rigorosas, sabem que essas pessoas, de fato, não sabem o que dizem saber. E quando alguém percebe que elas não sabem o que pensam saber e demonstram isso, reagem desesperadas, agredindo. Confundem o saber sobre alguma coisa com o ser aquele saber.

Pode fazer o teste. Veja algo que você sabe muito. Pode ser cozinhar, nadar, andar de bicicleta, qualquer coisa. Se alguém disser que a comida que você fez não tem sal, você não vai se ofender. Também não vai se ofender se lhe disserem que nada devagar ou deixa o pescoço duro quando anda de bicicleta. Sua mente sabe que estão falando de coisas, não de você. E, mais do que isso, não se ofenderia, caso considerasse uma bobagem o que estão lhe dizendo. E quanto mais você souber sobre essas três coisas, mais imediatamente você vai pedir desculpas e corrigir o que está lhe sendo solicitado. Tudo sem ofensas.

Por isso, uma recomendação. Veja como você reage quando falam para você das coisas do mundo, ainda que seja algo que esteja em você, como a forma de seu raciocínio. Se você se ofende, tem baixa elevação moral; se procura se certificar sobre a veracidade da informação para decidir se conserta ou não, média elevação; se pede perdão pelo infortúnio e corrige imediatamente, alta elevação.

Desculpas

Desculpa é uma palavra que tem ganhado muitos significados ultimamente. Isso é decorrente da enormidade de situações em que ela é empregada. Esse leque de situações varia desde o agressivo "Desculpaí", em tom de ironia, até a mais nobre atitude de reconhecimento de erro e consequente esforço em repará-lo. Duas situações estão centradas no outro e uma no próprio sujeito. Um olhar panorâmico permite ver um continuum no uso desse termo.

Certa vez a um funcionário de uma empresa foi solicitado que procurasse ver se estava tudo bem com o processo de produção de determinado produto muito importante para o seu faturamento. O funcionário voltou, dias depois, e disse verbalmente ao seu superior que estava tudo bem, mas que havia a falta de polietileno. Ficou visível a todos os que estavam na ampla sala da chefia o descontentamento do gerente.

-- Arnaldo, disse ele a um dos seus subordinados, vá à linha de produção e veja se está tudo bem.

Sob o olhar surpreso do funcionário a que a missão tinha sido dada, Arnaldo imediatamente saiu e voltou em poucos minutos. Pedindo permissão, sacou seu smartphone e começou a projetar na parede algumas fotos e vídeos que acabara de fazer sobre a linha de produção. Seu relato, que durou cerca de 15 minutos, apontou oito pontos de excelência do processo de produção, três questões graves sobre relacionamento entre os servidores e uma sobre o estoque de materiais, além de duas recomendações feitas pelo pessoal da área para melhorar o ambiente e o clima organizacionais.

-- Desculpaí, chefe, não pensei que você queria tantos detalhes assim, disser o servidor descomprometido. Aquele foi seu último dia de trabalho na organização.

Esse exemplo mostra o pedido de desculpa no sentido oposto do termo, que tem a finalidade ridicularizar quem descobriu alguma falha sobre seu comportamento. É uma atitude parecida com o que tem aquele que, mesmo sabendo que provocou algum problema, culpa o outro. É o que acontece nos acidentes de trânsito, quando alguém bate a traseira do veículo que lhe está na frente. A intenção é sempre culpar o outro porque "freou bruscamente", mesmo sabendo que a própria lei descreve essa situação como de responsabilidade por quem faz a batida por trás.  Como no caso da ironia, esta situação de culpa direta tem a finalidade de transferir para o outro a carga psíquica pela sua falha ou seu erro.

Essa atitude infantil é decorrente justamente disso: os indivíduos ainda estão nas fases preliminares de seu desenvolvimento moral. Entenda-se a moralidade como as atitudes de ações responsáveis orientadas para não ferir o outro ou lhe provocar dano. Ao culpar os outros pelos seus comportamentos essas atitudes têm o mesmo valor moral do que encontrar argumentos não nobres acerca do que fez imoralmente ou deixou de fazer algo moralmente.

-- Não pude fazer a tarefa de casa porque estava chovendo, professora, diz o aluno que teve dois meses para realizar a avaliação. Desculpa, infantil desculpa.

Encontram-se aqui todos aqueles que acusam os outros sobre os males do mundo. Todos os ativistas se encontram nessa situação. A causa da destruição da floresta é dos outros, assim como apenas os outros são intolerantes (não percebem que essa acusação é atitude intolerante). Isso não quer dizer que essas atitudes sejam ruins ou más, apenas que indivíduos plenamente maduros não agem assim.

O início da maturidade se dá quanto o indivíduo começa a cumprir com suas responsabilidades. Diferente do estágio anterior, aqui a intenção é fazer aquilo que foi prometido. E o que foi prometido é sempre algo digno, que não fere o outro. É um bem.

É um indivíduo maduro porque calcula, planeja deliberadamente aquilo que vai fazer. E quando não consegue cumprir o prometido, analisa o motivo de sua falta e busca evitá-lo. Com base nessa análise, presta contas com quem deveria receber o resultado do seu trabalho e se compromete a retificar o erro e a evitar que volte a acontecer. E cumpre efetivamente esse comprometimento.

-- Chefe, não consegui fazer a tradução do texto porque descobri que não sei lidar com termos específicos da área da medicina. Mas já me matriculei em um curso de tradução de termos médicos e dentro de um mês estarei preparado para enfrentar e superar o desafio de tradução nessa área, disse Marina, diante do fracasso da missão que lhe foi confiada. 

É assim que age alguém que já adentrou essa segunda etapa do desenvolvimento moral. Ele não dá desculpas. Ele explica o motivo que lhe levou a fracassar e aponta uma forma de anulação daquele motivo sob a forma de um projeto. Esse projeto representa a efetiva responsabilidade de agir sempre no sentido de cumprir o que promete.

A terceira fase é a plenitude da maturidade. Aqui, o indivíduo reconhece que o mal que causamos é consequência da nossa imaturidade e que toda imaturidade é a forma através da qual a nossa ignorância se manifesta. Entenda-se ignorância não como estupidez ou sordidez, mas como desconhecimento, falta de saber sobre determinada coisa ou relação de causa-efeito.

Na mente desses indivíduos está marcado que todo efeito tem pelo menos uma causa e toda causa tem pelo menos um efeito. Sua mente é logicamente ordenada e seu espírito é dirigido pela bondade. A bondade é consequência da confirmação empírica de que se um indivíduo sabe agir em conformidade com os princípios da bondade, jamais utilizará princípios da maldade, que é o que provoca sofrimento e dor. Ninguém quer sofrer. E por isso procura diminuir os riscos de sofrer.

A ação desses indivíduo não é o de julgar e condenar o outro pela sua falha, mas pela compreensão de que, se houve falha, houve também algum erro no equacionamento das causas com o resultado pretendido. E se houve falha na intenção deliberada de fazer o bem, não cabe a ideia de culpa e, consequentemente, a condenação. Ao invés disso, esses indivíduos plenamente maduro buscam encontrar uma forma de instruir quem falhou para que não falhe mais. 

Quem é plenamente desenvolvido moralmente pode até agir dessa forma por motivo egoísta. Afinal, se o outro só faz o mal por ignorância, ao instruir-lhe sobre como corrigir suas falhas corre-se menos riscos de sofrer as consequências danosas que os atos falhos podem causar. E o egoísmo se manifesta justamente no interesse individual, particular, egóico, de não querer ser prejudicado pelo outro. Mas esses são casos raros de quem chegou até aqui.

Na prática, quem se desenvolveu moralmente passou a amar as pessoas de fato. Amar não é um sentimento. Amar é ajudar. Amar é a prática efetiva de fazer o bem. Ao instruir o outro, está amando. E está amando também todas as vezes que vir alguém fazendo o mal e não o condenar porque essa atitude compreensiva é a manifestação expressa do seu conhecimento, de que o mal só é produzido pela mente e coração ignorantes. Para esse mal só há um remédio: conhecer. Conhecer e agir.


quarta-feira, 31 de março de 2021

Perspectivas e Percepções

Perspectivas e percepções são duas coisas que comandam a vida das pessoas, mas que são praticamente desconhecidas. Na verdade, são as duas causas primárias de todos os tipos de conflitos domésticos, relacionais e trabalhistas. É urgente, portanto, que se lance alguma luz sobre elas para que possamos dar um passo além na nossa capacidade de convivência e passar a ver nas dissonâncias grandes oportunidades de aprendizado.

Da mesma forma que comportamento gera comportamento, as nossas perspectivas influenciam sobremaneira as nossas percepções. Uma perspectiva é uma posição a partir da qual a gente observa alguma coisa. É como se fosse uma visada, como dizem os topógrafos. Se olho um automóvel a partir do seu lado esquerdo, percebo algumas coisas; como eu não consigo ver nada do que está na frente, atrás e do lado direito, nenhuma percepção eu consigo desenvolver. 

Perceber é ver, enxergar. Mas ver é diferente de olhar. Uma pessoa pode olhar uma figura inúmeras vezes, mas não consegue enxergar um gato cinza por entre as sombras das árvores. Um cientista iniciante pode olhar diversas vezes a mesma massa de dados e não conseguir enxergar praticamente nada ali.

Dependendo da perspectiva, a mesma cena pode ser vista de diferentes formas. Tomemos o caso de uma fotografia de uma casa de campo. Um biólogo vai enxergar com muita clareza coisas sobre os diversos tipos de vidas e ecossistemas que tem ali; o poeta vai ver inúmeras coisas apenas traduzíveis, muito distantemente, em poesias; um profissional de turismo perceberá naquele lugar um possível atrativo turístico. Cada um olha a mesma cena, mas tem diferentes percepções. Elas diferem justamente devido às perspectivas de cada um.

Mas vejamos agora algumas cenas muito comuns nos nossos cotidianos. O primeiro é o de uma bela família que tem um casal de filhos. Ela é muito sonhadora, no sentido exato do termo: sonha, como se estivesse dormindo, mesmo estando acordada. Certo dia, depois que ficou de férias, olhou seriamente para o esposo, e disse "Bem que a gente podia tirar pelo menos dez dias de férias e viajar, né?". O marido, já acostumado com aqueles momentos de delírios da esposa, apenas assentiu com a cabeça e continuou a trabalhar.

Como a esposa via as coisas? Qual era a sua perspectiva? Na sua mente deslizavam suavemente as belas praias e dunas de um lugar paradisíaco. Não fazia parte desse mundo mental um hotel de luxo, apenas um lugar decente e com alguns luxos singelos, se é que isso existe. Imaginava-se em restaurantes legais, com comidas saborosas e, se as crianças deixassem, alguns momentos em alguma boate interessante. Para as crianças pensava em passear nos parques temáticos e aproveitar momentos de descontração em algum shopping center. Evidentemente que algumas comprinhas não deveriam deixar de serem feitas. Nada além disso fazia parte da perspectiva daquela digna senhora. Depois de tanto estudar, era praticamente regra descansar e desfrutar.

Como o marido percebia a proposta da esposa? À medida que ela ia falando, vinha-lhe à tela mental as dificuldades de fechar as contas mensais. Em alguns dias o seu salário (o único da casa) não conseguia cobrir os gastos, quando precisava recorrer às economias que conseguia fazer, principalmente nos meses de recebimento do décimo terceiro salário e um terço de férias. Depois sua mente se concentrava no preço das passagens e hospedagens para quatro pessoas, mais as refeições, custos com passeios e compras. Se ela me ajudasse a economizar um pouco, ou, quem sabe, se encontrasse alguma forma de renda, pensava.

O conflito era inevitável porque o marido não conseguia ver as coisas da perspectiva da mulher, e muito menos a mulher do ponto de vista do marido. A esposa jamais imaginava que aquilo que ela queria custava pelo menos dois meses de salário líquido do marido. Para ela, bastaria entrar na internet e comprar as coisas, como se dinheiro caísse do céu. Aliás, dinheiro era algo que jamais fizera parte de sua tela mental quando deslizavam aquelas maravilhas de lugar onde queria estar. O marido, por sua vez, não conseguia entender como alguém é incapaz de não levar em consideração o custo daquilo que quer.

Mas os conflitos são fenômenos que estão em todos os lugares. E, quase sempre, as causas são as percepções e perspectivas dissonantes. João era o proprietário de uma pequena mercearia em uma periferia de capital amazônica. Como os trabalhos aumentaram, contratou um auxiliar, para ficar responsável pela estocagem e reposição de produtos. Luiz vivia com a cabeça na lua, reclamava João. O tempo todo precisava ser chamado a atenção porque alguma coisa fizera errado. Além do mais, chegava quase sempre exatamente na hora de abrir o comércio e queria sempre sair antes do horário.

João via em Luiz alguém que, no futuro, poderia ser um bom sócio. O jovem possuía o maior valor que o pequeno empresário sempre estimou, que é a honestidade. Sua perspectiva mostrava que em alguns anos o comércio ia crescer bastante e seria necessária a abertura de várias filiais na cidade. E quem mais poderia ser seu sócio no empreendimento que alguém honesto? Por isso percebia em Luiz aquele que o ajudaria a concretizar seu sonho.

Luiz, por outro lado, efetivamente era honesto. Sabia disso. Mas aceitou o emprego na mercearia porque precisava de dinheiro para o que mais gostava de fazer: treinar em academia e se mostrar para as mulheres. Se dependesse dele, jamais acordaria às seis da manhã, passar mais de uma hora dentro de um ônibus e ficar o dia inteiro em pé carregando produtos, todo suado e fedido. Estava ali por alguns momentos, dizia.

As pessoas maduras buscam entender a perspectiva do outro para entender as percepções que ele tem, mas sem pretender alterá-las. É algo mais ou menos assim: como você vê isso ou aquilo? Uma perspectiva ou percepção nada tem de certo ou errado. É apenas uma percepção e uma perspectiva que se relacionam. Nada mais do que isso. Se a mulher é sonhadora, paciência. Se o marido raciocina a partir da viabilidade financeira da diversão, também precisa ser compreendido. É a perspectiva deles com suas respectivas percepções.

Ninguém consegue mudar a percepção de ninguém. Apenas a própria pessoa consegue mudar a forma de ver as coisas ao mudar o seu ângulo de visão, a sua visada, a sua perspectiva. E todas as vezes que se faz isso, deixa-se de ver no outro um crápula ou criminoso. E deixa-se de lado o pedantismo de imaginar que a perspectiva do outro é limitada ou coisa assim, muito comum hoje em dia.

Aliás, todos os regimes totalitários, por exemplo, só aceitam uma única perspectiva e, portanto, uma única percepção. E regime totalitário não diz respeito apenas a governos, a países, mas também a relações entre marido e mulher e mãe e filhos. Regime vem do verbo reger, o que significa que o totalitarismo é regido por uma única visão do mundo. É o que acontece com os feministas, machistas, hedonistas, comunistas, capitalistas, fascistas, antifascistas e todo mundo que vê no outro, no que é diferente dele, a imagem do mal.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Pavio Curto

Ter pavio curto parece ser a característica de muita gente por aí. Mas a experiência tem mostrado que grande parte disso é fruto apenas da imaginação de quem não conhece de forma mais apurada quem tem seu pavio reduzido. Em tempo, pavio curto é como são denominados os indivíduos que se descontrolam com muita facilidade. O descontrole lhes é tão instantâneo que se tem a impressão de que é o próprio corpo que lhes domina. Palavrões e agressões físicas são as formas mais visíveis de reconhecer um pavio curto. Mas será que é sempre assim?

Nos meus tempos de infância, havia um certo senhor, lá pelas alturas dos seus sessenta e poucos anos, que no final da tarde passava pela parte de trás da sede do Aningal. Ali os moleques se reuniam para jogar futebol. Era aquela cerimônia: primeiro os mais novos, a partir das três da tarde; depois os mais velhos, em torno das quatro e meia. Próximo das cinco horas, quando os mais novos ainda não tinham ido para suas casas e os mais velhos já estavam se preparando para jogar, aquele senhor aparecia.

Ele tinha cerca de um metro e meio de altura. Não era pardo, como a maioria dos amazônidas, e se vestia com calças compridas e camisas mangas curtas sóbrias, discretas. Para se proteger do sol inclemente amazônico, mesmo e principalmente naquela hora da tarde, portava pequeno chapéu de palha, já um pouco surrado pelo tempo, protegendo-lhe sua pequena cabeça, harmonizada com seu corpo físico reduzido.

Quando era visto, a molecada toda se assanhava e cada um tomava o seu lugar. Uns ficavam por trás e outros, pela frente, com distância maior que dez metros, aproximadamente. E logo alguém perguntava, alto, em tom de deboche:

- Quer vender o chapéu?

Enquanto outro moleque da posição diferente, completava:

- Quanto quer no chapéu?

Aquele senhor, ao ouvir a primeira pergunta, se enchia de furor e partia para cima dos moleques, que corriam se divertindo. Logo que ouvia a segunda pergunta, o velhinho deixava se voltava para os outros. E ficavam nessa sordidez por algum tempo, até que algum adulto interviesse ou o velhinho se cansasse, prosseguindo seu caminho.

Há o caso também de uma senhora de idade que se enfurecia com os moleques. Ela tinha uma fisionomia de amargura, olhar triste. Andava cabisbaixa por causa de algum problema de coluna que a idade certamente tinha produzido, ou pelo menos ajudado a intensificar. Provavelmente também era sexagenária. E andava com um pedaço de madeira, parecendo um cabo de vassoura, que muitas vezes usava como apoio. Seus amigos e familiares a chamavam de Maroca. Não sei se era esse o seu nome ou uma forma amorosa de Maria.

Quando passava e os moleques a viam, gritavam:

- Ei, saiúda!!!

A pobre senhora se descontrolava imediatamente. Manuseava o pedaço de madeira como se fosse uma arma, um tacape, tentando acertar algum moleque. Provavelmente seria capaz de machucar alguém, mas nunca a vi fazer. Ainda é vívida na minha lembrança o seu rosto enfurecido, como se uma arma poderosa lhe tivesse acertado a alma. Seu corpo apenas parecia reagir àquela dor profunda que aquelas palavras provocavam.

Esses dois seriam típicos exemplos de pavios curtos. Mas será que são realmente? Será que existem pessoas que possam ser assim denominados? Ou será que o pavio curto não é característica de quase toda a população do planeta, incluindo você?

O homem do chapéu, para a família dele, era a pessoa mais doce do mundo. Nunca machucou ninguém, nunca espancou nenhum de seus filhos, coisa bastante habitual na educação familiar amazônica. Jamais chamou palavrão para ninguém. Sempre fôra uma pessoa solícita, disposta a ajudar quem dele precisasse, sem nada cobrar por isso. Sua vida foi de agricultor e se mudou para a cidade quando a economia baseada na juta se desfez em Alenquer. 

Mas de onde vinha o seu enfurecimento, o seu pavio curto? Vinha do fato de não aceitar a falta de respeito que era achincalhar alguém de idade. Sua trajetória moral sempre foi de respeito aos mais velhos. O irmão mais novo respeitando o mais velho, que respeitava os pais, que respeitava os avós, assim em cadeia. Um vivia em favor outro, como sempre praticou. Sua base moral era tão forte que o fazia se descontrolar.

No caso da Maroca, algo muito parecido acontecia. Quando ela estava junto dos seus, sempre foi muito doce, cativante, carente de atenção e carinho. Sempre foi muito respeitadora e humilde. Tão humilde que muitas vezes falava com os outros de cabeça abaixada, em sinal de profundo respeito. É como se o interlocutor fosse uma pessoa muito importante para ela, uma autoridade. Novamente, aqui, merecia respeito todas as pessoas, principalmente aquelas que lhe davam atenção, carinho e respeito. Novamente, aqui, era a força moral que induzia o seu comportamento.

Uma coisa acendia o pavio, o desrespeito. Mas outra coisa é surpreendente: o tempo que levou para que o pavio fosse aceso. O homem do chapéu não ficou furioso do dia para a noite, e muito menos Maroca, ao ser chamada de saiúda. Levou tempo. Foi somente depois de muita insistência, de inúmeras cenas de falta de respeito, que ambos começaram a se enfurecer. É a velha máxima: água mole em pedra dura, tanto bate até que o pavio encurtece.

Mas isso não aconteceu apenas com o senhor do chapéu e com a Maroca. Acontece com todo mundo. Conheço muita gente que se separou do marido e da mulher porque não aguentava tanta lamentação todas as horas do dia. Um dia o pavio encurtece. Sei de muita gente dócil que cometeu assassinato porque não suportou tanta infernização por parte do assassinado. Já vi gente amorosa se descontrolar porque não aguentou tantas agressões físicas. Ser pavio curto, ao que tudo indica, é sinal de ser humano na integralidade de suas imperfeições. Alguns demoram para explodir. Outros explodem de forma suave. Mas quase todos explodem.

Recentemente tivemos uma comprovação escancarada dessa humanidade, cometida por uma alta autoridade. Isso apenas prova que o pavio curto é característica que não escolhe cor, sexo, idade, escolaridade, posição social e outras características que não sejam espirituais (não confundir com religiosidade, por favor). Aliás, os governantes brasileiros são tão achincalhados pelos seus adversários, principalmente através das mídias e imprensa, que é raro não explodirem. E isso vale para quem se diz de direita, esquerda, centro, alto, baixo ou qualquer posição do espectro e planos políticos. Só para lembrar, que isso levou Getúlio Vargas e centenas de outros políticos ao suicídio, coisas que almejam os achincalhadores.

Mas há pessoas que, simplesmente, não têm pavio. São seres muito evoluídos. São tão evoluídos que respondem toda agressão, qualquer que seja ela, com atos de amor. Amor mesmo, de verdade, sem fingimento. Mas esse é um caso para outra postagem, assim como outros indivíduos ainda mais raros e superiores em amorosidade, que são os angelicais.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

O Imperativo da Gestão

Esse período de pandemia talvez seja o mais rico em novos aprendizados que já tivemos em toda a história. A maior delas, infelizmente, apenas é percebida pelos grandes cientistas, que é a necessidade de se começar o pensamento e o conhecimento dos procedimentos científicos na primeira infância. Esse será um esforço de não tentar mais barrar o desenvolvimento natural das habilidades genéticas que a maioria de nós traz, que é o de procurar explicações e soluções para o que não compreendemos. O segundo é o imperativo da gestão. Explico.

A ideia de imperativo é a combinação da obrigatoriedade com a necessidade. Contudo, para que essas duas palavras esquisitas sejam entendidas, é mais recomendável que comecemos explicando o que é gestão. Começaremos com exemplos, explorando seus diversos matizes compreensivos.

Certo dia, em uma de minhas aulas para alunos calouros de medicina, perguntei a cada um deles, dentre outras coisas importantes para o planejamento da disciplina, por que tinham escolhido aquele curso. Mais da metade deles responderam algo como "quero ser dono de hospital", "pretendo ser um grande dirigente na área da saúde pública" ou "quero ter meu próprio consultório". Os outros alunos falaram coisas voltadas para a prática da medicina, como "curar as pessoas", "encontrar cura para determinadas doenças" e assim por diante. Eu já tinha recebido muitas respostas similares com alunos de engenharia e direito, por exemplo.

O que essas respostas têm, digamos, de incomuns é o fato de que aqueles alunos talvez estivessem no curso errado. Quem quer ser dono de hospital, ter seu próprio negócio ou dirigir instituições deveria cursar administração. Ou então cursar medicina, engenharia, direito ou qualquer curso de sua vocação, mais administração. A administração serve, nesses casos particulares, para que o futuro profissional seja capaz de gerenciar sua própria vocação, sua vida e seu destino.

Certamente aqueles alunos e futuros profissionais não sabiam que precisavam de conhecimentos gerenciais para que pudessem saber como agir no exercício de suas profissões. Provavelmente estivessem desconfiados de que administração lida, em primeiro lugar, com alcançar objetivos, em saber para onde se está caminhando, onde se quer chegar. Mas jamais imaginariam que há inúmeras formas e procedimentos técnicos para escolher o objetivo mais adequado para determinadas situações. E aprender isso demanda anos, muito tempo. Não cabe em uma disciplina de 80 horas, como tentam fazer crer certas instituições.

Em inúmeras ocasiões, ex-alunos de outros campos me procuram com a mesma preocupação. Foram nomeados ou eleitos dirigentes de alguma coisa. O que fazer? Qual é a primeira coisa que um gerente de loja tem que fazer? O que um prefeito tem que fazer em primeiro lugar? Não sabem, certamente. Não foram treinados para isso. Foram formados para advogar, analisar instalações elétricas ou cuidar de idosos. Mas manusear recursos para alcançar objetivos que não existem, como no caso da maior parte dos municípios amazônicos, jamais. Nem sabem o que é isso. Confundem recursos com dinheiro.

Vamos esclarecer as coisas. Gerenciar é um conjunto de etapas que precisam ser seguidas para que os recursos disponíveis possam ser transformados em objetivos. Primeira tradução: administração não se faz de uma hora para outra, é feita em etapas. Essas etapas são: planejamento, organização, direção e controle. Segunda tradução: administração lida com recursos, que são tudo aquilo que o gestor precisa para fazer alguma coisa. Se é preciso fazer merenda escolar, os recursos são pão, queijo, presunto, suco, copos, pratos, talheres, fogão, gás e toda uma enormidade de coisas. Veja que não falamos em dinheiro. A razão disso é que dinheiro, em última análise, não é recurso (Dinheiro é meio de troca. Mas deixemos isso para lá). Terceira tradução: objetivos são as coisas que queremos realizar, os produtos que queremos produzir.

Depois de organizado os recursos, é hora de lidar com o mais difícil dos recursos, que é a força de trabalho. É preciso saber lidar com as pessoas para que elas transformem os recursos naquilo que se pretende realizar. Se queremos merenda, sem os esforços das pessoas nenhuma merenda vai sair. E não adianta pensar em robôs. Ainda com eles é necessário que haja pelo menos uma pessoa para cuidar dele. E isso se faz com motivação (a pilha das pessoas descarrega, às vezes muito rápido), liderança (e não mandar, como quase todo mundo pensa) e comunicação (todo bom gestor é um mestre do diálogo, como sempre demonstrou meu amado irmão e líder Antônio Venâncio Castelo Branco, saudoso reitor do Instituto Federal do Amazonas). É preciso esquematizar com as pessoas como vamos trabalhar para gerar os resultados pretendidos.

A última etapa do processo gerencial, na verdade, não é um término, mas um constante retorno: controle. Controlar nada tem a ver com mandar nas pessoas e tampouco controlar a vida delas. Os gestores controlam recursos, resultados e processos. É preciso controlar os recursos porque eles são raros, e se não forem controlados, não vão produzir os resultados desejados. Sem alcançar resultados, não há gestão. Gestão é a arte de fazer coisas, gerar resultados. E processos são as etapas que a gente percorre para fazer alguma coisa. Quanto mais etapas, mais longo o processo e mais caro, por exemplo.

O controle é feito em quatro etapas. A primeira é a padronização: precisamos saber como queremos os resultados, como vamos fazer as coisas e com que quantidade de recursos. A segunda é a mensuração: precisamos contar quantas coisas foram feitas para que o total pretendido não seja ultrapassado e nem tampouco a qualidade seja inferior à definida. A terceira é a avaliação, que é a comparação do que foi produzido com o que foi planejado. E a quarta é o replanejamento, que nada mais é do que consertar aquilo que saiu errado através do replanejamento do processo de produção, do processo de gestão.

Por incrível que pareça, eu tentei ser o mais sucinto possível e usei a linguagem mais popular existente, para que eu pudesse ser compreendido. Mas sei que dificilmente alguém entendeu bem. Isso é normal. Os administradores levam pelo menos 4 anos para compreender essa lógica e pelo menos igual período para aprenderem a colocá-la em prática. E aprendem diferentes formas de fazer isso. Por exemplo, esse esquema geral é aplicado a finanças (gestão financeira), materiais (gestão de materiais), pessoas (gestão de pessoas), meio ambiente (gestão ambiental) e centenas de outros campos, se não milhares deles. E cada um tem suas peculiaridades, suas distinções.

Agora eu te pergunto: você acha que teu prefeito, sem formação gerencial, é realmente capaz de gerenciar sua cidade? Que o diretor da sua escola, que é formado em pedagogia, tem conhecimentos de estratégias organizacionais (que exige raciocínio simultâneo de dezenas de áreas diferentes) suficientes para fazer de tua escola uma das melhores do país? Que o dono do hospital, que é médico, é capaz de te oferecer um serviço da qualidade que um gestor faria?

Mas o fato é que são essas pessoas que estão dirigindo grupos, instituições e organizações nos municípios e estados mais atrasados do País. Não que isso não aconteça em outros países. Acontece, sim, até nos mais ricos. Mas a concorrência de lá age rápido destruindo a organização que eles dirigem, colocando tudo nos devidos lugares. Mas já que eles estão dirigindo, e tendem a continuar por alguns anos mais, é necessário que comecemos já a preparar esses futuros dirigentes.

Imperativo significa que "não tem jeito": gente estranha à área de gestão vai continuar querendo gerenciar. E não queremos que as pessoas sob o comando dela se prejudiquem. Então é preciso começar a ensinar gestão a elas desde crianças, em doses homeopáticas. Podemos começar com a tendência natural que as crianças têm de fazer o bem e ensinar que esse deve ser o grande e maior objetivo de suas vidas. Gerenciar é alcançar objetivos. E todo objetivo tem que ser sempre um bem.

Ao longo do ensino fundamental podemos ensinar a ideia de recursos. São necessários recursos para tudo, principalmente para fazer o bem. Uma oração é um bem e a disposição e vontade de orar são os recursos. Nessa fase a finalidade é fazer com que as pessoas descubram a infinidade de recursos que estão à sua disposição e que não são usados. Tempo é recurso, fraternidade também; um sorriso é um recurso incalculável, assim como ouvir com atenção.

No ensino médio poderão ser ensinadas diferentes formas de escolher o bem a ser produzido e a forma mais adequada de uso de recursos. Principalmente para criar o novo necessário. Um novo cenário onde dormimos, um novo ambiente onde convivemos, um novo tipo de relacionamento mais cordial, uma nova forma de esperança e inúmeras maneiras inusitadas de amar.

Todos deveriam entrar no ensino superior apenas quando tivessem aprendido a amar. E nada mais interessante para fazer a seleção desses novos universitários do que um portfólio de suas grandes realizações desde a mais tenra idade. Todos os que soubessem amar teriam que ser admitidos. O amor não ocupa espaço porque é infinito. Sua missão na universidade seria única: inventar novas formas de amar. Nada de disciplinas isoladas e sem sentido. Na verdade, haveria apenas uma: superar desafios.

Quando falamos "necessidade" queremos dizer justamente isso: é necessário dar sentido à vida, ao viver, à vivência associada. E a vida só tem sentido quando dirigida ao bem do outro. A vida é alteridade. O outro é fundamental não para eu me exibir ou fazer ostentação, mas para o exercício da solidariedade e da caridade. São esses os tesouros dos novos tempos, que as sociedades tanto almejam, que as pessoas clamam enlouquecidas, mas que não sabem como produzi-los.

Como a pandemia tem mostrado, a gestão é fundamental. Sem ela não há futuro, o presente se desfaz e as esperanças se transformam em flagelos. E o primeiro alvo de todo o processo de gestão é a própria vida de quem deseja ser feliz de verdade. A vida do gestor é a grande embarcação que ele precisa aprender a comandar ante os mares enfurecidos do tempo presente rumo à segurança do cais do futuro que todos desejamos.

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...