segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Que te Importa, o Outro?

Nascemos com um defeito grave de fabricação: o de nos importar demasiado com os outros. Não estou me referindo às louváveis atitudes de ajudar a todos indistintamente, mas, sim, ao que tem de pior nos nossos comportamentos: ver apenas o que há de ruim nos outros. E isso é tão contagioso que desenvolvemos habilidades extremas de fazer isso. E, o que ainda é pior, chegamos ao ponto de achar que nossas mazelas são produzidas justamente por eles, os outros. Mas isso tem uma explicação surpreendente.

O sinal estava fechado. Diversos automóveis aguardavam em fila o sinal verde. De repente, uma caminhonete invade a pista contrária e passa em pleno sinal vermelho. Quase todos os motoristas que aguardavam o sinal abrir se revoltaram. E utilizaram as buzinas para fazer extravasar o seu descontentamento com a atitude daquele motorista. A ferocidade era tamanha que, imagina-se, se pegassem o moço que furou o sinal provavelmente o agrediriam.

Luzídio era um funcionário exemplar. Chegava todos os dias antes do horário de início do trabalho e saía depois que todas as suas tarefas tinham sido executadas. Quando tinha um tempinho vago, estava sempre disposto a ajudar os colegas, principalmente no preenchimento de informações financeiras. Ele trabalhava no departamento de pessoal de um órgão público. Era um servidor tão bom e conceituado, que ninguém se recusava a dar a sua senha profissional para ele ajudar. Luzídio foi assassinado quando descobriram que ele retirava todo mês menos de um real do salário de cada servidor.

Esses são dois extremos dessa doença que temos de culpar os outros pelas nossas mazelas. Se alguém fura o sinal, será que não passa pela cabeça de ninguém a possibilidade de o condutor estar indo prestar algum socorro, em que alguém correria risco de vida? Já aconteceu com um amigo fazer isso: teve um ataque cardíaco e acelerou em busca de atendimento médico. Se não tivesse infringido as leis de trânsito (das quais foi absolvido depois), certamente teria ido a óbito. No caso do servidor público, por que assassiná-lo? Certamente a justiça o faria devolver cada centavo retirado indevidamente de cada um.

Uma primeira explicação para isso é a tendência que as pessoas imaturas têm de encontrar um culpado para as suas inconsequências. Os culpados podem ser tanto outras pessoas, como no caso da pessoa que chegou atrasada ao trabalho porque o ônibus não parou para ela, quanto coisas. Há quem alegue não ter dormido direito porque a forte ventania fazia ranger a janela do seu quarto. Não lhe passava pela cabeça, por exemplo, passar um óleo na fechadura ou encostar a porta de forma mais vigorosa, que fizesse cessar o rangido.

Na verdade, a pessoa não percebe que quando age assim está dizendo, de diversas formas, que não tem maturidade o suficiente para assumir suas atitudes. "Aquela maldita pedra estava no meio do caminho e torceu o meu dedo" significa "não prestei atenção por onde andava e por isso tropecei na pedra". Mas, por incrível que pareça, a pessoa não tem a maturidade para admitir que estava andando desatenta.

Outro dia ouvi alguém dizer "eu não aguento mais ter que limpar a casa todo dia". A casa e a sujeira dela passaram a ser a causa da infelicidade dessa pessoa. Não passava jamais pela cabeça dela o fato de que casas e todo tipo de objeto se sujam. E quem não gosta de viver e conviver com sujeira tem que limpá-la. E se as coisas se sujarem todos os dias, todas as horas e todos os minutos, todos os dias, horas e minutos precisam ser limpas. Simples assim. Ser infeliz por causa disso por quê? Uma saída seria morar em um hotel, que teria funcionários para fazer a limpeza a todo instante...

A pessoa não percebe, portanto, que a "culpa" de suas infelicidades (porque são múltiplas) não é das pessoas a quem ela acusa e tampouco das coisas que ela condena. É ela, a própria pessoa, que é infeliz e repassa a sua infelicidade para as pessoas e coisas. É uma atitude cômoda que perpetua a infantilidade, mas que também gera infelicidade para quem compra a ideia infantil que ela conta.

A segunda explica é a vontade de fazer o que é proibido. Isso se aplica à quebra das regras que não fazemos, mas feita pelos outros. Se a pessoa atravessou com o sinal vermelho, o que é que eu tenho a ver com isso? Se a mulher traiu o marido, no que isso me interessa? Se alguém não está cumprindo o acordo feito, no que isso me toca?

Na verdade, quando alguém faz o que eu condeno, eu condeno justamente por isso: porque eu gostaria de fazer e não tenho coragem. Se eu condeno quem fura o sinal, é porque eu gostaria de fazer o mesmo; se eu me descontrolo com o marido que trai a esposa, é porque eu gostaria de fazer aquela traição; se eu perco a paciência com quem não cumpre o que promete, é porque eu gostaria muito de não cumprir os meus acordos. Simples assim.

Se as pessoas soubessem o que dizem quando reagem de forma desequilibrada emocionalmente ao culpar os outros, provavelmente jamais o fariam. Perceberiam que essas atitudes o fariam ou infantil ou criminosos em potencial. Lembro de várias pessoas que culpam os ex-amantes pelas suas infelicidades e finalizações de seus relacionamentos na frente dos amantes atuais. Pouco tempo depois falavam a mesma coisa dos que presenciavam suas denúncias. Um vizinho chegava a chorar de raiva quando lia notícias de pedofilia. Foi flagrado abusando de crianças da vizinhança e herdou 20 anos de prisão.

Se o descontrole emocional é quase sempre uma transferência de responsabilidade ou vontade reprimida de fazer o que é proibido, é bom que o indivíduo se conheça um pouco mais. É que a infantilidade tem um lado perverso: faz o indivíduo sofrer demais. Como a culpa está sempre no outro e o outro é difícil de mudar, a infelicidade tende a perpetuar. É assim que a mente inconsciente dessas pessoas age. Como os loucos jamais admitem que o são, a mente doentia jamais vai reconhecer que elas mesmas são as causas de suas desgraças, não os outros.

Há uma regra de ouro que ajuda muito a lidar com esse problema: só ligar para o outro, se for para fazer o bem a ele. Tudo o mais deve ser deixado de lado. Se alguém furou o sinal vermelho, tenho que imaginar algum bem naquilo - por exemplo, que ele estivesse indo socorrer alguém. Se a pessoa olhou de cara feia para mim, posso imaginar que ele não está bem - por exemplo, está com dor de barriga. Se alguém me deu um tapa, posso imaginar que fiz alguma coisa errada sem perceber ou que a pessoa agrediu a pessoa errada.

No início até parece absurdo, mas com o tempo a nossa mente vai se desapegando dos outros e passando para nós a responsabilidade pelas consequências dos nossos atos. Se o copo caiu da minha mão, é porque eu não o segurei direito, e não porque ele estava liso. Se quebrei o vidro da janela foi porque fui imprevidente ao segurar a escada, não porque a escada era pesada. Se perdi o ônibus ao ir para o trabalho foi porque não acordei mais cedo na parada.

Ainda que a justiça venha a reconhecer a responsabilidade de outro por alguma coisa que nos aconteça, de fato ela é sempre nossa. Certo dia fui processado por calúnia, difamação e injúria. A justiça me absolveu. No entanto, a "culpa" foi minha porque não fui previdente com os objetos que roubaram da minha casa, que gerou toda a série de desdobramentos que levaram ao processo.

Assumir as suas responsabilidade por tudo na vida é o que denota a maturidade de alguém. E tudo quer dizer tudo, absolutamente tudo. Até aquilo que comprovadamente não foi responsabilidade nossa. Afinal, tudo o que nos acontece de ruim tem sempre a nossa contribuição, diferentemente do que nos acontece de bom. Vigiar é a melhor atitude, como  já aconselhava um grande amigo há mais de dois mil anos.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Vai e Faz

Juma ficava irritada todas as vezes que chegava ao escritório e copos estavam sobre a sua mesa. Seu sócio, quando recebia clientes e ficava várias horas após o expediente trabalhando, quase sempre os deixava por lá nas poucas vezes em que trabalhava até mais tarde. Juma ficava possessa. Será que ele não percebia que aquela não era uma atitude adequada?

João por vários dias brigou com a esposa por causa das roupas de cama com um cheiro suspeito. Era provável, imaginava ele, que algum de seus filhos pequenos tivesse feito xixi e vazado da fralda na cama. Mas não compreendia por que a mãe não as retirava e as colocava para lavar. Será que ela não estava percebendo aquele mau cheiro?

Muitas e muitas vezes sofremos em decorrência do que os outros fazem ou deixam de fazer. Na verdade, nenhum motivo há, de fato, para esses sofrimentos. Nada justifica a frustração e a tristeza derivadas do comportamento dos outros. Os outros têm todo o direito de fazer o que bem entenderem. Se fizerem coisas erradas, provavelmente a justiça se lhes será acionada; se fizerem coisas certa, é possível que sejam por isso bonificados.

Se alguém ganha na loteria e resolve doar todo o prêmio para os outros, que motivos eu tenho para contestar essa decisão? Se outro resolve se apaixonar pela pessoa que sabidamente é desonesta, porque devo interferir? Se o sócio deixa os copos em cima da mesa, por que isso seria motivo de descontrole das minhas emoções? Se alguém não consegue sentir o cheiro de xixi, isso é motivo de irritação minha? 

A ciência e as histórias de vida têm mostrado que as paixões descontroladas jamais levaram à mudança do comportamento dos outros. Diferente das atitudes, não se combate um suposto mal com um mal inquestionável. E são justamente as atitudes que devem ser acionadas, não para alterar o comportamento indesejado do outro, mas para retirar o suposto motivo do descontrole emocional.

Se os copos estão em cima da mesa e isso causa aborrecimento, retire-os. Se a roupa de cama está cheirando a xixi e isso incomoda, retire-a e/ou lave-as. Se as paredes da casa estão sujas e isso te causa descontrole, lave-as ou pinte-as. Se a comida do almoço não te cai bem, aprenda a cozinhar e faça-a todos os dias.

Certa vez o reitor de uma universidade entrou no banheiro dos homens e viu que uma torneira estava quebrada, jorrando água e inundando vários compartimentos. Imediatamente tirou o terno, retirou a gravata e a camisa e se pôs a cessar o jorro de água, no que foi bem sucedido. Em seguida acionou o pessoal da engenharia para providenciar o conserto definitivo.

Se o principal executivo de uma organização gigantesca é capaz de atitude semelhante, por que eu não seria? Depois que a instituição soube do ocorrido, divulgação feita pelos alunos e professores que estavam ali naquele momento vendo a atitude do reitor, praticamente todos louvaram a iniciativa. Tanto é assim que estou eu aqui a lembrar desse feito, mais de duas décadas depois.

Toda iniciativa desse porte é divina e louvável. É o que todos gostariam de fazer, mas, incrivelmente, não se sabe o porquê de não levá-lo a cabo. É formidável a atitude de alguém que recolhe o mendigo da rua e o leva para sua casa para tratar dele como se fosse parente seu, mas é impressionante que aquelas pessoas que mais se emocionam ao saber dessas ocorrências são aquelas que menos capazes são para fazer o que lhes emociona. É provável que a emoção não seja devido ao fato presenciado, mas pela consciência de sua incapacidade.

Fazia mais de mês que os funcionários entravam pelo portão quebrado da entrada principal e se contorciam um pouco, para que não se machucassem. Um deles, que estava a serviço na unidade de outro estado voltou e, ao entrar, percebeu o portão trincado. Deu meia volta e foi a uma pequena loja de material de construção da esquina, comprou uma nova dobradiça e substituiu a que estava com problema. Novamente todos poderiam entrar na empresa sem problemas.

O que esse servidor fez? Ele foi lá e fez. Simples assim. Ele não esperou que alguém o mandasse fazer, mesmo por que essa não era sua responsabilidades. Também não ficou xingando a empresa e os funcionários responsáveis pelo portão quebrado. E tampouco ficou resmungando pelos cantos pelo contorcionismo necessário para que pudesse entrar sem se ferir devido ao portão quebrado. Ele foi lá e fez.

Vai e faz. Não resmungue. Não esbraveje. Não xingue. Não culpe. Vá lá e faça.

Se os copos estão em cima da mesa, vá lá e os coloque no lugar. Se a roupa de cama está fedendo xixi, vá lá e as lave. Se seu chefe não lhe dá bom dia, dê bom dia a ele. Se seu marido não limpa as paredes da sala, vá lá e limpe-a ou pinte-a. Faça isso uma vez e tantas quantas forem necessárias, se isso lhe incomodar. Deixe o seu ambiente o mundo do jeito que você gosta. E isso só precisa de sua ação. Vá lá e faça.

Se você fizer isso, coisas milagrosas vão começar a acontecer. A primeira é que o tempo perdido com tristezas e frustrações vão diminuir muito. E com a possibilidade de desaparecer. A segunda é que você se tornará mais autônomo, independente, não precisará mais dos outros para que você se sinta bem. Você será capaz de preparar o caminho do seu sentir bem. A terceira é que você descobrirá inúmeras coisas que precisa aprender e que não sabe fazer. Isso lhe proporcionará mais conhecimentos e habilidades. E, quarta, como todo conhecimento e habilidade mudam o nosso comportamento, você se recobrirá de atitudes cada vez mais bela, o que levará ao quinto milagre, que é mais e mais pessoas gostarem de você.

Ir lá e fazer, portanto, é uma atitude simples que transforma completamente a vida da gente. Se você vive reclamando que não tem dinheiro, vai lá e aprende uma forma legal ter o dinheiro que você quer ter. Se vives triste porque não consegue o reconhecimento profissional que teus conhecimentos e habilidades permitem, vai lá e obtém outros conhecimentos e novas habilidades que te tragam o reconhecimento esperado. O que não vale é ficar parado, reclamando da vida e sendo infeliz. O tempo passa rápido. E logo já é chegada a hora da partida.

Vai lá e faz. Deixe o mundo mais parecido contigo. E seja feliz.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Triste Razão

 Há quem sonhe em ter muito dinheiro, como se esse bem pudesse sanar todos os problemas e dificuldades da vida. A vida vai mostrando, porém, que saber lidar com dinheiro é uma das grandes lições que se tem que aprender. E isso não é fácil. Muitos sucumbem fazendo do dinheiro o fim da própria vida, nos dois sentidos semânticos. Apenas aqueles que o tornam meio para fins mais nobres é que conseguem viver de forma menos atribulada. Mas a primeira coisa que se tem que entender é uma lógica simples, esquisita e triste.

Comecei a trabalhar muito cedo. Aos cinco anos já vendia tomates, vassouras, maxixe e outros produtos nas ruas de Alenquer. Mas foi pela altura dos dez anos de idade, quando já dominava completamente a arte de datilografar, que comecei a ter um retorno sistemático, em forma de dinheiro, do meu trabalho. Praticamente toda semana, eu recebia um pequeno pagamento pelas coisas que eu fazia.

Quando chegava em casa, entregava quase todo o dinheiro que eu tinha recebido para a minha mãe guardar. Ela era o meu banco, no sentido singelo de guardar o meu dinheiro. Nada de juros para mim e tampouco taxa bancária para ela. A ideia era simples: quando eu precisasse, bastava pedir para que ela me desse. Quase nunca perguntava para que eu queria o dinheiro que eu pedia.

A dinâmica era, portanto, toda semana lhe entregar um pouco de dinheiro e, ao longo da semana, quando eu precisasse, pedia e ela me atendia. Entrada e saída de recursos financeiros apenas. Contabilidade simples, cálculo fácil de fazer. Mas, na prática, as coisas não são bem simples assim.

Alguma coisa esquisita e triste acontece entre os intervalos de tempo em que nos prestamos a fazer um pequeno balanço da situação financeira. A esquisitice e tristeza é maior para quem está começando a lidar com dinheiro, como foi o meu caso e o caso da maioria das pessoas para quem eu contei a minha história.

Parece que a mente trabalha de uma forma a maximizar as entradas e a minimizar as saídas. Esclareço. Toda semana parecia ficar registrado na nossa mente, com bastante clareza, o quanto foi entregue ao banco (no meu caso, para a minha mãe), mas, inversamente proporcional, a própria mente se encarregava de apagar ou deixar apenas de forma sombria, nebulosa, aquelas retiradas que eu fazia. E o resultado disso era que, na minha mente, eu tinha mais dinheiro do que efetivamente tinha no bolso do vestido onde minha mãe guardava minhas economias.

Eu não anotava em nenhum papel o quanto eu entregava e o quanto eu retirava. Não tinha esse registro formal de entrada e saída de dinheiro. Deixava tudo sob a responsabilidade da minha mente. E isso também não me preocupava. Mas quando eu queria comprar algo que custava um pouco mais dinheiro, uma calça jeans, por exemplo, quase sempre minhas economias me deixavam na mão. Minha mãe me dizia simplesmente que faltava dinheiro. Mas minha mente me dizia o contrário. Não apenas me dizia o contrário, mas me levava e às vezes me forçava a desconfiar da honestidade da minha própria mãe, coisa veementemente repudiada e jamais obedecida por mim. 

Eu deixava a compra para outra ocasião. Mas ficava, naturalmente, com a pulga atrás da orelha, desconfiado. A desconfiança jamais fora em relação à dignidade de minha matrona. A curiosidade vinha como decorrência do desequilíbrio que minha mente apontava entre a entrada e a saída de recursos. Eu imaginava que tinha uma certa quantidade de dinheiro, porém a realidade me apontava outra.

Cresci um pouco e tive que sair de casa, para enfrentar o mundo. E trabalhei novamente. E novamente comecei a ganhar meu dinheirinho. Aqui a dinâmica era parecida, mas diferente ao mesmo tempo. O dinheiro entrava na minha conta bancária de verdade e eu o ia retirando ao longo do mês, para as necessidades da minha casa e pessoal. Como eu não tinha cheque especial, quando as retiradas zeravam a conta, os cheques começavam a voltar (naquele tempo havia essas coisas anacrônicas, que era um pedaço de papel com um certo valor anotado que as pessoas e empresas recebiam como pagamento a ser descontado em relações interbancárias). E começavam os problemas.

Eu comecei a desconfiar da honestidade do banco. Eu imaginava que o banco estava me roubando, contabilizando demais as minhas retiradas. Veio em mim a lembrança do que ocorria quando minha mãe era o meu banco. O que estaria acontecendo, afinal? E por que isso acontece?

Comecei a fazer anotações no canhoto do talão de cheques. Eu pegava o meu saldo no início do mês e ia diminuindo cada cheque ou retirada que eu fazia. Dessa forma eu comecei a saber com certa precisão quanto restava na minha conta bancária. Mas, ainda assim, o dinheiro na minha conta acabava antes do que indicavam as minhas anotações.

Um dia tive a ideia de gastar quase nada do meu salário. E assim o fiz. Apenas o essencial, o essencial mesmo, era comprado ou pago, como conta de luz e telefone. E resolvi pegar extratos semanais, para acompanhar o que estava acontecendo na minha conta. No final do mês, para minha surpresa, não detectei nada de anormal. Quer dizer, algo anormal aconteceu: mais da metade do meu salário estava lá na conta. E, o que é melhor, o mês tinha acabado. E ainda faltava entrar o salário!

Fiquei novamente com a pulga atrás da orelha. Algo esquisito estava acontecendo. Quer dizer, não estava mais acontecendo a esquisitice de sumir meu dinheiro da conta. Eu parecia jurar que quando a gente não presta atenção nas entradas e saídas de dinheiro, o dinheiro some; mas, se a gente controla tudo, tintim por tintim, diariamente, todo o tempo, o dinheiro fica lá. É claro que isso exige tempo e paciência. E, mais do que isso, determinação.

Depois de muito estudar (e praticar) finanças descobri, com um ramo da ciência chamado psicologia financeira ou econômica, que a mente nos surpreende de verdade. É ela que, através de determinados hormônios, faz abrandar o impacto das retiradas e mantém firmes as entradas, causando essa dissonância entre o que entra e o que sai de dinheiro, nos levando a desconfiar da honestidade dos outros. Na verdade, a ciência mostra que a primeira desconfiança tem que ser com a gente mesmo.

As riquezas materiais (e dentre elas as riquezas financeiras) são decorrentes da nossa determinação em controlar o que entra e o que sai. Quando essa determinação se torna um hábito, educamos a nossa mente para lidar com adequação com a dinâmica de entrada e saída de dinheiro. E só então compreenderemos que não é a honestidade ou desonestidade das pessoas que faz diminuir, aumentar ou permanecer constante o saldo de nossas contas, mas as nossas atitudes. Todo pobre financeiro é pobre mental e miserável em atitudes. É escravo de uma triste razão. Razão que teima em ter.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Sabes Pedir?

Pode até parecer algo estranho, mas é muito difícil encontram alguém que saiba pedir aquilo que deseja. E isso inclui desde aquele comprador que quer comprar determinado produto até aquele que, por necessidade de caridade, precisa encarecidamente de alguma coisa. Quando essas pessoas fazem os seus pedidos a impressão que se tem é que se está diante de algum tirano. Do lado extremo estão os ingênuos, indivíduos com comportamentos marcadamente infantis, que parecem imaginar que aqueles a quem fazem suas solicitações são seus empregados ou, o que é tão grave quanto, seus servos.

Certa vez um grupo de dez estudantes de Administração (e eu no meio) procurou um deputado estadual para pedir colaboração para que pudessem participar de um encontro nacional de estudantes em Salvador, na Bahia. O deputado nos recebeu, muito solícito, ouviu com atenção as palavras de cada um de nós. Depois que falamos, ele perguntou: "quanto custa as passagens e as estadias de todos vocês?".

Aquela pergunta me atingiu mortalmente. Quanto custa cada passagem? Quando custa a diária de um hotel sem estrela? Nós não sabíamos. Na verdade, não fazíamos ideia de que precisávamos ter essas informações. E não só essas, descobri depois. Eu precisava saber o preço das passagens rodoviárias e aéreas, se poderia pagar a prazo ou apenas à vista, com quanto tempo de antecedência deveria ser feita a reserva, no caso de orçamentação de órgãos públicos e mais uma série de outras questões que estavam por trás de um simples pedido de ajuda.

Outro dia recebi um pedido singular. Uma senhora na rua me parou e pediu dinheiro para comprar um remédio para suas dores nas costas. E eu perguntei: quanto custa? Ela olhou para mim, surpresa, baixou a cabeça e disse "não sei". Como estávamos próximos a uma farmácia, perguntei novamente "qual é o nome do remédio?". Aquela senhora parecia ter sido atingida mortalmente, tal qual eu fui há décadas, diante daquele deputado. A senhora não sabia. 

Mas, diferente do deputado, que nos pediu para fazer esse levantamento e depois voltar, me dispus a ir até a farmácia consultar o farmacêutico. E assim fizemos. Comprei o remédio indicado e entreguei a ela, que apenas olhou para mim, meio indiferente, e foi embora, sem agradecer.

Durante meu tempo de quartel, tinha um sargento odiado por todos. Sempre que podia, aquele militar maltratava demais seus subordinados. Certo dia ele chegou muito atrasado para o almoço. Tentou forçar ser servido fora do horário, sem sucesso, pelos soldados que estavam terminando de lavar o refeitório. Diante da ameaça de insubordinação, um dos soldados pediu que ele se sentasse na mesa ao lado da entrada do cassino dos subtenentes e sargentos, que ele iria fazer e servir o almoço, mesmo fora do horário, mesmo correndo o risco de transgressão militar por desobedecer ordem do tenente comandante daquela unidade.

De onde estava, o sargento não viu como seu almoço foi feito. Um dos soldados pegou um bife bem robusto e jogou no chão como se joga pedra na superfície de lagos, para que ela quique várias vezes até afundar. Só que o bife deslizou naquela água suja misturada com sabão e desinfetante do piso da cozinha. Outro soldado pegou o bife com, com o rodo, jogou para cima e o chutou, enquanto o outro o aparava no peito, como se fosse um jogo de futebol.

Outro soldado disse que a carne estava dura e precisava ser amassada. Pisoteou-a no chão com seu coturno várias vezes. Outros passavam os acompanhamentos nos seus órgãos genitais, enquanto outro passava os tomates em sua grande ferida na altura do joelho. Como colocaram muito molho de saladas, o cheio e o sabor ficaram disfarçados. O bife ficou bastante queimado, quase crocante. O aspecto estava agradável e deixou o militar satisfeito.

O que essas pessoas não percebem é que todo pedido é uma solicitação de favor. Não é obrigação. E, como favor, a outra pessoa faz se quiser. O outro atende o pedido se quiser. E ponto final. Isso vale em casa, no trânsito, no trabalho e qualquer lugar do universo. A pessoa solicitada pode simplesmente não querer atender. Ela está no direito dela. Ainda que moralmente possa ser condenável, legalmente nada a obriga a fazer aquilo que a lei não o faz.

Outro dia uma mãe pediu que sua filha lhe trouxesse um copo de água. A filha se recusou. A amiga da mãe reagiu nervosa, condenando a atitude da filha. A mãe, compreensiva e conhecedora da arte de pedir, simplesmente pediu que a amiga deixasse para lá. A filha estava no direito legal de recusar atender o pedido, ainda que, moral e fraternalmente, a atitude tenha sido grosseira.

No trânsito, por exemplo, quando se quer mudar de pista de rolamento há que se sinalizar com o pisca-alerta. Aquela sinalização é um pedido, um "por favor, você me deixa passar na sua frente na sua faixa de rolamento?". Muitos atendem ao pedido reduzindo a velocidade, mas outros não o fazem. A atitude civilizada de quem atende é louvável, mas as atitudes grosseiras dos outros não podem ser condenadas. É preciso compreender isso.

Essa, portanto, é a primeira lição do ato de pedir: quem recebe o pedido, atende se quiser. Se não quiser, quem faz o pedido não tem o mínimo direito de se contrariar e muito menos reagir com agressão ou se deprimir. A segunda é relativa ao tempo: quem quer ser ajudado precisa esperar a disponibilidade do outro para ter seu pedido atendido. 

Nada, portanto, de ficar pressionando, procurando saber quando o pedido vai ser realizado. Evidentemente que o indivíduo que se dispôs a ajudar pode esquecer do compromisso assumido. E isso é natural. Daí quem deseja a ajuda tem que ter habilidade para lembrá-lo. Há quem diga "Não estou querendo lhe incomodar ou pressionar, mas não esqueça do meu pedido, querido amigo". E basta. E essa lembrança tem que ser feita apenas uma vez. Se o indivíduo esquecer novamente é porque não quis atender. Simples assim.

A terceira grande lição da arte de pedir é o modo de ser atendido. Muitas vezes criamos expectativas sobre como queremos que as coisas saiam, como aquilo que queremos tem que ser e assim por diante. Tire isso de sua cabeça definitivamente. Faça o pedido e ponto. A forma como o outro vai atender não interessa, se não não é pedido.

Certa vez uma vizinha pediu ao vizinho que limpasse o telhado de sua casa. O vizinho demorou para atender. Quando o fez, utilizou um produto químico de que a vizinha não gostava. A vizinha ficou uma fera e passou a falar mal do outro para a comunidade dizendo que o vizinho a queria envenenar porque tinha colocado aquele produto no seu telhado. Omitiu o fato de que o vizinho tinha atendido um pedido e desconhecia o "desgosto" da outra em relação ao produto utilizado, que ele mesmo comprou, diga-se de passagem, e que sempre utilizava para deixar o telhado de sua casa tão belo quanto queria a vizinha.

Se essas três regras forem obedecidas, dificilmente teremos consequências desastrosas com os pedidos de ajuda que fazemos aos outros. Saber que não atender é um direito do outro, que o tempo e o modo de atendimento são determinados por quem vai atender o pedido é uma forma superior de civilização que todos deveriam conhecer e praticar.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

A Conquista da Independência

Acho que todo mundo quer ser independente. Não lembro de ter conhecido alguém que tenha me dito, convictamente, que gostaria de permanecer a vida toda dependendo dos outros. É provável que a dependência seja antinatural. Tudo parece convergir para a conquista da autonomia. Mas o que é isso e como se pode fazê-lo?

A palavra autonomia vem do grego αὐτόνομος (pronunciado autonomos), junção de αὐτο (pronúncia auto), que quer dizer "de si mesmo", com νόμος (pronúncia nomos), que quer dizer lei, norma, regra. Por extensão, autonomia quer dizer criação de leis para si mesmo, que é a exata tradução da frase "aquele que cria suas próprias leis". Vejamos isso mais de perto.

Nunca é demais dizer que uma lei é criada para ser obedecida. Se não o for, para que serve? Daí vem a primeira desilusão de muita gente, que imagina que a pessoa independente é aquela que faz o que quer, o que bem entender, o que vem na telha. Aquele que é independente cria suas próprias leis para segui-las. E as segue com tanta dedicação quanto segue todas as outras. Se isso é irracional, vamos explicar a lógica da independência.

A falta de autonomia é chamada de anomia, palavra que vem novamente do grego e significa falta de lei, norma, regra. Aqui o indivíduo é quase que absolutamente dependente dos outros (com o perdão do pleonasmo, uma vez que quem é dependente só pode depender dos outros ou de alguma coisa). É o caso dos bebês recém-nascidos, que precisam de ajuda para quase tudo. Para eles não há regras porque eles simplesmente não conseguem segui-las porque não as conseguem entender. Veja que entendimento e autonomia são mutuamente dependentes, estão sempre presentes juntas. Quanto mais saber, mais independente o indivíduo será.

O estágio seguinte ao da anomia é o de heteronomia. Heteros, também do grego, quer dizer outros. Neste estágio já há lei. Mas todas elas são dos outros. Uma criança de cinco ano não consegue fazer suas próprias leis e segui-las. Ela precisa dos outros para criar as leis que elas precisam aprender a obedecer. Se ela quiser colocar os dedos na tomada, alguém precisa proibi-la, para que ela não se machuque ou venha até mesmo a morrer. Essa proibição é que é a lei. Daí vem a segunda constatação: a lei é feita para proteger as pessoas. Quanto maior nossa capacidade de seguir a lei, mais em segurança estaremos. Consequentemente, mais livres seremos, porque nada poderá barrar a nossa ação.

Os pais e familiares são os grandes ensinadores das leis neste estágio, assim como os professores. É preciso que o indivíduo comece a aprender a obedecer aqui, para que não haja problemas nos estágios seguintes. Nem pensar em pular, deixando que a criança faça o que bem entender, a não ser que se queira um tirano em casa e na vida.

O terceiro estágio é o de socionomia. Socio é um termo que vem do latim socius e quer dizer amigo, companheiro, outro indivíduo. Aqui o indivíduo aprende que a escola tem regras diferentes das de sua família e dos seus amigos. Aliás, dentro da própria família há regras diferentes nas casas dos tios, dos avós e assim por diante. E ele vai aprender a terceira coisa que quase ninguém ensina, mas que é fundamental para viver bem: é preciso respeitar todas as leis para que sejamos queridos.

Ele vê na escola e no clube que Mariazinha é amada por todo mundo, mas ninguém suporta o Juquinha. A razão? Simples: Mariazinha não desrespeita as regras dos grupos de que ela participa, diferente de Juquinha, que está quase sempre esperando uma oportunidade para desrespeitá-las por concordar só com as que lhe convém. Além disso, Mariazinha é solícita para com todos, enquanto o amigo é muito egoísta. Alteridade e obediência são os segredos do bem querer.

É só depois de conquistar os aprendizados dessas etapas que o indivíduo consegue adentrar o estágio da autonomia. Ser autônomo é obedecer a todas as leis, em primeiro lugar. Daí ele verá que ainda assim, obedecendo a todas elas, ainda é necessário criar outras que as leis não preveem. E assim ele faz. Só que suas leis não conflitam com nenhuma outra lei existente. Se conflitar, sabe que tem sua liberdade reduzida pela possibilidade de arcar com as consequências legais e/ou morais da infração.

Mas tem uma consequência prática que evidencia a autonomia como vinculada ao entendimento e que marca a independência. Quanto mais coisas o indivíduo conhecer e souber fazer, menor a sua dependência dos outros. Se sabe lavar roupas, não precisará de quem as lave para ele. Se sabe cozinhar, provavelmente não passará fome por falta dessa habilidade. Se sabe falar chinês, certamente não se verá em apuros em nenhuma cidade chinesa de que conheça a língua.

Dai vem que as primeiras habilidades (assim como o entendimento) tem que vir com o auxílio dos pais. Ir ao banheiro fazer xixi, por exemplo, é uma das primeiras habilidades. Mas não se pode parar apenas no básico. É preciso ensinar a arrumar a cama, guardar os brinquedos, colocar as roupas sujas no lugar e assim por diante, à medida que o indivíduo vai crescendo. O motivo desse procedimento é que a habilidade é que vai julgar, consciente ou inconscientemente, o valor do entendimento. Quanto mais coisas o indivíduo souber fazer, maior e mais complexo poderá ser o entendimento que ele é capaz de obter. Essa é a quarta lição que quase ninguém ensina porque não a conhece.

A grande meta de todo o esforço de autonomia e independência é que o indivíduo consiga sobreviver sozinho o mais breve possível. E quando se fala em brevidade, é brevidade de tempo mesmo. Se conseguir aos 15 anos, maravilhoso; se apenas aos 21, menos pior. O que não pode é o indivíduo se transformar em um figurão empenado que suga as energias de todos durante a vida toda. Esse continua a ser quase que absolutamente incapaz que apenas uma mudança drástica provocará por força das necessidades o início do aprendizado que deveria começar na primeira infância e que provavelmente será feito agora com dor.

Então, quer ser autônomo e independente? Aprenda a fazer tudo na vida. Desde lavar privadas até o mais complexo cálculo matemático. Desde olhar para alguém e saber que ela está triste até dominar diversas técnicas de multiplicar dinheiro legalmente. Estamos na vida para aprender tudo o que for possível. Nada, absolutamente nada, deverá ficar de fora do nosso campo de preocupação de aprendizagem. Não podemos perder tempo. Até quando descansamos devemos aprender. O descanso bem usufruído também é demonstração de liberdade que apenas a autonomia e a independência podem proporcionar com adequação.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Por Que não és Feliz?

Muito se tem falado sobre a felicidade e muito pouco ainda se sabe efetivamente sobre esse fenômeno extraordinário. Alguns têm a sua própria receita para alcançá-la e acham que podem ensiná-la aos outros, principalmente se os outros estiverem dispostos a pagar por isso. A maioria parece dormitar sobre alguns momentos ao longo de suas vidas que tiveram a oportunidade de sentirem felizes. Ainda que as receitas dos chamados especialistas em felicidades não sejam confiáveis, parece que há uma lógica entre as vivências felizes relatadas por muita gente.

Grande parte desses relatos se concentram em dois momentos. O primeiro é quando estão fazendo alguma coisa, o exato instante em que produzem algo, de maneira que o agir, a operacionalização parece ser uma das fontes de felicidade. Os relatos dessa primeira forma denunciam uma espécie de prazer muito forte e diferente dos demais prazeres da vida.

Uma enfermeira certa vez me falou que encontra muitas dificuldades para chegar ao trabalho. Começa pelas várias tarefas que tem que fazer em casa, antes de sair, prossegue com a rotina de preparar e levar os filhos à escola, continua com as várias horas que permanece no trânsito pesado e barulhento e perdura até enfrentar os olhos sempre encolerizados da chefa. Mas milagrosamente começa a desaparecer completamente quando ela começa a tratar das pessoas. Cada procedimento é como se ela fosse tomada de um profundo bem estar que a fizesse flutuar.

Certa vez uma diarista me falou coisas comoventes neste sentido. Ela dizia que era muito feliz com o que fazia. Era feliz de verdade. Seus relatos mostravam que tudo o que fazia durante o seu trabalho era uma forma de desafio que ela colocava para si mesma deixar aquele local o mais limpo, belo e perfumado como ninguém jamais deixara antes, inclusive ela. E à medida que ia fazendo as coisas, ia percebendo a transformação que estava produzindo em cada centímetro de chão, cada milímetro de móvel, cada decímetro de parede. No final de cada pequena peça de móvel ou pedaço de chão, ela comparava aquela primeira imagem com a que acabara de produzir. E aquela sensação fantástica de bem estar e leveza lhe tomava o corpo todo, deixando-lhe extasiada. Seus olhos brilhavam à medida que ela relatava essas coisas.

Inúmeros outros relatos parecidos me levaram à minha primeira conclusão, pelo menos parcial, de que o ato de fazer as coisas provoca uma sensação de bem estar profundo em algumas pessoas que elas não têm dúvida de que aquilo é felicidade. Já ouvi isso de jogadores profissionais e amadores de futebol, médicos muito dedicados, garis, cientistas, professores, cuidadores de idosos, pescadores, agricultores e dezenas de outros profissionais e artífices. Alguns artesãos, por exemplo, me disseram que têm uma sensação divina durante e após suas criações.

A segunda constatação é a de que fazer o bem traz felicidade. Nesta segunda modalidade, não é tanto o ato em si de fazer alguma coisa o centro da empolgação dos relatos, mas os resultados que aquilo que foi feito trouxe para algumas pessoas. A felicidade, portanto, é pelos benefícios gerados, o que dá uma sensação inquestionável de dever cumprido, de missão dada e realizada. Mas não é uma missão qualquer.

Uma amiga de longas datas não tem filhos, nem maridos, nem família. Quer dizer, sua família são seus animais. Mais precisamente, gatos e cães. Seu ofício é a corretagem de imóveis, que lhe dá muita satisfação. Mas apenas o cuidar dos animais lhe dá felicidade. Relatou que certa vez encontrou uma cadelinha abandonada na rua, atropelada, morrendo de frio, de madrugada chuvosa. Não teve dúvida: parou o carro, colocou a cadelinha no banco do carona e a levou para casa. Gastou muito dinheiro para recuperar a vida do animal. Depois de recuperada a saúde, sentiu uma felicidade tão grande que lhe faz chorar todas as vezes que relembra. E é assim com todos os animais que cuida.

Um ex-colega de trabalho é excelente profissional e rico. Tem uma família maravilhosa e harmoniosa. Essas coisas todas lhe dão profunda satisfação na vida. Mas todas as noites ele sai para alimentar aqueles não têm o que comer pelas ruas de sua cidade. Quando volta para casa, se sente tão leve e feliz que quase sempre lágrimas lhe caem dos olhos. Recentemente tem se dedicado também a levar alimento para famílias inteiras que, mesmo tendo uma habitação fixa, não têm o que comer.

Mas o que chama a atenção é que muitos casos de felicidades contínuas não têm essa separação de ofício profissional que dá satisfação e uma espécie de missão, que traz felicidade. Tem muita gente que é feliz tanto fazendo o bem no seu local de trabalho quanto em outras missões que eles se colocam. A razão disso é que elas fizeram do trabalho delas uma missão, da mesma forma que escolheram outras missões para também serem felizes.

E é justamente isso o que impressiona: as pessoas escolheram uma missão para serem felizes. Não foi vocação. Foi escolha pura e simples. Tanto é assim que conheço muita gente que não gostava do trabalho que executavam, mas que quando resolveram fazê-lo bem, detalhe por detalhe, passaram não apenas a gostar do que faziam, mas fundamentalmente a amá-lo. Daí o trabalho se transformou em missão. E toda missão amorosamente trabalhada provoca aquela sensação de leveza e bem estar da felicidade.

Isso nos leva a algumas constatações. A primeira é que a concentração em cada detalhe do que se faz, em cada etapa do que é feito, além de dissipar a fadiga do trabalho renova as energias das pessoas e as fazem se sentir muito bem, que é o sentimento de felicidade. A segunda é que quando as pessoas fazem coisas que beneficiam muito os outros e consideram esse fazer uma forma de missão, a cada vez que realizam o trabalho e constatam os benefícios gerados se enchem de uma leveza muito grande que vem da sensação do dever cumprido, que também lhes dá felicidade. A terceira é que a felicidade é resultado da ação, ainda que a sensação comece a acontecer no exato instante em que a ação é executada e se estende para além do final da execução, com aquela sensação de dever cumprido.

Alguém poderia até dizer que podemos estar confundindo satisfação com felicidade. Pode ser. Mas esses relatos permitem distinguir com clareza uma de outra. A satisfação, quando retirada sua fonte, cessa; a felicidade, quando retirada sua fonte, continua. Muitos se sentem extremamente satisfeitos em morar em lugares confortáveis, mas são infelizes; outros se sentem felizes,  mesmo morando nas ruas, porque fazem alguma coisa extraordinária, como se fosse sua missão. Inúmeros casos de pessoas que cuidavam das outras, atos que lhes davam profunda felicidade, continuavam com a sensação de felicidade depois de cumpridas suas missões.

Daí vem que a satisfação tem um contrário, que é a insatisfação, enquanto contrário de satisfação, algo como irritação. Mas não existe um contrário de felicidade. A infelicidade é apenas ilusão. Geralmente quando a pessoa se diz infeliz, de fato não é infelicidade o que sente, mas algo parecido com insatisfação com alguma coisa. Se felicidade é essa sensação de leveza, flutuação, a infelicidade, se existisse, seria o contrário, enquanto sensação de se enterrar, como se tivesse caído em areia movediça.

A fórmula da felicidade é essa: fazer o bem e procurar fazê-lo sempre cada vez melhor. A primeira parte da fórmula é o desafio de ver os beneficiários da nossa ação pelo menos satisfeitos, usufruindo dos benefícios que lhes proporcionamos, como sensação divina de dever muito bem cumprido. A segunda é um desafio da pessoa com ela mesma, no sentido de se fazer cada vez melhor, mais competente, mais hábil, mais ágil naquilo que se dispõe a fazer. E não importa se o que vai ser feito é um ofício profissional ou uma missão que a pessoa se colocou. Se trouxer o bem para os outros e se fizer cada vez melhor, a probabilidade de que seja feliz é muito grande.

domingo, 21 de junho de 2020

Tuas Atitudes são Evoluídas?

As atitudes são reações automáticas, quase instintuais, acerca daquilo que nos rodeia ou acontece. São uma espécie muito distinta do que se pode chamar ação. Esse caráter distintivo é justamente o seu caráter semi-instintual, meio impulsivo. Também são uma forma de reação a alguma coisa, de maneira que elas quase nunca iniciam um procedimento, mas reagem a algo, são consequências, não causas.

Também não podem ser confundida com os costumes, apesar de se assemelharem a eles. Os costumes são quase todos inconscientes, de forma que não se sabe o porquê de determinados comportamentos e crenças, e muito menos com os hábitos, que denotam quase sempre aspectos negativos. As atitudes podem ser deletérias ou benéficas. E é aqui que repousa a necessidade de se nos repensar como elas estruturam nossos procederes.

Todos os seres humanos (e talvez até alguns animais superiores, como os bonobos e chimpanzés) são capazes de perceber suas atividades. Isso implica na possibilidade de recolocá-las novamente nos nossos pensamentos depois que elas foram praticadas e serem objeto de reflexão. Como o mundo e as realidades mudam constantemente, também as atitudes precisam ser repensadas, tanto para evitar anacronismos quanto para inconveniências desastrosas.

Certo colega, todas as vezes que vê alguém fazendo alguma coisa, como que automaticamente começa a fazer o mesmo. Se alguém está lavando louças, sem perceber ele começa a lavá-las ou a secar as loucas já lavadas. Enquanto faz isso, continua a dialogar com a pessoa com a qual interage. Fazer o que o interlocutor está fazendo é como se fosse um pano de fundo da interação.

Outra atitude parecida é a que consiste em auxiliar o outro, mas com a devida aceitação prévia. Por exemplo, quando se vê alguém, conhecido ou desconhecido, muito atarefado, com muita coisa para fazer, a atitude natural é socorrer essa pessoa. Pode ser alguém tentando transportar um móvel de um lugar o outro, como um veículo ou mesa, mas também pode ser o socorro a indivíduos necessitados, que duas pessoas poderiam fazer melhor e mais rápido.

Essas atitudes benéficas, como demonstra a experiência, são aprendidas desde a mais tenra idade. Começam com a visualização, a vivência da atitude dos pais e das pessoas próximas, continuam com a imitação e se consolidam com a internalização quase inconsciente delas. É como um impulso que move essas pessoas a dividir o esforço do outro, amenizando-o.

Há inúmeras variantes dessas atitudes benéficas. Elas são praticadas quase sempre por pessoas que consideramos de coração bom. Contudo, é possível percebê-las nos que imaginamos ter um coração mau, como os homicidas. Quando eles veem alguém próximo com alguma necessidade que possam suprir o fazem automaticamente. Isso mostra mais uma vez que talvez fazer o bem seja nossa característica inata mais evidente.

Mas há as atitudes deletérias. Elas são o inverso daquelas que consideramos benéficas por duas razões. Primeiro, não visam à ajuda, cooperação e colaboração, mas ao impedimento de que o interlocutor ou indivíduo-alvo prossiga com o que está fazendo; e, segundo, sua finalidade, seu caráter teleológico, é o mal, a destruição.

A mais comum das atitudes deletérias é a indiferença. E, talvez, a menos perniciosa. Ela se dá pela falta de percepção de alguém em relação ao que o outro está fazendo. Imagine uma pessoa com várias sacolas de supermercado nas mãos, sem ter como chamar um táxi ou abrir uma porta. Pessoas passam ao redor, veem aquela situação quase desesperada e vão embora. Essa é a indiferença.

Inúmeros casos como de indiferença acontecem todos os dias com a gente, em casa e no trabalho. Se estamos fazendo alguma coisa e papéis caem no chão, há quem não se disponha a apanhá-los gentilmente. Se alguém está limpando a casa e precisa de ajuda, as outras podem ver essa necessidade sem que se disponham a ajudar. Se um colega está precisando de solução para um problema e sabemos resolver, se não o ajudarmos somos indiferentes. A doença da indiferença é curada com o autoconhecimento.

A segunda atitude mais perversa é a da crítica. A crítica é um veneno que precisa ser extirpado da mente e do coração de todos os seres humanos. Certa vez um senhor que vivia nas ruas foi acusado de maltratar um cachorro porque, para socorrê-lo durante um temporal, só conseguiu pegar o animal pela cauda. As pessoas, ao invés de ajudar no resgate, constrangeram aquele senhor acusando-o de maus tratos. Mas também acontece no trabalho, quando ninguém se dispõe a fazer alguma coisa e outro o faz, mas recebe a crítica por alguma coisa ter saído errado. Crítica é sempre veneno, destruição. O veneno da crítica só se extirpa com conhecimento e amor.

A terceira e mais grave de todas as atitudes deletérias é a sabotagem. A sabotagem é movida por um impulso com a intenção deliberada de que algo positivo feito por outras pessoas seja alcançado. A sabotagem não deseja o sucesso do outro ou que alguma coisa aconteça. Mas não o faz diretamente, às claras, à vista de todos. Age sempre às escondidas, disfarçada, para que o evento fracasse com um ar de naturalidade. Indivíduos sabotadores são doentes mentais severos que precisam de ajuda constante e intensa, psíquica e espiritual.

Nossas atitudes denotam nossa evolução humana, moral e espiritual. O aspecto humano é decorrente da capacidade de ver no outro as dificuldades e possibilidades que vemos em nós; a moral está vinculada à estética da vida e da harmonia entre tudo o que existe e acontece no mundo; e a espiritual é essa vinculação de tudo e de todos com o bem. Quando mais colaborativos, mais evoluídos, mais propensos às ajudas automáticas, que são nossas atitudes.

Desiguais

Talvez a igualdade seja o grande sonho da humanidade. Muitas comunidades chegaram a implementar relações igualitárias efetivas, ainda que, p...